Antropólogo dispara sobre causas indígenas: “O preconceito étnico-racial é assustador em Dourados” [Ótima!]

jorge eremites cachecol
Jorge Eremites é antropólogo e fala sobre as causas indígenas em entrevista ao Dourados News. Foto: Divulgação

Dourados News entrevista esta semana, o professor universitário e antropólogo Jorge Eremites de Oliveira, 46. Natural de Corumbá, ele aponta nos questionamentos feitos por e-mail, os principais problemas enfrentados pela população indígena no Mato Grosso do Sul, e em especial, no município de Dourados, onde residem em torno de 13,5 mil pessoas das etnias Guarani, Kaiowá e Terena.

Atualmente morando em Pelotas (RS) – após passar 16 anos como professor da UFMS e posteriormente UFGD – e trabalhando na Universidade Federal do município, Eremites relata, em um dos pontos da conversa, o que considera um desconhecimento significativo sobre quem são os indígenas que vivem na região.

“Isso ocorre porque para muitos eles não são percebidos sequer como seres humanos, quanto mais como Guarani, Kaiowá ou Terena, por exemplo. São vistos como “bugres”, termo racista e recorrente na região”, conta.

No fim, ele opina sobre o poder público e dispara contra o governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB). ‘É o mais anti-indígena desde a criação do Estado’.

Confira a entrevista, feita por Adriano Moretto:

Dourados News – Como você entende a atual situação indígena em Dourados?

Jorge Eremites – A atual situação das comunidades indígenas em Dourados e região é resultado de um processo sócio-histórico bastante complexo e difícil de ser resumido em poucas palavras. No município há uma grande população indígena, distribuída em duas áreas regularizadas e em outras reivindicadas como terra indígena. As áreas regularizadas são a Reserva Indígena Dourados, onde estão as aldeias Jaguapiru e Bororó, totalizando 3.475 hectares, e a Terra Indígena Panambizinho, com 1.274 hectares. A primeira foi oficialmente reservada aos índios em 1917 e ali vive uma população multiétnica estimada em cerca de 13,5 mil pessoas, representantes das etnias Guarani (Ñandeva), Kaiowá e Terena. A segunda foi regularizada em 2004 e naquela área vive uma população Kaiowá de aproximadamente 350 indígenas.

De um modo geral, o desenvolvimento econômico da região está ligado a um processo colonialista de exclusão cada vez maior dos povos indígenas. Sem considerar esta questão, tudo o mais ficará prejudicado em qualquer análise sobre o assunto. No caso em discussão, refiro-me mais especificamente a ações ligadas a um colonialismo interno, aqui percebido como um dinâmico sistema estruturante de relações sociais de dominação e exploração particular ao Brasil, porém conectado a capilaridades transnacionais de um colonialismo global. Este sistema estruturante é marcado por leis, práticas, burocracias, saberes e outros fatores, que caracterizam formas de dominação e manutenção de assimetrias por parte das elites políticas regionais e nacionais contra grupos étnica e culturalmente distintos em relação a elas ou à maioria da população.

O resultado disso tem reflexos em todo tipo de violência perpetrada contra os indígenas que vivem na região da Grande Dourados e em todo o Mato Grosso do Sul, inclusive assassinatos e várias formas de exclusão social e preconceito etnicorracial. Quero dizer, portanto, que minha percepção sobre a atual situação dos indígenas em Dourados e região passa pelo entendimento de contextos mais amplos.

DN – Hoje, os índios estão envolvidos no contexto urbano, a que você atribui isso?

JE – Os indígenas estão envolvidos no contexto urbano tanto quanto as cidades estão envolvidas no contexto indígena. Se isso é bom ou ruim, qualquer resposta plausível tem que ser relativizada no âmbito dessa dialética.

DN – É prejudicial?

JE – No caso de Dourados, a cidade teve origem dentro de um território indígena, embora esta parte de sua história ainda precise ser mais bem conhecida e divulgada a sua população. Se no começo a sede do município ficava um pouco distante da Reserva Indígena homônima, hoje em dia a cidade e a reserva estão umbilicalmente ligadas e não há como separá-las. Para os índios isso se torna um problema à medida que o preconceito étnico-racial e a exclusão social persistem e eles sentem isso no dia-a-dia na cidade. São milhares de sujeitos Guarani, Kaiowá e Terena, os quais seguirão sendo indígenas e não há quaisquer chances de serem totalmente assimilados ou integrados, via aculturação, à “comunhão nacional”. Para a maioria dos não-índios, por sua vez, a marcante presença indígena na cidade de Dourados (e em outras tantas no Estado) é normalmente percebida como algo ruim, uma espécie de entrave ao “progresso” e à “civilização”.

