Participação social, Baader-Meinhof Blues e o despotismo esclarecido na República das Bananas

Abril Indígena. Foto: Valter Campanato, 2013
Abril Indígena. Foto: Valter Campanato, 2013

Por Pedro Pulzatto Peruzzo, em Justificando/União – Campo, Cidade e Floresta

Numa das minhas músicas prediletas da banda Legião Urbana, Baader-Meinhof Blues, o Renato Russo canta: Não estatize meu sentimento. Pra seu governo, o meu estado é independente. Essa ideia de estatizar sentimentos (e tudo o mais) sempre se fez presente em Estados de tradição colonial. Colonizar os sentimentos, dizer o que é bom pro outro, dizer o que é belo, dizer o que é certo e o que é errado é uma mania muito presente no Brasil e, em razão disso, eu gostaria de pensar essa parte da canção que tanto me apetece tendo como pano de fundo o Decreto 8.243/14, que institui a Política Nacional de Participação Social.

As primeiras discussões sobre esse Decreto assumiram uma posição de crítica à proposta de participação social e, pra variar, tiveram grande repercussão, como toda crítica reacionária que os déspotas esclarecidos de plantão costumam fazer contra toda e qualquer proposta que considere a vontade e o gosto do povo pobre, negro, indígena, imigrante, homo/transexual nos espaços de tomadas de decisão sobre o futuro do país. Enfim, esse “outro” que não foi “capaz” de ocupar os restritos espaços de poder sempre acaba sendo considerado como o detentor dos piores costumes.

A participação política é um direito consagrado em vários instrumentos legais de direitos humanos, podendo ser citados vários documentos de relevância nacional e internacional a esse respeito: o artigo 25 do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966 (internalizado no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 226/1991); os artigos 6, 1, b, e 7, 1 e 2 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (internalizada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 143/2002); os artigos 5, 18 e 23 da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU (ratificada pelo governo brasileiro em setembro de 2007); o artigo 23, 1, a, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no Brasil pelo Decreto Legislativo 27/1992).

Recentemente, alguns intelectuais, como Dalmo Dallari e Fabio Konder Comparato, se manifestaram favoravelmente ao Decreto 8.243/14 e esclareceram a constitucionalidade desse documento legal. Muitos outros textos foram escritos por cidadãos como eu que apostam na pluralidade de ideias para a consolidação da democracia e, considerando as já avançadas discussões sobre a constitucionalidade e relevância política do Decreto, quero apenas sugerir uma reflexão acerca do receio que os déspotas esclarecidos do Brasil normalmente manifestam em relação à participação popular direta.

Antes de analisarmos o receio e a saga colonizadora dos déspotas, quero dar um pequeno passo atrás e compartilhar a sensação de que, pelo fato de já serem famosos por suas “ideias brilhantes” ou assumirem importantes postos políticos, esses indivíduos possuidores dos melhores hábitos e dos melhores bens se valem dessa fama para subordinar as pessoas que, por falta de formação jurídica, não conseguem desenvolver uma avaliação crítica sobre as maravilhosas conclusões fornecidas por esses ditos intelectuais. Vou me valer de apenas um exemplo.

Quando o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) foi divulgado, vários juristas empreenderam uma cruzada contra alguns dispositivos do Programa. Uma das críticas mais interessantes (e aberrantes) foi a que o jurista Ives Gandra Martins fez contra a proposta de regulamentação da taxação do imposto sobre grandes fortunas. Esse imposto é de competência da União e é o único imposto brasileiro que ainda não foi instituído (afinal, a maioria dos parlamentares não querem se auto-tributar, certo?).

Não vou entrar na discussão técnica sobre esse tributo, mas vale lembrar que o Ives Gandra disse que a instituição do imposto sobre grandes fortunas representaria um desestímulo aos investimentos no Brasil. Essa manifestação foi reproduzida por outros juristas e pela mídia e acabou sendo tomada como a grande verdade. Apesar de ter sido tomada como verdade absoluta, uma avaliação muito simples nos permitiria esclarecer que a instituição desse imposto poderia não representar um desestímulo ao investimento se, por exemplo, fosse definido legalmente o conceito de “grandes fortunas”. Esse conceito poderia ser, por exemplo, uma “grandeza econômica improdutiva”, ou seja, propriedade improdutiva. A tributação de valores improdutivos, portanto, seria um estímulo, e não um desestímulo, ao investimento e à geração de emprego e o acesso à renda no Brasil.

