Mais uma: “Criação de unidade de conservação expulsa moradores das próprias terras”

Criação do Parque Nacional da Serra do Cipó, em Santana do Riacho, complicou a vida de Eurico e Deusdita, que foram multados em R$ 2 mil e terão de derrubar barracão. Foto Beto Novaes/EM
Criação do Parque Nacional da Serra do Cipó, em Santana do Riacho, complicou a vida de Eurico e Deusdita, que foram multados em R$ 2 mil e terão de derrubar barracão. Foto Beto Novaes/EM
Falta de regularização fundiária compromete a subsistência de famílias que vivem em áreas que se tornaram unidades de conservação, porque lei estadual não sai do papel

Por Zulmira Furbino e Luiz Ribeiro, em EM

Deusdita Ferreira de Siqueira, de 55 nos, e o marido, Eurico Alves Guedes, de 65, são nascidos e criados numa região conhecida como Retiro, em Santana do Riacho, a 100 quilômetros de Belo Horizonte. A família deles vive ali há mais de 150 anos e é considerada parte da população tradicional do lugar, mas depois da transformação da área em unidade de conservação integral, com a criação do Parque Nacional da Serra do Cipó, a vida mudou para pior.

Antes disso, era possível cultivar o que quisessem e tudo o que consumiam. À exceção do sal e do macarrão, eram plantados no quintal de casa arroz, feijão, café, cana e banana. O sabão era feito com o óleo retirado do coco da macaúba e o mesmo ocorria com o óleo de cozinha. Eles ainda produziam e vendiam tijolos, vasilhas de barro e rapadura. Hoje, empurrados para longe de suas terras, sobrevivem plantando à meia e dividindo o pouco lucro fora do parque, ou fazendo serviços eventuais, mas tentam voltar ao parque, onde têm o terreno que herdaram com a morte dos pais.

Na semana passada, o casal, que gastou R$ 3 mil na construção de um barracão para guardar as ferramentas em seu terreno, foi multado em R$ 2 mil. Eles serão obrigados a jogar a pequena edificação no chão. A situação, que se repete em outras comunidades tradicionais e quilombolas que vivem em unidades de conservação federais e estaduais em Minas, é um dos efeitos colaterais da falta de regularização fundiária nesses territórios, considerada pelo diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF) em Minas, Bertholdino Apolônio Teixeira Júnior, o maior entrave para a gestão desses territórios.

“As coisas começaram a mudar depois que veio o parque. As pessoas vieram e disseram que a partir de amanhã a gente não ia mais poder trabalhar no terreno. A gente continuou um tempo, mesmo com a ameaça deles. Depois, eles ameaçaram nos despejar e paramos com tudo”, lamenta Deusdita. Na semana passada, o parque passou a exigir dos proprietários das terras que apresentem documentos e horários nos quais pretendem entrar e sair do território.

O impacto das unidades de conservação integral na vida de povos e comunidades tradicionais deveria ter sido reduzido com a aprovação da Lei Estadual 21.147, de janeiro de 2014, que institui uma política estadual para o desenvolvimento sustentável dessa população em Minas. Mas não é isso o que vem ocorrendo. “A inércia institucional leva gente que vive há gerações nos lugares transformados em áreas protegidas a ser vista como infratora. Elas são obrigadas a deixar o seu modo de vida. Isso leva, em muitos casos, à migração, quando não à expulsão violenta dessas pessoas”, explica Beatriz Vianna Mendes, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade federal de Minas Gerais (UFMG).

PROBLEMAS  SEM FIM 

De modo mais ou menos generalizado, essa é a história que se repete no Parque Nacional da Serra do Cipó, no Parque Nacional das Sempre Vivas, na Reserva Biológica da Mata Escura (unidades de conservação federais). E também nos parques Verde Grande, Lagoa do Cajueiro e Mata Seca, no Norte de Minas, onde estão concentradas 70% das unidades de conservação integral estaduais. A reportagem do EM visitou comunidades tradicionais que estão em terrenos englobados em unidades de conservação e por isso viraram também áreas de conflito, perto do Projeto Jaíba, em Matias Cardoso, no Norte de Minas. Um dos locais é o território dos remanescentes do Quilombo da Lapinha, que totaliza 126 famílias.