Com efeito, não se deve esquecer que a presença indígena em cidades sul-mato-grossenses se dá porque elas estão em seus territórios e os índios também contribuíram para a construção desses espaços urbanos. Também não se pode pensar que lugar de índio é na reserva porque o lugar deles é onde quiserem estar. Significa dizer que não podem mais ser tolhidos do direito de ir e vir em uma região onde eles próprios são mais que pioneiros; são os povos originários. No caso dos Guarani e Kaiowá, por exemplo, seus antepassados mais antigos chegaram há pelos menos 1.500 anos à região.

O prejudicial nisso tudo, se é que assim podemos chamar, é o racismo que muitos nutrem contra os indígenas.

DN – A sociedade em geral atribui ao indígena uma visão preconceituosa ainda, por quê?

JE – O preconceito que grande parte da população não-indígena de Dourados nutre contra os Kaiowá, Guarani e Terena se deve a um fato curioso: apesar da proximidade e até mesmo da convivência, tenho observado um desconhecimento significativo sobre quem são os indígenas que vivem na região. Isso ocorre porque para muitos eles não são percebidos sequer como seres humanos, quanto mais como Guarani, Kaiowá ou Terena, por exemplo. São vistos como “bugres”, termo racista e recorrente na região. Porém, quando inquirida sobre o assunto, a maioria das pessoas não-índias tende a dizer que não é racista e chega até a apontar soluções das mais controversas para resolver o que considera a “questão” ou o “problema” indígena.

Em Dourados e região o preconceito étnico-racial contra os indígenas é algo assustador para qualquer pessoa de fora que chega à cidade. Este comportamento faz parte das estratégias colonialistas de propagar uma imagem de “bárbaro”, “selvagem” e “bugre” aos Guarani, Kaiowá e Terena. Há até pessoas que dizem que chamá-los de “bugres” não tem nada de preconceituoso. Quando assim dizem, demonstram por si só que o racismo já foi naturalizado na região, algo que é gravíssimo.

Esta situação também se deve ao papel de setores da imprensa local, por vezes mantidos com recursos públicos e pelo próprio movimento ruralista. Por isso sistematicamente divulgam uma imagem extremamente negativa a respeito dos Kaiowá, Guarani, Terena e outros povos indígenas. Esta minha crítica, contudo, não deve ser generalizada porque sabemos do trabalho de profissionais e segmentos da mídia regional que atuam em outro sentido, os quais infelizmente são minoria.

jorge eremites

 

DN – A Reserva Indígena de Dourados é um ‘barril de pólvora’?

JE – Não usaria a expressão “barril de pólvora”. Diria que a Reserva Indígena Dourados é um termômetro do que é a sociedade douradense e da região da Grande Dourados. Digo isso com todo respeito e admiração que tenho tanto pelos indígenas quanto pela cidade e seus habitantes não-índios. O que ocorre nesta e em outras partes do Estado é algo comparável a um verdadeiro holocausto, indicativo do quando a região precisa ser humanizada.

DN – O que seria necessário para por fim a violência interna?

JE – De um modo geral, a regularização de todas as terras indígenas na região da Grande Dourados diminuirá o ambiente de tensão e violência existente na reserva. Paralelamente será preciso haver uma presença permanente e eficaz o Estado Brasileiro na área em termos de políticas públicas para educação, saúde, saneamento básico, segurança, esporte, transporte, sinalização para o trânsito, enfim. E isso tem que ser feito em atenção às particularidades socioculturais da comunidade multiétnica que ali vive. No entanto, para muitos governantes este é um problema federal. Por isso são poucos os recursos bem aplicados na área, o que aumenta ainda mais a exclusão e, por conseguinte, a vulnerabilidade social das famílias que ali vivem. E quando investem recursos nas aldeias, isso normalmente é feito de maneira equivocada e sem uma consulta prévia à comunidade.

DN – Os conflitos entre proprietários de terra e indígenas tem aumentado, como trabalhar com isso?