Abri esse parêntese apenas para exemplificar o mau gosto dessas senhoras e desses senhores que, de barriga bem cheia, exigem a paciência daqueles que estão se alimentando de lixo.

O Decreto que institui a Política Nacional de Participação Social tem sido alvo de críticas absurdas da mesma natureza daquelas que foram direcionadas ao PNDH-III. Dentre outras propostas, o Decreto da participação social pretende fortalecer e articular os mecanismos democráticos de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil. Não vejo problema jurídico algum nessa proposta; no entanto, isso representa uma “ameaça” política aos déspotas esclarecidos. Nessa linha, quero propor uma reflexão sobre algumas características e alguns motivos do receio que esses déspotas manifestam publicamente e sem nenhum pudor em relação à concretização da democracia direta no Brasil.

Para começar, vale lembrar que a democracia direta está prevista no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, que diz que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. O Decreto da participação social avança num ponto interessantíssimo, qual seja no ponto que diz respeito à “pinguinização” (para me valer de um termo utilizado pelo jurista argentino Luis Alberto Warat para se referir às vestimentas do profissional do Direito) dos movimentos sociais.

O Decreto reconhece como “sociedade civil” não apenas o cidadão e os movimentos sociais institucionalizados, que poderíamos classificar, numa ironia restrita à proposta deste texto, como agrupamentos “arrumadinhos”, mas também os coletivos e os movimentos sociais não institucionalizados, aqueles agrupamentos formados por pessoas que não se conhecem e ocupam a Praça Roosevelt, em São Paulo, para protestar contra a militarização da Polícia, ou ainda os grupos que se juntam a comunidades indígenas para organizar retomadas de terra.

Que fique claro, neste ponto, que não estou desprezando o papel das ONGs e outras organizações institucionalizadas quando falo da pinguinização dos movimentos sociais. Por óbvio não é isso! Trata-se apenas de uma crítica estética temperada com alguma acidez considerando exigências também estéticas que normalmente são impostas aos coletivos mais “desarrumados”.

Além disso, quando falo dos movimentos “arrumadinhos” falo de grupos de pessoas privilegiadas que, pelo fato de terem estudado em grandes universidades, se acham no direito de decidir pelos outros. Preciso ser sincero e me manter firme na afirmação de que, por exemplo, são pouquíssimas as ONGs indigenistas que não se sentem donas dos índios e que, de fato, contribuem para a emancipação dos povos originários. E isso vale para outras frentes de atuação.

A presença de coletivos e movimentos sociais não institucionalizados tem sido um grande exemplo de organização social sem a necessidade de constituição de estruturas rígidas, com presidentes, conselhos fiscais, hierarquização, CNPJ, advogado para assinar o termo constitutivo, logomarca, cadeiras giratórias, sedes com auditórios e outras exigências burocráticas e estéticas que mais atrapalham do que ajudam a constituição do que é essencial, ou seja, da identidade de interesses e pautas das pessoas que se organizam em grupo. De mais a mais, foi exatamente a natureza difusa dos movimentos populares que se fortaleceram em 2013 que causaram, de fato, o receio tão necessário nos setores do Estado e da sociedade civil que, há séculos, explora sem vergonha o povo brasileiro das classes menos abastadas.

Além disso, o Decreto ainda prevê o uso de linguagem simples e objetiva, consideradas as características e o idioma da população a que se dirige, bem como o desenvolvimento de mecanismos de participação social acessíveis aos grupos sociais historicamente excluídos e aos vulneráveis. Em outros termos, o Decreto exige que se respeite e se dê ouvidos a imigrantes, pobres, índios, caiçaras, quilombolas, enfim, a todos os grupos que “roubam emprego dos nacionais”, que “são ladrões por natureza”, que “atravancam o desenvolvimento econômico” e que, principalmente, não estudaram em universidades de ponta, não são poliglotas, têm mau gosto estético e nunca souberam reconhecer o real valor das viagens à Europa e aos Estados Unidos para a formação intelectual do indivíduo político, talvez por não terem tido condições financeiras de desfrutar dessas delícias.

