Cooperar, verbo infinito? Algumas facetas da cooperação internacional na atualidade

ajuda ao Haiti

“Claro, nós encorajamos toda ajuda que nos ajude a eliminar a ajuda. Mas de maneira geral, as políticas de ajuda têm frequentemente acabado por desorganizar, por minar nosso senso de responsabilidade no que diz respeito aos nossos próprios negócios no plano econômico, político e cultural. Nós assumimos o risco de usar novos métodos para alcançar um bem estar. (Sankara, s/d, apud Dembele, 2014[1], tradução livre)”.

Patrícia dos Santos Pinheiro e Sérgio Botton Barcellos*, em Combate Racismo Ambiental

Está sendo noticiado internacionalmente que o Haiti tem sido desrespeitado em sua autonomia, tema tratado de forma detalhada no documentário Assistance Mortalle. A reconstrução do país afetado em 2010 por um grande terremoto, onde mais de 220 mil pessoas morreram e mais de um milhão e meio ficaram sem moradia, a qual incluiria obras de infraestrutura, moradias, reorganização produtiva, parece estar longe de terminar. Mas antes ainda dessa catástrofe, a ação da Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), de composição civil e militar, criada em 2004 pela ONU como uma missão de estabilização, é simbólica da perda de soberania de um país considerado “subdesenvolvido”.

E o terremoto que assolou esse país acabou abrindo uma brecha para a ajuda internacional se instalar ad infinitum. Gerenciada por um conselho da cooperação internacional, dirigido e planejado por EUA, França e Canadá e com o apoio militar majoritário do Brasil[2], essa assistência está sendo  denunciada como ferindo a autonomia do país, que ainda se vê com graves problemas anos após o desastre. As notícias oficiais são contraditórias, pois apesar das ONGs relatarem os avanços da cooperação humanitária, os problemas se multiplicam: epidemias de cólera são relatadas pela população local como tendo sido trazidas junto com a Minustah, a área onde ocorreu o terremoto não foi reconstruída, nem todos os desalojados foram realocados e muitas empresas estrangeiras se instalaram no país em condições duvidáveis, gerando a rejeição da população. Além disso, a imprensa alternativa mostra que o quadro político do Haiti é instável, com o combate a oposições internas e a ocorrência de eleições fraudulentas apoiadas pelas grandes potências.

Ao mesmo tempo, na África, ao longo da história, a presença de intervenções externas não é diferente, intercalando ações militares e de ação humanitária. A cooperação internacional se mostra como a faceta humanitária de uma relação de dependência, uma ferramenta importante na legitimação da presença dos países europeus, asiáticos e norte americanos, bem como a entrada dos “emergentes”, como o Brasil e a China, nos países chamados de “subdesenvolvidos”, “em desenvolvimento” ou do Sul. Com isso, vemos que se existem formas explícitas de reforçar a necessidade de ingerência externa, há também sutilezas que demoramos a compreender. Parte essencial do jogo geopolítico, em que os países movem suas peças de uma maneira que parece muito benevolente aos olhos do mundo, a intervenção externa se materializa por uma série de redes que incluem governos e organizações da sociedade civil, com a presença significativa de agências da Organização das Nações Unidas (ONU) e ONGs internacionais.

Mas não se trata de dizer que o caminho é dar as costas para a recorrência de condições de desigualdade social, como no caso dos países da África e o Haiti, ou considerar qualquer ação social internacional como neocolonialismo. A questão é dissolver uma imagem ilusória de que a chegada de projetos sociais resolveria os problemas de países assolados não somente por guerras e catástrofes naturais, mas também pela ação exploradora daqueles mesmos que dizem ajudar, mas na realidade afrontam as soberanias nacionais e em muitos casos fazem estudos e mapeamentos com rompante social. Esse utilitarismo nas ajudas humanitárias não pode ser ignorado, sustentado não apenas por mediadores externos aos “ajudados”, mas também por líderes locais que não têm interesse em perder seus privilégios conquistados com as políticas colonialistas.

