‘Sou filho de uma geração dos índios sem futuro’, diz Gersem Baniwa

Gersem Baniwa
Há 30 anos, Gersem ajudou a fundar a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Foto: Winnetou Almeida

Gersem Baniwa convoca militantes para retomada da ação protagonista, que fez bonito nas décadas de 80 e 90: é preciso transformar potencial em realidade

Por Ivânia Vieira, em A Crítica

Nos dedos das mãos, quatro alianças. A de ouro, simboliza seu casamento. As outras três, em cores diferentes, são feitas do caroço de tucumã. A mais clara, no plano político, representa a cultura do branco; a de cor parda, o índio; a de cor preta, o negro; e no conjunto elas compõem um esforço pela grande aliança em favor da “transculturalidade do espírito humano”. Assim Gersem José dos Santos Luciano Baniwa define os símbolos que carrega.

E eles falam muito do atual momento de vida desse pesquisador e líder indígena, que tenta re-juntar o movimento indígena da Amazônia, renovar alianças com outros movimentos para garantir conquistas e encantar os jovens à caminhada que precisa ser feita.

Há 30 anos, Gersem ajudou a fundar a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Foi secretário de Educação em São Gabriel da Cachoeira, onde nasceu, e um dos responsáveis pela inclusão nas escolas do município de línguas indígenas, feito inédito no Brasil e legalizado no ano 2000.

Amante do diálogo, ele viajou o mundo, ocupou muitos cargos, estudou, produziu artigos e livros. Hoje é professor de Educação e diretor do Departamento de Políticas Afirmativas na Universidade Federal do Amazonas. É nessa condição que retoma as articulações dos povos indígenas. Em entrevista a A CRÍTICA, classifica de vergonhosa a situação das escolas indígenas no Amazonas e afirma que o movimento indígena estadual se acomodou. A seguir trechos da conversa:

Como o senhor avalia a atuação do movimento indígena?

A primeira característica é que a participação do Amazonas foi muito marcante no cenário nacional. Historicamente, contribuiu muito para as conquistas dos povos brasileiros nos anos pós-Constituição de 1988. A segunda é que o movimento foi, até em um passado recente, mais criativo e mais concreto. Hoje se tornou um potencial. Existe uma força enorme, mas ela está adormecida. As décadas de 80 e de 90 foram mais produtivas. Na virada do milênio, o movimento retrocedeu, não à sua potencialidade e sim no seu protagonismo na luta. Temos lideranças históricas vivas e a maioria delas saiu de cena.

Por que saíram? Onde elas estão?

Trabalhando, mas saíram da linha de frente. Vou citar dois casos emblemáticos: Manoel Moura e Orlando Baré. São figuras importantes do Rio Negro, que continuam dando aula, mas não nesse debate e na articulação que exigem amadurecimento e experiência. São duas lideranças de centenas que existem no Amazonas, uma geração de indígenas com experiências muito boas da realidade brasileira, que passou por um processo de formação política forte. A geração jovem não tem essa formação, embora tenha potencial. É uma geração que recebeu praticamente tudo pronto, os direitos garantidos, e perdeu a referência com o processo histórico. O Amazonas é o Estado que mais tem índios mestres, graduados. Só no rio negro são mais de 600 indígenas que concluíram a graduação, mais de 20 com mestrado e alguns no doutorado. É um pessoal envolvido com o debate acadêmico, mas com pouca inserção e contribuição na luta política de suas comunidades.

As conquistas engoliram as ações do movimento indígena estadual?

Uma das coisas que engoliu a política do dia a dia foi a academia. Os jovens entram na universidade e têm a agenda preenchida por outras demandas, não sobra tempo para fazer a militância política. O outro braço, é a conquista que levou lideranças a postos de política pública (cargos públicos); nós temos no Amazonas uma secretaria, gerências no setor de educação indígena. Esses espaços também não deixam tempo para a militância pois se exige muito dos índios que mostrem trabalho, produtividade. Isso resultou nesse cenário contraditório. Ocupar espaços públicos é uma conquista, entrar na academia é outra. O problema é que deixamos de fazer a luta política. E, infelizmente, a nossa realidade de direito no Amazonas é uma das piores no cenário nacional.

De que realidade o senhor fala como sendo a mais crítica?

Um terço das nossas escolas no Amazonas não tem prédio, um absurdo para um País que é a sétima economia do mundo. São mais de 900 escolas indígenas das quais 300 sem prédio. Não há indicador melhor do que esse para demonstrar o atraso das nossas políticas. Quando vamos olhar, todos os anos, os indicadores da Prova Brasil e do Enem, as piores escolas estão no Pará ou no Amazonas. E é como se esses dados não importassem para tomar decisões, como se tudo estivesse na santa paz e os problemas resolvidos. Você não vê mais denúncias, não vê mais críticas na imprensa, não vê mais mobilização. E temos desafios gigantescos!

