Terra Indígena Buriti: Comunidade Indígena Terena divulga carta aberta ao Ministro da Justiça

Foto: página de Luiz Henrique Eloy, no facebook
Foto: página de Luiz Henrique Eloy, no facebook

CARTA ABERTA DA COMUNIDADE TERENA DA TERRA INDÍGENA BURITI 

Ao excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça

José Eduardo Cardoso

A comunidade Terena da Terra Indígena Buriti, localizada nos municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, no estado de Mato Grosso do Sul, preocupada com o desfecho da “negociação” feita entre o governo federal e os fazendeiros que detém o título de propriedade de nossas terras tradicionais na região serrana de Maracaju, com vistas a devolver parte do nosso território, vem a público prestar esclarecimentos e manifestar posição tomada em conjunto com nossas lideranças:

Primeiro, que o processo de demarcação de todas as terras indígenas no Brasil expirou em 1993 e o governo federal não cumpriu com o que determina a Constituição Federal de 1988. Muitos anos se passaram desde então e o Estado Brasileiro nada tem feito de efetivo para garantir a defesa de nossos direitos territoriais, muito pelo contrário. A consequência disso é o acirramento dos conflitos entre comunidades indígenas e ruralistas em todo o país, resultando em perdas para ambos os lados. Para nós, povos originários, isso tem custado a vida de centenas de lideranças em Mato Grosso do Sul e em outros estados da Federação, inclusive parentes assassinados de maneira covarde por pistoleiros contratados por fazendeiros e até por policiais a serviço do próprio Estado.

Segundo, que a presença dos Terena na região serrana de Buriti é anterior à década de 1850 e, portanto, antecede à existência dos atuais fazendeiros na região, bem como de seus antepassados, conforme atestam estudos feitos para a FUNAI e para a Justiça Federal. Esta situação está suficientemente comprovada no laudo pericial realizado em 2003 para a Justiça Federal no estado, produzido por dois respeitados pesquisadores. Infelizmente, ao que tudo indica, nenhum magistrado até o momento se dignou de ler atentamente a esses estudos ou de vir à região de Buriti tomar ciência da situação. Além disso, nós, Terena de Buriti, somos povos originários, o que significa dizer que nossos antepassados estavam aqui antes mesmo do surgimento do próprio Estado Brasileiro e suas leis. Essas leis, por sua vez, foram feitas para regularizar uma série de crimes cometidos contra os povos indígenas, como ocorre na legalização de propriedades privadas surgidas a partir de violentos processos de esbulho para a usurpação de nossos territórios.

Terceiro, que o espaço territorial compreendido pelo atual estado de Mato Grosso do Sul somente pertence ao Brasil porque os Terena e outros povos indígenas lutaram bravamente ao lado do Exército Brasileiro na conhecida Guerra do Paraguai (1864-1870). Nós também contribuímos para defesa da soberania do país e para que esta vasta região fizesse parte do território nacional. Não somos, portanto, estrangeiros nessas terras e não aceitamos ser chamados de “índios paraguaios”, como os advogados e os meios de comunicação a serviço do movimento ruralista costumam nos caluniar.

Quarto, que depois da referida guerra, os Terenas foram expulsos de grande parte de seu território na Serra de Maracaju, onde está localizada a região de Buriti. Este foi o “muito obrigado” que o Estado Brasileiro nos deu após termos enfrentado bravamente as tropas de Solano Lopez, inclusive com a perda de muitos parentes em combate, conforme registrado em nossa memória e nos livros do Visconde de Taunay. Depois disso muitos parentes foram forçados a trabalhar como escravos para fazendeiros da região, muitos dos quais dão nome a ruas, praças, escolas e outros lugares em Mato Grosso do Sul.

