Entre musas e hotentotes: explorações da imagem das mulheres negras e latinas ou sobre como o racismo e o sexismo venceram o copa do mundo

estatuapor Luciana Brito* para o Portal Geledés

Nesta semana que se celebra o dia da mulher negra latino americana e caribenha, cabe-nos uma reflexão sobre os resultados da intersecção de racismo, sexismo e olhar imperialista colonial e patriarcal sobre estas mulheres.

Escolhi analisar como isso aconteceu durante a copa do mundo, quando a mídia nos forneceu uma enxurrada de imagens e informações sobre o comportamento feminino nos estádios. Não se trata bem do comportamento das mulheres, mas sim, numa perspectiva colonialista e patriarcal, a mídia explorou aquilo que entende ser o principal atributo das mulheres, não só no Brasil, mas mundialmente: a “sensualidade”.

Tivemos alguns indicativos de que não seria diferente disso. Já em março deste ano, a revista da Fifa, Fifa Weekly, lançou uma matéria especial chamada “Brazil for beginners”, ou “Brasil para iniciantes”. O artigo pretendia ser um “manual de sobrevivência” para o estrangeiro que visitaria o “país tropical” durante os jogos, contendo informações sobre como lidar com o povo brasileiro. O mais chocante é a imagem escolhida para descrever o ambiente nos trópicos. Duas mulheres negras deitadas na areia da praia, de costas, sem nomes ou rostos revelados. Entretanto, as sua nádegas eram expostas no momento em que se bronzeavam sob o sol carioca. A imagem circulou o mundo todo, um cartão de visitas para o macho branco estrangeiro a respeito de tudo “de melhor” que temos a oferecer: a praia, o futebol e sexo barato garantido pelas brasileiras negras ávidas pelo seu redentor, também sedento por concretizar o sonho colonial contemporâneo.

negras praia

Entretanto, não foi a imagem que chocou a maioria dos brasileiros e mesmo as brasileiras, exceto as feministas, sobretudo as feministas negras. Certamente a ausência de reprovação seria fruto do nosso olhar naturalizado sobre o corpo da mulher negra. Enquanto jovem, a erotização do seu corpo e a “sensualidade” resumida a bundas e coxas, não rostos, são vistos como tudo que interessa à sua identidade. Nacionalmente, a rede globo repete todos os anos, durante o carnaval, aquilo que acreditam que somos quando nos enquadramos no “perfil globeleza”. Assim como na revista da FIFA, no Brasil são também as formas “exageradas” das mulheres negras são vendidas à disposição do consumidor. Exemplos? Citarei o mais recente para não mencionar vários outros. O quadro “musa do carnaval” promovido por Luciano Huck, além da “caça às mulatas” promovidas pelo programa Fantástico, que este ano foi ainda mais cruel quando escolheu uma das suas poucas atrizes negras para ser a leiloeira do mercado moderno de mulheres negras.[2] Na imagem, mais uma vez, assim como na revista da FIFA, as mulheres são expostas pelo que a mídia brasileira acredita que define sua identidade: não seus nomes e rostos, mas suas nádegas.[3]

globeleza

Esse imaginário nacional tão harmônico em relação ao pensamento internacional sobre como seriam as mulheres (negras) brasileiras seria uma mera coincidência, uma peça das mídias modernas que possibilitam uma rápida circulação de imagens, de ideias e fantasias que tem como mote principal a objetificação do corpo feminino? Não. Desde já podemos dizer que isso não é uma coincidência e nem é algo recente.

Viajantes e cientistas estrangeiros de passagem pelo Brasil durante o século XIX divulgaram pelo mundo suas impressões sobre nos trópicos, construindo uma imagem sobre o outro negro, feminino e colonial. Essa imagem seria divulgada no exterior não só com propósitos científicos mas também como parte de uma narrativa que serviria ao deleite de outros potenciais colonizadores sedentos por também consumir os corpos explorados pelos seus pares.

O alemão Hermann Burmeister, por exemplo, durante sua estadia no Brasil entre os anos de 1850 e 1851, estava buscando evidências que comprovassem as teses já em circulação na Europa e Estados Unidos sobre a proximidade entre os povos africanos e os primatas. Sim, macacos, outra associação ainda comum nos gramados futebolísticos pelo mundo a fora.