Conforme narrativa do presidente da Associação Quilombola de Lapinha, José Teodorico Borges, os remanescentes de escravos sempre viveram na região, tirando o sustento da pesca, caça, do plantio das vazantes e criando gado “na solta”. Mas, em outubro de 1998, os 1.440 hectares reivindicados pelos quilombolas foram anexados ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro (20.500 hectares no total, transformando-se numa unidade de conservação.

“Ficamos encurralados pelo Parque Lagoa do Cajueiro. Estamos espremidos, sem poder plantar roças”, protesta o presidente da Associação Quilombola de Lapinha, José Teodorico Borges, que planta uma horta num terreno de quatro hectares, situado perto da vazante do Rio São Francisco, “dividido” entre pelo menos 15 pequenos agricultores.

Outro morador da região, Jesuíto José Gonçaves, de 63, reclama que, além de acabar com antigos costumes dos pequenos agricultores, como o de “criar gado na solta”, a criação da unidade de conservação do Parque Lagoa do Cajueiro trouxe dificuldades inclusive para cozinhar os alimentos. “Até a retirada de lenha no mato para o fogão das casas é controlada. A gente só tem direito a 14 metros de lenha por ano. É muito pouco”, lamenta. 

Parque Lagoa do Cajueiro foi criado sobre território de comunidade Quilombola em Matias Cardoso. foto: Luiz Ribeiro / DA Press
Parque Lagoa do Cajueiro foi criado sobre território de comunidade Quilombola em Matias Cardoso. Foto: Luiz Ribeiro / DA Press


Extrativismo e violência

No Parque Nacional das Sempre-Vivas, que abrange os municípios de Bocaiuva, Olhos d’Água, Buenópolis e Diamantina, no Vale do Jequitinhonha e na Região Central do estado, também existem conflitos envolvendo interesses das comunidades do entorno. Segundo o procurador da República em Sete Lagoas, Antônio Arthur Barros Mendes, a área, três vezes maior do que a do Parque Nacional da Serra do Cipó, “tem tensões que começaram a ocorrer em função da prática de abusos, a princípio graves, envolvendo violência emocional, uso ostensivo de armas e ameaças em geral”.

A gestão do parque é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que não respondeu às tentativas da reportagem de falar sobre as dificuldades e conflitos das unidades de proteção federais.

“O território não tem regularização fundiária. Isso gerou tensionamento com comunidades que usavam parcelas do território para algumas atividades extrativistas”, informa o procurador. Em outubro de 2013, o Ministério Público Federal começou a investigar os fatos ocorridos e poderá entrar com uma ação de danos morais coletivos contra o parque para proteger a comunidade.

Na semana passada, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais visitou a comunidade quilombola Vargem do Inhaí, em Diamantina (Vale do Jequitinhonha) e promoveu uma audiência pública na cidade. Moradores dessa e de outras comunidades tradicionais se reuniram para cobrar o direito de continuar a exercer suas atividades em áreas de uso comum do Parque Nacional das Sempre-Vivas e relatar ameaças.

CONFUSÃO 

O chefe do Parque Nacional da Serra do Cipó, Flávio Lúcio Braga Cerezo, afirma que a exigência de documentação e de informação de horários de chegada e de saída para que os proprietários entrem na reserva pode ter sido “confusão da portaria”. Segundo ele, os moradores estão proibidos pela lei de fazer novas edificações no local.

O Instituto Estadual de Florestas (IEF), responsável pela gestão das unidades de conservação criadas no estado, informou que vê com “certa preocupação” a situação dos parques estaduais no Norte de Minas, uma vez que “a principal função é a conservação da rica fauna e flora local, bem como das coleções d’água formadas por lagoas e áreas alagadas únicas do Rio São Francisco”. Mas que também busca acordo com as populações tradicionais das áreas.

[Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.]

 

 

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