JE – Infelizmente não há uma solução fácil para resolver a situação, tampouco tem sido registrado um interesse do governo federal em equacionar o problema sem violar ainda mais os direitos dos povos indígenas. Uma solução seria identificar e delimitar todas as terras indígenas existentes na região da Grande Dourados e no restante do estado. Feito isso, caberia ao governo federal, valendo-se de mecanismos contidos na legislação brasileira e internacional, indenizar à altura a todos os proprietários de boa fé. Regularizar todas as terras indígenas é, pois, o primeiro passo decisivo para resolver os conflitos. Depois caberia um conjunto de políticas públicas com vistas à conquista da autonomia dessa população historicamente excluída. Recursos financeiros para isso não faltam e prova disso são os gastos públicos com a Copa da Fifa e as Olimpíadas no Brasil.

DN – A que você atribui a demora na demarcação de terras, já que boa parte dos estudos para elas já foram concluídos?

JE – A demora constatada na regularização das terras indígenas também se dá por meio de uma política anti-indígena definida e aplicada pelo atual governo federal e seus aliados. Para isso serve muito bem o atual modelo desenvolvimentista nacional, baseado no paradigma do crescimento econômico a qualquer custo. Seguir um paradigma assim tem reflexos negativos na política indigenista oficial. Trata-se de um modelo colonialista que sistematicamente viola os direitos elementares dos povos indígenas e comunidades tradicionais, além de classes sociais em situação de vulnerabilidade social.

O resultado disso é a existência de crises estruturais, com particularidades em cada região do país, dependendo da conjuntura local, como ocorre em Mato Grosso do Sul, onde há muitos conflitos pela posse de terras indígenas. Daí compreender a grande insatisfação atual dos povos originários para com o governo central e seus aliados, seja por conta da construção de empreendimentos que geram exclusão social e outros impactos negativos, seja por conta da não regularização de suas terras.

DN – Quem é o real culpado pela situação?

JE – Diria que as elites políticas e econômicas e o Estado Brasileiro são os maiores culpados pela violação de direitos territoriais dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul e em outras unidades da Federação. Isso porque não podemos ser ingênuos e pensar que o Estado é uma entidade sobrenatural onipresente e onisciente.

Enquanto instituição, o Estado esteve por longo tempo exclusivamente nas mãos das elites, inclusive no que se refere a funções importantíssimas no Executivo, Legislativo e Judiciário. Corrigir erros do passado e do presente é importante para reparar danos registrados ao longo do processo de construção do Estado Brasileiro e da sociedade nacional.

DN – Vai continuar morrendo pessoas para que seja resolvida a questão?

JE – Infelizmente tudo leva a crer que mais vidas indígenas serão ceifadas neste holocausto sul-mato-grossense e brasileiro. E isso não significa que os povos indígenas serão extintos ou que a questão fundiária será solucionada no Estado por meio desta estratégia colonialista.

DN – No seu entender, os indígenas precisam apenas de terra?

JE – Os povos indígenas precisam ter de volta parte de suas terras de ocupação tradicional e também necessitam de políticas públicas que reparem os prejuízos registrados durante décadas para que, dessa forma, possam (re) conquistar a autonomia que desejam. Eles não precisam de qualquer terra, sobretudo de terra alheia, mas de um pedaço maior de seu próprio território, das terras que foram usurpadas ao longo do século XX. Necessitam ainda de políticas públicas voltadas à conquista da autonomia que tinham antes e isso não seria um favor do Estado, mas uma compensação por todo o prejuízo registrado até então.

DN – Com a sua experiência de ter ‘rodado’ o país estudando as causas indígenas, existem diferenças entre os índios de MS e de outros Estados?

JE – Em termos socioculturais, os povos indígenas que vivem em Mato Grosso do Sul são distintos em relação à maioria dos povos originários estabelecidos em outros estados brasileiros. No que se refere a problemas enfrentados pelos Guarani, Kaiowá, Terena, Guató, Kadiwéu, Ofaié e outros povos indígenas no Estado, os mesmos são grandes devido, também, ao tamanho da população e ao poder do colonialismo regional.

Ocorre que Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena no país, seguramente bem maior que os quase 70 mil apontados em estimativas oficiais mais recentes. Acrescenta-se a isso o fato de o agronegócio ser muitíssimo forte no Estado, mais até do que em outras regiões. Toda esta situação também se deve à antiguidade das frentes de expansão da sociedade nacional na região, especialmente na porção centro-sul do Estado, atingidas por elas basicamente após o término da chamada Guerra do Paraguai (1864-1870).