Voltando às impressões de Burmeister sobre os povos negros na sociedade escravista brasileira, as mulheres negras foram as que mais despertam sua atenção. Sobre as africanas, o cientistas destacou sua “masculinidade”, que era diferente das feições delicadas e comportamento apropriado ao sexo feminino, o que poderia ser visto nas mulheres européias. Frustrou ao viajante o fato de essas mulheres, escravizadas e libertas, trabalhares vestidas com longas roupas que só lhes permitia ver seus pés.

mulata

Mas foi sobre as mulheres chamadas “mulatas”, fruto da “mistura” de uma pessoa negra (geralmente mulher) e uma pessoa branca (geralmente homem) que Burmeister dirigiu maior atenção e suas expectativas eróticas. Segundo ele, dada a sexualidade exacerbada destas mulheres, que teriam suas características “melhoradas” em relação às mulheres africanas devido à mistura racial, elas não passariam incorruptíveis em uma sociedade escravista. Aliás, a proporção de sangue branco que corria em suas veias, segundo ele, também seriam responsáveis por arrefecer suas “paixões”, ou seja, seus desvios morais. O próprio cientista descreveu que, em alguns momentos, ele mesmo teve que lembrar da sua condição de homem europeu para resistir às suas provocações das “fêmeas” locais ávidas por entregar suas “qualidades” ao explorador.[4]

Outro cientista, o suíço radicado nos Estados Unidos, Louis Agassiz, quando veio para o Brasil em 1865 também estava em busca de evidências que comprovassem a inferioridade das raças puras e mistas, ou seja, africanos e mestiços. Durante sua passagem pelo Rio de Janeiro e Manaus, Agassiz explorou o corpo de mulheres africanas, indígenas e mestiças produzindo fotografias que nitidamente, ao mesmo tempo que demonstravam um intuito erótico, também revelavam o poder do cientista ao persuadir aquelas mulheres a serem clicadas semivestidas, com seios à mostra. Podemos captar os olhares constrangedores destas mulheres diante das câmeras, o que revela seu desconforto.[5]

Exemplos como o destes viajantes cientistas que passaram pelo Brasil no século XIX nos mostram como racismo, sexismo e imperialismo caminhavam e ainda caminham juntos, uma vez que no imaginário do explorador a terra desconhecida, a dominação dos trópicos se manifesta através da apropriação desse outro, que é negro, indígena e feminino.

Voltando ao mundo de hoje, mas sob a mesma orientação da expectativa de consumo do corpo da mulher nativa dos trópicos, ainda no mês de junho deste ano, uma pesquisa promovida por um site de relacionamentos online perguntou quem eram os homens e mulheres mais sexys do mundo. Enquanto os homens brasileiros ocuparam a oitava posição, as mulheres brasileiras ocuparam o primeiro lugar no ranking. [6]

copa

A propaganda que promovia viagens em busca das mulheres mais sexys do mundo se sustentava em mitos que tomam forma de verdades antropológicas na mídia internacional. O pior dos artigos que li, cujo título é: “mulheres brasileiras comemoram o festival de homens na copa do mundo”[7] é encabeçado pela foto de uma mulher negra dançando com um homem branco vestindo camisa da seleção argentina. Ele é descrito como italiano, ela, cujo nome é revelado no artigo, é uma moradora do subúrbio carioca que afirma estar aproveitando, junto com suas amigas, a variedade de homens no mercado, fato promovido pela copa do mundo. O artigo justifica a “nossa” felicidade em receber homens estrangeiros pela alta da mortalidade entre homens nacionais, o que fazia da invasão masculina internacional a solução para o problema destas mulheres brasileiras solteiras.

Segundo o artigo, a vinda dos estrangeiros não era só uma solução para as nossas carências sexuais, mas também financeiras. Embora reconhecendo rapidamente os vários episódios de assédio sexual envolvendo os “gringos”, por sua vez, eles também reclamavam da dependência econômica das suas anfitriãs, dispostas a tirar proveito deles na hora de “pagar a conta”. Por fim, o artigo ainda revela as expectativas das brasileiras sobre brasileiros e estrangeiros.