As hierarquizações do desenvolvimento, que podem oscilar entre países “desenvolvidos”, “emergentes”, “subdesenvolvidos” e seus eufemismos, possuem funções muito específicas no jogo geopolítico atual: mostram em quem o mundo deveria se espelhar. E para identificar os países dentro da hierarquia mundial do desenvolvimento, há parâmetros específicos, com índices econômicos, políticos e sociais estabelecidos (PIB, IDH, Gini etc) por quem está no topo dela. Essa classificação rege também a configuração da ajuda humanitária, voltada em especial aos ditos subdesenvolvidos, pois se um país necessita de ajuda para tentar chegar ao objetivo de entrar para o clube dos países desenvolvidos, é deles que ele precisaria receber ajuda.

A ironia é que os países encaixados na lista de subdesenvolvidos geralmente possuem muitas riquezas naturais como ouro, urânio, ferro, madeiras nobres, reservatórios de água, além do inestimado petróleo, mas apesar da riqueza de recursos naturais, suas populações sofrem frequentemente com a falta de elementos básicos para viver, como alimentos. Do ponto de vista político, afirmam os neocolonizadores de plantão, esses países não teriam as instituições e a estabilidade política para gerir de maneira soberana seus recursos. Essa crença ou retórica de que eles não têm os elementos para gerir seus recursos ou a presença desses recursos leva a uma pressão para que justamente as ausências (de estabilidade, de instituições, de qualidade de vida da população, de tecnologias, de metodologias) sejam a principal justificava para a presença da “cooperação”.

Outro caso recente em destaque internacional diz respeito à Nigéria. A ação do Boko Haram, principalmente nesse país, mas também em outros quatro países da África, justificou uma intervenção militar, dada a instabilidade política gerada por esse grupo extremista, após uma grande comoção internacional em relação ao sequestro de dezenas de meninas e mulheres pelo Boko Haram. Apesar disso, não há menção à fonte de financiamento dessa organização na grande mídia internacional, nem um detalhamento dos interesses internacionais em disputa nesse caso. Mas a sequência dos fatos merece atenção: o sequestro das meninas e mulheres aconteceu poucos meses após as eleições, que manifestaram a crise do país, e logo em seguida esse país se tornou um dos centros da intervenção militar de países como os EUA e o Reino Unido na região, que também contava com um assédio crescente da China. Também é importante considerar que a Nigéria é o país mais populoso do continente, o oitavo produtor de petróleo no mundo e as suas exportações representam 11% das importações dos EUA.

Mas é preciso contextualizar essa presença. No caso do continente africano, colonizado pelas potências europeias, principalmente França e Reino Unido, mas também Bélgica, Alemanha, Espanha, Portugal e Itália, a década de 1950 e 60 foi marcada pela independência da maioria das colônias africanas mas, apesar disso, uma nova forma de dependência rapidamente surgiu: a cooperação. No caso francês, relatado detalhadamente em relatório da ONG Survie, já no ano de 1961 foi criado o Ministério da Cooperação, que substituiu as ações do antigo Ministério das Colônias[3].

Com isso, a França se tornou a principal “parceira” de suas antigas colônias, com acordos de cooperação econômica, militar, judiciária, técnica, cultural, financeira, executados a partir de um verdadeiro aparato de técnicos e conselheiros franceses, enviados aos novos países para criar instituições, estabelecer programas de desenvolvimento econômicos e formar governantes locais. A administração dos novos governos era formada basicamente junto às elites locais, sendo que o apoio local foi essencial para fortalecer esse sistema neocolonial, pois a soberania é evocada como sendo contemplada, mesmo que de maneira distante da realidade da grande maioria dos africanos.

Se no período colonial as potências europeias já haviam imposto sua língua, moeda, sistema administrativo e jurídico, a cooperação manteve uma influência privilegiada desses países na África. E mais do que isso, está colocada a imposição de um modo de pensar externo (apesar das enormes diferenças sociais, culturais e cosmológicas). São implementadas estruturas de Estado que já nascem corrompidas, burocratizadas e que estimulam modelos de desenvolvimento que os países ocidentais julgam ser os mais adequados aos países subdesenvolvidos: fornecedores de matéria prima e dependentes da importação de diversos produtos. Para tanto, contavam com o apoio de uma mecanização descontextualizada e obras ineficientes, como as listadas por René Dumond em seu livro, “L’Afrique noire est mal partie”, datado de 1962, mas muito atual no que diz respeito às dificuldades da agricultura e da industrialização no continente.