Mesmo nesta situação, sempre visitamos, ainda que às escondidas, nossas terras tradicionais, mantendo-nos a elas vinculados. Nas décadas de 1920 e 1930 formos confinados em uma reserva criada pelo governo, cujo tamanho atual é de 2.090 hectares, onde vivem mais de 2.500 pessoas. Mas nunca ficamos contentes com esse pedacinho de terra. Por este motivo a reivindicação para a ampliação da área é bastante antiga e na década de 1930 uma comissão de lideranças chegou a ir ao Rio de Janeiro, então a Capital Federal, para tratar do assunto, sem obter sucesso. Décadas depois, após muitas décadas de luta, a FUNAI finalmente constituiu um Grupo Técnico para fazer os estudos sobre a ampliação da área, chegando a 17.200 hectares, embora saibamos que nosso território é ainda maior. O relatório final foi concluído e o resumo circunstanciado desse processo foi divulgado em 2001, garantindo a publicização dos atos da FUNAI, tornando-o um ato administrativo perfeito.

Quinto, que a área de ampliação da Terra Indígena Buriti é uma terra indígena tal qual define o Art. 231 da Constituição Federal de 1988. Não pode ser tratada, portanto, como reserva indígena, como possibilita o Estatuto do Índio, a Lei n. 6001/73, embora manobras administrativas e judiciais têm sido feitas para nos enganar. Por este motivo não assinaremos nenhum acordo que venha tirar os direitos originários que temos sobre esta terra. Fazemos questão de deixar isso claro para que todos saibam que este tipo de manobra está sendo feita para resolver o impasse criado por uma parte dos fazendeiros, cuja postura intransigente impede que toda a área seja liberada para a posse e usufruto coletivo e permanente de nossa comunidade. Frisamos então que não aceitaremos qualquer proposta de acordo que não englobe a totalidade da área de ampliação da Terra Indígena Buriti, pois não queremos pedaços ou retalhos de terras.

Sexto, que especificamente em relação à mesa de “diálogo” constituída pelo Conselho Nacional de Justiça, denunciamos publicamente a nomeação do arqueólogo Gilson Rodolfo Martins para fazer parte da comissão designada para esta finalidade. Este senhor não é um “Estudioso da Questão Indígena em Mato Grosso do Sul”, mas um pesquisador ligado aos ruralistas, conhecido por trabalhar contra os Terena e outros povos indígenas que vivem no estado. A indicação de alguém tão parcial assim aponta vícios na origem dessa mesa de “negociação”, o que tem ocorrido desde 2013. Mesmo assim, nós, Terena de Buriti, temos depositado esperanças no processo e respeitado todos os prazos. Estamos aguardando isso tudo com muita dor e sofrimento, chorando por pelos parentes queridos assassinados na luta pela terra.

Não esquecemos e jamais esqueceremos a morte de Oziel Gabriel, ocorrida no dia 30/05/2013, e de tantos parentes feridos durante o último confronto com a Polícia Federal. Por isso esperamos uma posição firme e constitucional do governo federal. No entanto, mais uma vez o que vemos é o não cumprimento do acordo, mas o empenho em vão de palavras e a ação criminosa do próprio Ministério da Justiça, o qual demonstra não ter capacidade de fazer valer o termo de acordo para a devolução de toda a Terra Indígena Buriti a nós, povo Terena de Buriti.

Sétimo, que não aceitamos que nossas terras tradicionais sejam retalhadas pelo Estado Brasileiro e seguiremos lutando pelos 17.200 hectares que compreendem a área ampliada da Terra Indígena Buriti, conforme consta a portaria declaratória MJ n. 3.079/2010. Estamos dispostos, inclusive, a morrer em defesa de nossa terra.

Oitavo, que não aceitamos quaisquer mudanças negativas na legislação indigenista brasileira e internacional e para defender nossos direitos estamos juntos com os demais povos indígenas no Brasil.

É o que temos a registrar.

Terra Indígena Buriti, 30 de junho de 2014.

Fonte da matéria: Buriti News MS.

 

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