Sobre direitos humanos e negócios?

direitosHumanosGustavo Guerreiro* – O Povo

O Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou recentemente, na Assembleia Geral, uma resolução histórica, que visa criar mecanismos para que os países identifiquem, previnam e punam violações de direitos humanos cometidas por corporações transnacionais em todo o mundo. O intuito é criar um “tratado vinculante” com poderes sobre as multinacionais que atuam nos países signatários da resolução.

O documento teve como autores Equador e África do Sul e contou com apoio de 20, dos 47 membros do Conselho de Direitos Humanos, incluindo a Índia, China, Etiópia, Paquistão e Rússia. Países como Argentina e Brasil se abstiveram. Outros 14 países desenvolvidos votaram contra a resolução, entre eles EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Japão. Nota-se aí uma clara divisão de interesses: de um lado aqueles que hospedam sedes de grandes corporações multinacionais; do outro, países cujas populações enfrentam os efeitos nefastos da ação indiscriminada de tais empresas.

Exemplo a destacar é a multinacional petroleira Chevron. Acusada por comunidades indígenas no Equador de destruição ambiental e danos à saúde de milhares de pessoas, a empresa planeja e executa suas atividades sob o signo do desenvolvimento e da geração de empregos. O setor da agroindústria também protagoniza diversas violações. Gigantes do agronegócio, como a Bayer e a Monsanto, respondem em vários países por irregularidades diversas, com destaque para o uso indiscriminado de agrotóxicos.

Na maioria das vezes, as violações são cometidas por corporações de peso no mercado internacional. A ONG de direitos humanos Global Exchange apresentou uma relação das “dez principais empresas criminosas”, acusando-as de cumplicidade com violações. A lista inclui gigantes como Shell/Royal Dutch Petroleum, Nike, Blackwater International, Syngenta, Barrick Gold e Nestlé. Dentre as acusações figuram as péssimas condições de trabalho para os operários de suas fábricas, ausência de direitos sindicais, contaminação ambiental, trabalho infantil, despejo de lixo tóxico, discriminação e destruição de terras indígenas para a exploração de minerais e petróleo.

A conjuntura contrapõe decisivamente o que defendiam os pregadores do liberalismo, como Milton Friedman, F. Von Hayek e os ideólogos da Escola de Chicago (Universidade de Chicago): que a liberdade (individual e coletiva) só se realiza com a absoluta liberdade do mercado e sem intervenção dos Estados nacionais. A liberalização, ao contrário, resultou na desregulamentação de direitos trabalhistas e abolição das leis ambientais. As privatizações em âmbito mundial debilitaram não apenas a força de trabalho, mas os extratos mais fragilizados das sociedades.

Os danos não provêm apenas da presença descontrolada das corporações transnacionais, mas também da corrupção das autoridades, da fragilidade ou ausência de mecanismos dos países para desempenhar suas funções e da ação autoritária das instituições financeiras internacionais. No mundo em que a legitimidade das políticas é franqueada pelo FMI, bancos, bolsas de valores e agências de risco, o Estado, quando não é cúmplice dessas corporações, torna-se cada vez menos capaz de zelar pelos direitos de seus cidadãos. Ganham espaço a filantropia privada e o chamado “terceiro setor”, que assumem as atribuições de atendimentos paliativos.

O antropólogo chileno José Bengoa, que atuou como relator especial sobre direitos humanos e políticas econômicas, sociais e culturais da ONU em 2006, aponta que o grande desafio jurídico, político e ético do novo milênio será a codificação e a exigibilidade dos direitos humanos em um mercado internacionalizado. Defende que deve-se levar em consideração o fato de que o Estado não é o único instrumento para a realização dos direitos fundamentais, mas é o principal responsável.

A votação na ONU representou uma vitória para grupos que lutam pelas causas humanitárias. Os atores não estatais têm um papel fundamental no desenvolvimento da legislação internacional de direitos humanos. Ressalte-se, no entanto, a necessidade de que mecanismos multilaterais fortaleçam institucionalmente os Estados nacionais e, ao mesmo tempo, imponham maiores obrigações aos atores não-estatais.

Seria leviano demonizar o comércio internacional, a integração de mercados e os fluxos de capitais e de pessoas. Mas cabe questionar: são conciliáveis a preservação de direitos fundamentais das populações e os atuais padrões de produção e consumo?

*Mestre em Sociologia e pesquisador do Observatório das Nacionalidades

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