É um festival sim, mas de imaginário colonial, quando elas afirmam que preferem os estrangeiros aos brasileiros porque seus compatriotas são “brutos”, diferente dos estrangeiros que são “gentis”. Fazendo um exercício imaginativo, podemos inverter as falas e pensar que a mesma coisa poderia ser dita por uma alemã sobre seu namorado brasileiro em comparação aos seus compatriotas. E aquelas que sofreram assédio sexual dos turistas, os considerariam respeitosos gentlemans também?

Novamente, tudo depende do que queremos acreditar, inclusive do ponto de vista que o próprio autor do artigo buscava defender.

Nesse jogo em que racismo, sexismo e imperialismo caminham juntos, obviamente as mulheres brancas, brasileiras e estrangeiras, também são vítimas de objetificação, só que de um outro lugar. O Brasil, no seu fascínio pelo branquitude, também publicou várias das suas listas de  “musas da copa”. Brinquedinhos para distrair o stress masculino nos estádios ou para alimentar as fantasias dos marmanjos que estavam em casa, lá estavam belgas, alemãs, italianas, enfim, representantes da branquitude européia, ou seja, as “brancas de verdade”. Vez ou outra elas eram revezadas pelas latino-americanas, mas não aquelas que representavam a diversidade do continente.

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A “fina flor” da América Latina era representada por brasileiras, colombianas, uruguaias, paraguaias, enfim todas brancas…africanas e brasileiras negras ficaram de fora. [8] Para ser “musa da copa”, obrigatoriamente a mulher deve ser branca e magra, ponto final. Assim, prevaleceu o padrão estético rígido e excludente, que já conhecemos e que prevalece na mídia em geral e na fantasia masculina, especificamente dos homens brasileiros em busca de troféus sexo-afetivos. Elas, as musas da copa, também não tem nome nem opinião, mas tem a nacionalidade que justifica sua sensualidade ou atesta sua branquitude.

Então qual seria a diferença na forma como somos exploradas? Me arrisco em dizer que, internacionalmente, mulheres brasileiras são sexy e a cor da pele da mulher pode potencializar isso. Nacionalmente, mulheres brancas brasileiras (e estrangeiras) são bonitas, são musas. As negras, são para o sexo. As musas são reveladas pelos seus rostos, cabelos…as negras são “reconhecidas” pelas nádegas e pelo apetite sexual desenfreado. Aí, o racismo/sexismo dialoga com desde Burmeister até o programa da rede globo.

Sabemos que isso não é novo, nos surpreende é que a percepção da sociedade pouco tenha avançado. A exploração do corpo feminino ainda se dá na forma de falsos elogios, de falsos reconhecimentos que não empoderam ninguém, pelo contrário, nos torna vulneráveis à violência sexual e exclusão, dentro e fora do país.

Impossível não lembrar da Venus Hottentote, Sarah Bartmann, a jovem sul-africana que em 1814 foi levada para a Europa, onde seu corpo foi exposto e explorado devido às suas formas consideradas exóticas. Vítima do sado-erotismo europeu, misturado com curiosidade e fantasias que eram nutridas sobre as mulheres não brancas, Sarah foi avaliada por cientistas que racializavam suas diferenças, quando elas não eram inventadas. Sarah morreu em Paris em 1815, e seu corpo foi entregue a cientistas que exploraram seu corpo até depois da sua morte. [9] Viria daí esse legado de exploração, esse fascínio sobre as formas femininas não-brancas?

Assistindo essa profusão de nádegas negras e peitos negros e argumentos é impossível não refletir sobre essas coisas.