Por que motivo a vida no sertão baiano seria tão desinteressante? Uma sugestão é que alguém decidiu que Nova Iorque seria mais interessante do que o sertão e, talvez, esse alguém não teria sido João Guimarães Rosa…

Discursos etnocêntricos, xenófobos (quase sempre com viés econômico), preconceituosos, racistas e classistas, são estruturais no Brasil. Esses discursos têm sido objeto de preocupação do estado brasileiro, que tem procurado superá-los com políticas de educação em direitos humanos (LDB, PNEDH, PNDH-III etc.) e administradores públicos corajosos que compram a briga contra a colonização da vida. No entanto, o que ainda permanece arraigado é o discurso mais sutil do intelectual e do administrador público “coxinha”, do jurista e do jornalista “pinguim”, enfim, daquelas pessoas que, depois de terem estudado muito na “escola formal”, passam a colocar em prática seus conhecimentos em absoluto desrespeito e descaso em relação aos gostos estéticos e aos conhecimentos que pobres, índios, quilombolas etc. obtiveram na “escola da favela”, na “escola da mata”.

Nós vivemos uma lógica tão perversa do “sucesso” que o sujeito passa anos se esfolando nas estruturas rígidas e fechadas das universidades, da administração pública, nas altíssimas jornadas de trabalho, na submissão a um trabalho reificante travestido de “esforço pessoal”, no repúdio absoluto ao ócio, ao descanso e ao prazer, que qualquer modo de vida que não seja essa absurda prostituição reificante passa a ser considerado como vagabundice. Mais do que isso, a assunção irrefletida da beleza e do benefício que é colocado no fim da linha de todo esse processo de reificação passa a ser considerado como o único parâmetro de beleza e de correção.

Pra retomar a canção citada no início deste texto, não estatizar um sentimento significa colocar todas as verdades na pauta da discussão, do diálogo, da disputa. Nenhuma política de participação social pode se consolidar dentro de parâmetros democráticos se, por exemplo, a única forma de protesto admitida for aquela autorizada pelas caras de nojo daquela apresentadora do Jornal Nacional que conseguiu ser mais irritante do que a esposa do rapaz de topete branco… aquela senhora que de poeta só tem o sobrenome. Se apenas as manifestações organizadas por ONGs, associações e OSCIPs forem consideradas como formas legítimas de participar na condução dos assuntos públicos do país, então não deveríamos falar em Política Nacional de Participação Social, mas em Política Nacional de Homogeneização e Controle Social.

Nenhuma política de participação social que de fato se comprometa com a democracia pode ser implementada por gestores públicos e militantes que só sabem reconhecer a importância do que fez parte da sua própria formação e considerar como subcultura tudo o que não faz parte do que foi considerado como “modelo” por alguém em quem eles acreditavam, sem nenhuma discussão prévia. Como aquelas pessoas que decidem curtir o carnaval em locais públicos e impõem, rodopiantes, as músicas do Chico Buarque às pessoas que querem escutar outras coisas “menos nobres”. Eu gosto, ouço e cito o Chico Buarque, mas não tenho condição de dizer que ele é tudo neste mundo!

Pode parecer besteira essa regressão toda a exemplos tão corriqueiros, mas vale uma avaliação pessoal para considerarmos quantos de nós já não pensamos no sucesso de políticas de “ressocialização de presos” com aulas de música clássica e de outras atividades que agradam o nosso paladar, sem nos preocuparmos com o paladar daqueles que vão receber o que eu tenho a oferecer. E mais! Quantos de nós não acreditamos fielmente que, de fato, temos algo a oferecer?! Quantos de nós já paramos para refletir quão sem graças são as nossas vidas e quão estúpidos são os nossos hábitos? Sem essa reflexão, permaneceremos enclausurados em nossas verdades e, enquanto povo, não estaremos preparados para participar e contribuir efetivamente para uma política de participação social que se pretende democrática.