No caso da França, o sistema Françafrique (ou “France à fric”, ou seja, “França para o dinheiro) foi anunciado pelo presidente François Hollande como findado. Mas não é possível dizer que os laços neocoloniais estejam perto de serem rompidos, pois as redes de ajuda estão vivas e circulam pelos países africanos em seus belos carros 4×4, atuando em temas clássicos da ajuda humanitária, como o combate à fome, ações sanitárias, agricultura bio, alfabetização e acesso a tecnologias. Com isso, as organizações da sociedade civil acabam tendo um papel essencial na defesa dos interesses ocidentais, apesar de seu vanguardismo na defesa dos direitos humanos e na proteção do ambiente, também se utilizando de pessoas bem intencionadas e preocupadas em agir em alguma realidade local, africanas ou não.

Além disso, com frequência, quando nesses países há alguma iniciativa de desenvolvimento autóctone, elas são questionadas internacionalmente, sendo recorrente a presença de grupos internos financiados por grandes potências para desestabilizá-los e justificar a implantação de “políticas de estabilização” por meio de agências de cooperação internacional. Um caso emblemático de resistência à subordinação externa que é lembrado até hoje foi o de Thomas Sankara, líder revolucionário e presidente de Burkina Faso entre os anos de 1984 a 1987, quando foi assassinado por companheiros muitos próximos, apesar de até hoje sua morte ainda não ter sido elucidada completamente. Em seu governo ocorreu uma considerável mudança em seu país, em poucos anos, por meio de Planos Populares de Desenvolvimento, com uma ênfase para as respostas caseiras aos problemas africanos, com recursos próprios e autônomos, mesmo que muitas vezes escassos (DEMBELE, 2014).

Mas a sua própria morte mostra as contradições que são vividas na África. Assim como as atitudes desse líder carismático marcaram profundamente as pessoas que se desiludiram com os mandos e desmandos ocidentais em terras africanas e que clamam por emancipação, também vemos aí a presença de elites locais dispostas a tudo para obter vantagens financeiras e a manutenção das hierarquias de poder. Desse modo, o enfrentamento interno dos focos de resistência ao neocolonialismo é um tema obscuro e muito a ser debatido nesses países.

Utilizando-se de argumentos que percorrem desde a infantilização até a primitivação, as práticas coloniais são repaginadas, mas permanecem com os mesmos fins e não demonstram ter data para acabar. A necessidade de intervenção se baseia na criação de uma imagem que oscila entre a falta, incapacidade, vulnerabilidade, instabilidade e passividade dos povos em questão, justificando a ação estrangeira, com atitudes paternalistas ou neocoloniais. Outra característica é a vitimização em relação ao “ocidente”, no qual muitas pessoas, inclusive atores governamentais na África, não se compreendem como sujeitos nesse processo de subordinação. Com esses aspectos, constrói-se uma imagem de que é preciso que alguém proteja, diga o que fazer e represente os “pobres”, pois esses não poderiam falar por si próprios e não poderiam se desenvolver sem a “ajuda” externa.

Assim, a questão que se coloca é como pode ser construída uma relação de parceria e de respeito entre os diferentes povos nesses países? Com qual finalidade caberia a outrem decidir sobre o futuro de um determinado país? A responsabilidade de fazer seu próprio caminho, de se desenvolver (e não ser desenvolvido), a partir de equívocos e acertos próprios, e não somente de uma busca alucinada em atingir os parâmetros colocados como os melhores, é um desafio nas relações geopolíticas do atual estágio do capitalismo, inclusive nas que o Brasil vem atuando, e isso não pode ser ignorado ou silenciado.

*Patrícia dos Santos Pinheiro é doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Sérgio Botton Barcellos é pesquisador.

[1] Dembelé, D. M. Thomas Sankara: une conception endogène du développment. In: Dembele, D. M.; Sylla, N. S.; Faye, H. (org.). Deconstruire le discours neoliberal. Senegal: Fondation Rosa Luxemburg/ Arcade, 2014. p. 86-99.

[2] Fica claro, com esse exemplo, que ao Brasil, que ocupa atualmente a posição de emergente, há espaço para um imperialismo regional, operado na própria América e também na África, importando, com já muito fizeram os países europeus os EUA, suas próprias contradições.

[3] Paralelo aos acordos oficiais de cooperação, Jacques Foccart, o “Senhor África”, indicado pelo General De Gaulle, seria o responsável por coordenar as ações mais obscuras, como a incitação à guerra, a manipulação em eleições locais e mesmo o afastamento de lideranças.

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