Como não pensar no que o corpo feminino negro significou durante a escravidão nas Américas, tanto na força de trabalho como instrumento de exploração sexual? Recentemente, uma exposição da artista afro-americana Kara Walker, provoca esta reflexão através do seu último trabalho Suggar Babies na qual a artista, através de imagens feitas de açúcar faz uma provocação sobre o trabalho de homens, mulheres e crianças nas usinas de açúcar dos EUA. Por fim, uma imagem gigante de uma mulher negra, também feita de açúcar, no faz refletir sobre as múltiplas formas de exploração do corpo feminino, através do trabalho braçal e sexual que enriqueceu as Américas escravistas. Mais chocante é a reação do público em relação à imagem, que se diverte sadicamente com as formas e o órgãos sexuais da escultura, provocando o sorriso trágico/sádico da maioria dos expectadores.[10]

venus

Observando a escultura de uma mulher negra gigantesca feita de açúcar e a reação dos observadores dirigidas ao seus seios, vulva e nádegas, conclui que, tragicamente, a exploração do corpo feminino, sobretudo negro, não sensibiliza quase ninguém. O consumo do corpo das mulheres negras, seja no século XIX ou XX, seja no Brasil ou nos EUA ou na Europa ainda é fruto da transversalidade perversa de racismo, sexismo e imperialismo que norteiam a maioria dos olhares, ainda que as vezes num falso discurso de valorização e reconhecimento. A exploração e objetificação do corpo feminino, a erotização possessiva dos nossos corpos, pode ser vista tanto na desumanização, quanto na invisibilidade quanto nas políticas de controle do comportamento sexual feminino, sobretudo das mulheres negras pobres.

Portanto, a exploração, erotização e violência dirigida ao corpo das mulheres negras não dialoga de forma alguma com aquilo que reivindicamos, que é a autonomia para tomar quaisquer decisões sobre nossos corpos. Esta falsa valorização no feminino negro que entende que reconhecê-lo é utilizá-lo para aquilo que acreditam ser sua única razão de existir, o prazer do outro (ou da outra), não é aquilo que nos faz agentes da nossa sexualidade.

Assim, mulheres negras de qualquer parte, sobretudo aquelas que carregam outras marcas identitárias marcadas por estereótipos, como as mulheres negras latinas e caribenhas, tem uma intensa agenda pela frente e, organizadas, fortalecemos a luta para virar esse jogo.

Rumo à marcha de mulheres negras em 2015!

*Luciana Brito é doutora em história, militante do grupo de mulheres do MNU e também integra a Rede de Mulheres Negras da Bahia.

Notas:

[1] Ver matéria sobre a revista em: http://oglobo.globo.com/esportes/copa-2014/cartilha-da-fifa-para-turistas-estrangeiros-causa-polemica-11956639

[2] http://www.brasildefato.com.br/node/26790

[3] http://marchamulheres.wordpress.com/2013/12/04/a-gente-nao-se-ve-na-globo-o-caca-as-mulatas-e-a-luta-feminista/

[4] Sobre a passagem de Hermann Burmeister pelo Brasil ver: Brito, Luciana da Cruz. Impressões norte-americanas sobre escravidao, abolição e relações raciais no Brasil escravista. Tese de doutorado. FFLCH-USP, 2014.

[5] Para mais informações sobre a vinda de Agassiz para o Brasil e suas fotografias, ver: Machado, Maria Helena Pereira Toledo e Sasha Huber (orgs.), (T) Races of Louis Agassiz: Photography, Body, and Science, Yesterday and Today/Rastros e Raças de Louis Agassiz: Fotografia, Corpo e Ciência, Ontem e Hoje. São Paulo: Capacete, 2010.  Mais informações e algumas das fotos da Expedição de Agassiz, assim como esta reproduzida neste texto,  podem ser vistas em http://mirrorofrace.org/machado/; http://mirrorofrace.org/gomes/; http://mirrorofrace.org/monteiro/

[6] http://www.huffingtonpost.com/2014/06/18/the-sexiest-men-in-the-wo_n_5502999.html

[7] http://news.yahoo.com/brazilian-women-celebrate-wcup-bonanza-men-040336622.html?soc_src=mediacontentstory

[8] O link a seguir dá acesso a uma lista de “musas da copa”, mas existem várias, embora todas seguindo o mesmo padrão: http://g1.globo.com/fotos/fotos/2014/06/fotos-musas-anonimas-da-copa-do-mundo-2014.html#F1273027

[9] Sobre Sarah Bartmann ver: CITELI, Maria Teresa. As desmedidas da Vênus negra: Gênero e raça na história da ciência. In: Novos Estados CEBRAP, n.61, nov. 2001.

[10] http://creativetime.org/projects/karawalker/

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