Afora isso, nota-se que em outros Estados houve governos que se dedicaram mais ao assunto, buscando solucionar certos impasses, inclusive com ajustes nas constituições estaduais, como acontece em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Caso bem diferente ocorre em Mato Grosso do Sul, cujo atual governo estadual é o mais anti-indígena desde a sua criação, em 1977.

DN – No seu entender, os organismos de segurança prestam a segurança necessária para a população indígena?

JE – Geralmente as forças policiais não foram e não estão preparadas para isso, embora o policiamento seja uma necessidade na Reserva Indígena Dourados. Em outras áreas, contudo, forças policiais não são necessárias no momento e tampouco têm sido requisitadas por lideranças indígenas ou mesmo pelo Ministério Público Federal.

DN – Existe uma indisposição dos governos com a população indígena?

JE – Quanto a isso não tenho dúvida alguma, conforme observado nas esferas municipais, estadual e federal. Conheço experiências exitosas de governos municipais que atuam em prol da construção da autonomia das comunidades indígenas, mas isso é exceção à regra. Em Dourados, por exemplo, salvo engano o Executivo nunca teve interesse na criação de uma Secretaria Municipal para Assuntos Indígenas, diferentemente do que existe em Dois Irmãos do Buriti e em outros municípios brasileiros.

DN – A não resolução de problemas básicos e de direito para todo o brasileiro como saúde, educação e saneamento básico, deixa a entender que a intenção de governantes é extinguir a população das Reservas próximas a perímetros urbanos, como Dourados?

JE – Se pudessem, certos governantes teriam mesmo aniquilado completamente as comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul, especialmente as que estão próximas a cidades. Houve até governante que ousou propor, de maneira inconstitucional e leviana, transformar a Reserva Indígena Dourados em um novo município, como que se livrando do que imagina ser um “problema”. Felizmente governos desse tipo não tiveram e dificilmente terão sucesso neste propósito por conta da capacidade de resistência dos povos indígenas. Cedo ou tarde terão que atender a certas demandas indígenas, ainda que isso tenha que ser feito por força da lei.

DN – Para finalizar, a política de cotas tem incluído a população indígena na sociedade?

JE – Política de ação afirmativa é um tema recorrente nas universidades brasileiras, especialmente a partir da década de 1990, quando debates sobre o assunto passaram a ser mais frequentes e a ter mais visibilidade dentro e fora da academia. Está relacionada a medidas especiais para a correção de desigualdades constituídas historicamente, resultado de descriminação, marginalização, exploração, preconceito e outras formas conhecidas para o estabelecimento de assimetrias entre pessoas e grupos humanos na sociedade nacional. Muitas vezes essas desigualdades foram naturalizadas e por isso mesmo não despertam a atenção de parte da população. Por este motivo ações afirmativas, como as chamadas cotas sociais e étnico-raciais, têm sido adotadas em órgãos públicos, como ocorre em universidades estabelecidas em todas as regiões do país. Geralmente estão voltadas ao acesso e permanência de estudantes negros e indígenas em cursos de graduação, mas aos poucos também começam a ser implantadas, e com sucesso, em cursos de mestrado e doutorado.

Em linhas gerais, quando se fala em ações afirmativas nas universidades públicas, nota-se, de fato, que há experiências interessantes sendo aperfeiçoadas aqui e acolá. No Mato Grosso do Sul, para ser mais específico, a Uems (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) tem acumulado experiências exitosas e feito constantes avaliações sobre dificuldades ligadas à permanência de estudantes indígenas e negros nos cursos oferecidos pela instituição. Na Unemat, em Mato Grosso, também há experiências a ser consideradas, bem como na UFSCar e na FURG, respectivamente em São Carlos (SP) e Rio Grande (RS), apenas para citar outros casos.

Ações afirmativas tendem a ser ampliadas em todo o território nacional, inclusive no que se refere à inclusão de indígenas, como ocorre em concursos para professores, agentes de saúde e em vestibulares realizados em universidades públicas. Cedo ou tarde, portanto, quer por iniciativa própria, quer por força da lei e da pressão dos movimentos indígenas, ações afirmativas tenderão cada vez mais a incluir os povos originários, inclusive na região da Grande Dourados.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.