A burocracia embrulhou o movimento indígena?

Sem dúvida. A capacidade de mobilização e de luta ficou descoberta. As lideranças de comunidade continuam falando e reclamando mas não tem eco fora da aldeia. Os problemas que os caciques enfrentam nas comunidades não chegam ao conhecimento de onde deveriam chegar. Isso é típico do Amazonas, não é a realidade brasileira, porque no Brasil a luta é brutal, principalmente no Nordeste e no Sudeste. Esse recuo na vanguarda da política regional é típico do Amazonas e em geral da Amazônia, o que influencia na política nacional.

O senhor se considera uma liderança indígena?

Do ponto de vista prático, de estar na linha de frente, já fui anos e anos – basicamente por duas décadas. Para mim, liderança é estar atuando na linha de frente. Hoje não tanto. Estou tentando voltar, retomar a partir da minha experiência pessoal a nossa atuação política. Queremos o movimento indígena voltando à cena, ao centro das discussões, pautando suas questões.

Por onde andou Gersem Baniwa nesse tempo?No mundo acadêmico e profissional, incluindo espaço público. Sou parte disso que estou falando. Me afastei da militância e hoje vejo que isso não poderia ter acontecido. É um aprendizado. Minha geração, que foi atuar nos espaços de governo, constitui a primeira experiência do gênero no Brasil. Temos uma meia desculpa para isso. O importante é que estamos tendo a coragem e a capacidade de fazer a autocrítica. Se houvesse lideranças antes de nós que tivessem nos alertado dos riscos desse caminho, teríamos tomado mais cuidado. Não foi ruim, não nego a importância dessa presença, mas poderia ter sido uma relação mais adequada entre esse tipo de participação e a militância. Esse é o desafio hoje: compreender como conciliar diferenças de gerações.

Como pretende dar os nós dessa rede? Por onde começar?

Minha luta sempre foi pelo diálogo. No caso indígena brasileiro, não vejo caminho melhor. É claro que algumas vezes o diálogo precisa ser mais duro e firme; por vezes, precisa ser mais radical e até mesmo promover rupturas quando não são produtivos, mas ainda assim vejo o diálogo como o melhor instrumento.

Os jovens indígenas parecem ter pretensões diferentes daquelas que marcaram sua juventude…

Eles têm e são um grande desafio para nós. Os indígenas mais jovens têm uma enorme dificuldade de compreender qual o futuro que eles querem. É dessa transição que estou falando. Minha geração tinha claro o lugar dela no mundo: um lugar de escuridão. Sou de uma geração que nasceu com a ideia de que os índios não tinham futuro. Eram então dois horizontes: deixar de ser índio ou resistir. Vivíamos uma realidade de dominação, de violência cultural, porque éramos considerados seres transitórios. A partir da resistência fomos criando um horizonte próprio. Com a Constituição de 88, ficou mais claro e fomos dando segurança para seguirmos sendo nós.

O que ficou para a juventude indígena de hoje?

Um quadro complicado. Ocorre que o jovem indígena atual não tem ideia de que há 30 anos isso não existia, que foi uma conquista. A perspectiva é a de se aproximar do mundo branco, das tecnologias, sem considerar no que implica essa atitude. A tendência é que ele tenha uma perspectiva do não-indígena, isso, é claro, se a questão não for tratada com seriedade pelos povos indígenas com todos os instrumentos que possui hoje dentre os quais a escola. Não está nada perdido, mas cabe aos jovens construir esse horizonte. Nós não tínhamos esse caminho aberto, tivemos que construir. Me parece que os jovens não enxergam bem onde começa essa história. Eles precisam ser apoiados para definir sua identidade geracional enquanto passado, presente e futuro. Falta essa referência.

Por que se chegou a essa situação?

Muito resultado da própria sociedade indígena. A escola indígena avançou pouco em relação a isso. E esse movimento indígena, até pelo imbróglio que vive, de luta territorial, não tem tempo para cuidar dos seus jovens. O movimento pela educação tem que levar em conta essa realidade e focar nisso: qual é a nossa contribuição, como liderança, para a educação dos nossos jovens para o horizonte? Contribuímos e garantimos um horizonte. A questão agora é: como é essa nova geração vai dar continuidade a esse horizonte? Se nos acomodarmos esse horizonte não será bom.

A questão da terra continua sendo um problema para os povos da Amazônia?

Sem dúvida. Diferente do que eu achava há dez anos, com o avanço das demarcações das terras indígenas. Hoje tenho certeza de que o território continuará sendo eternamente o principal gargalo dos povos indígenas. A razão é muito simples: o poder capitalista nunca vai sossegar e a medida que as alternativas vão se esgotando, o olhar do capitalismo se voltará para os territórios indígenas. Não há chance dessa questão ser resolvida pelo menos nos próximos 50 anos. Todo dia é uma luta.

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