A esse respeito, e já que comecei citando uma música da banda Legião Urbana, quero citar outra, Conexão Amazônica, que diz: Estou cansado de ouvir falar em Freud, Jung, Engels, Marx, intrigas intelectuais rodando em mesa de bar. O que eu quero eu não tenho, o que eu não tenho eu quero ter, não posso ter o que eu quero e acho que isso não tem nada a ver… É exatamente essa a sensação de alguém que tem a sua experiência de vida recusada, desconsiderada, subordinada a outra experiência de vida que é considerada melhor e mais válida pelo simples fato de dizer respeito às experiências pessoais daqueles que estão no poder. De fato, isso não tem nada a ver!

Sempre manifestei meu descontentamento com as comemorações em torno das cotas para indígenas em Universidades que, a despeito de abrirem suas portas para os indígenas, não abrem suas mentes para os conhecimentos indígenas! Ora! Se estamos falando em igualdade, então que seja a igualdade que garanta a equivalência, e não uma reles inclusão que, na realidade, é uma genuína assimilação etnofágica. Paulo Freire expressou de forma magistral essa ideia:

Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco. Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão sua, uma espécie de susto, e pretender impor o seu status, é manter-se nostálgico de sua origem. Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os que passam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo[1].

E para que não fiquemos apenas com aquela sensação de que o pobre quer ser rico e ponto, novamente com Paulo Freire ofereceremos um contraponto:

Há, por outro lado, um certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada “classe superior”. [2]

O Vladimir Safatle, num livro incrível intitulado A esquerda que não teme dizer seu nome, fala da importância de uma esquerda que não pretende se perpetuar no poder enquanto forma rígida e, sobre a importância de abertura radical à participação social, Safatle diz:

Estamos muito acostumados com a ideia de que a democracia realiza-se naturalmente como democracia parlamentar. Isso, no entanto ,é falso. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização de mecanismos de poder de participação popular direta. (…)

O modo como iremos implementar a política de participação social instituída pelo Decreto 8.243/14 é um livro aberto, um mar de possibilidades, e pode tanto ser a concretização da democracia, como pode ser mais um grande salto numa piscina vazia na República das Bananas. No entanto, se não tivermos firme a ideia de que ninguém é melhor do que ninguém e que a vontade de todo mundo tem o mesmo valor, tanto a do pobre como a do rico, a do branco e a do preto, do haitiano e do alemão, permaneceremos vivendo num despotismo esclarecido em que senhoras e senhores que pensam exatamente igual definem o que é bom para esse mundaréu de povos e grupos que vivem no Brasil. Novamente com Safatle:

A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar novas regras e instituições. Não é só em eleições que tal poder se manifesta. Há uma plasticidade política própria à vida democrática que só arautos do pensamento conservador compreendem como “insegurança jurídica”. (…)

Se esse despotismo permanecer, continuaremos assistindo ao acirramento da violência do Estado, permaneceremos assistindo prisões e investigações ilegais de manifestantes que querem sugerir outras regras e outras instituições, advogados sendo espancados como foi o Dalmo Dallari no fim da década de 70 e como foi o Benedito Barbosa, o Daniel Biral e como têm sido detidos ilegalmente outros tantos, como a Eliosa Samy e um sem número de manifestantes, em pleno ano de Copa do Mundo e de eleições federais e estaduais no Brasil.

A abertura para a pluralidade é fundamental numa democracia, como também é fundamental para uma democracia que se pretende radicalmente consolidada que essa pluralidade se manifeste e ecoe onde quer que seja. Aliás, não desistir e não se amedrontar significa resistir e, para concluir, vale lembrar que o direito à resistência à opressão está garantido no artigo 2º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão desde 1789.

Resistir à opressão é um direito dos mais humanos e participar da vida política é consequência e garantia disso! Por uma república democrática de seres humanos livres e iguais!

Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado e militante de direitos humanos. 

Referências:

[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. p. 22.

[2] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. p. 28.

 

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