Ofuscada pela propaganda oficial e pela cobertura parcial dos grandes veículos de mídia, a voz das comunidades pacificadas’ ainda é pouco ouvida
Maurício Thuswohl – Carta Maior
Rio de Janeiro – Revoltados com as agressões sofridas no domingo (25) por um suposto traficante de drogas preso por soldados do Exército que ocupam a favela desde o dia 5 de abril, moradores da Nova Holanda cercaram os militares, que acabaram agredidos com pedras e garrafas e só conseguiram romper o cerco popular após dispararem tiros para o alto. A comunidade é uma das 16 que compõem o Complexo da Maré, onde, segundo o governo do Rio de Janeiro, serão implantadas nos próximos meses pelo menos seis novas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Por enquanto, um contingente de 2,5 mil homens do Exército, da Marinha e da Polícia Militar inicia a retomada, na definição do governo, “do controle do Estado sobre um território que era controlado pelo narcotráfico”. Mas, o episódio da Nova Holanda revela que, na percepção dos moradores ainda carentes de uma presença do poder público que não seja baseada na repressão, as coisas não são tão simples assim.
Ofuscada pela propaganda oficial e pela cobertura parcial dos grandes veículos de mídia, a voz das comunidades “pacificadas” ainda é pouco ouvida. Cientes disso, os moradores do Complexo da Maré, donos de um histórico de lutas e organização política raro nas favelas cariocas, organizaram no Facebook, dias antes da ocupação, a página Maré Vive, que se tornou um importante canal de expressão e reflexão para habitantes das 16 comunidades. Antes mesmo da data oficial para o início das operações, relatos de moradores (seus nomes são omitidos por questão de segurança) apontavam diversos abusos, entre eles o assassinato de um rapaz de 18 anos que teria sido arrastado para um beco por policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope).
Outros comentários, postados por moradores de comunidades como Timbau, Vila do João, Baixa do Sapateiro, Parque União, Roquette Pinto e Nova Holanda, trazem relatos de arbitrariedades como a prisão de um homem de 81 anos, “algemado e xingado” pelos militares ou o “ataque a um grupo de crianças” que jogava bola. O que mais causou indignação nos moradores, no entanto, foi a aplicação pelos policiais do mandado coletivo, concedido pela Justiça, que permitiu a entrada para “busca e apreensão” em qualquer domicílio da Maré a qualquer hora do dia: “Mandado coletivo é uma piada. Invenção preconceituosa e irresponsável de quem não respeita a comunidade”, postou um morador. Outro comentário questionou a “legitimidade legal” da decisão judicial: “Estado de exceção. Favelados não têm direitos. Na Maré, a Constituição e a inviolabilidade do domicílio não valem!”.
Entre os relatos, há episódios em que os militares invadiram casas para tomar banho, dormir nas camas dos moradores ou simplesmente “assaltar a geladeira”. Mas, houveram violações mais graves, que só foram divulgadas graças a visibilidade do trabalho de alguns talentosos moradores da Maré. Um deles é o premiado fotógrafo Bira Carvalho, que teve sua casa na Nova Holanda, onde vive há quatro décadas, destruída por policiais do Bope: “Quebraram minha casa toda. Jogaram minha máquina fotográfica, meu instrumento de trabalho, no vaso sanitário. Perdi minha dignidade”, declarou, desolado, ao site Arma Branca.
Com o apoio da Anistia Internacional e a participação de entidades como o Observatório de Favelas e a Rede de ONGs da Maré, entre outras, foram distribuídos aos moradores 50 mil folders com orientações sobre como agir em caso de abordagem policial e evitar abusos. Também foram distribuídos em todas as comunidades adesivos, para serem colados nas portas das casas, com os dizeres: “Conhecemos nossos direitos! Não entrem nesta casa sem respeitar a legalidade da ação”.
Plim-plim
As comunidades também se ressentem da falta de uma narrativa que lhes pareça real na grade mídia. Alvo de diversos ataques por parte de moradores indignados, uma matéria do jornal O Globo, com o título “Os Desafios da Maré”, critica os adesivos colados nas portas e aponta a presença de “cerca de 40 ONGs atuando na Maré” como um dos “problemas” a serem enfrentados pela polícia durante o processo de instalação das UPPs, ao lado da presença de três facções criminosas rivais e do forte número de dependentes de crack que vivem no entorno das comunidades. Sobre as ONGs, o jornal ressalta que “algumas são parceiras de grupos internacionais, reforçando a organização dos moradores, que se tornam mais conscientes de seus direitos e deveres”.
A cobertura do processo de ocupação do Complexo da Maré feita pela TV Globo também mereceu dezenas de comentários críticos dos moradores. A começar pela véspera da ocupação, quando uma entrada ao vivo mostrou uma festa que acontece todos os sábados na comunidade para em seguida informar que “os moradores comemoravam” a chegada da UPP: “A Maré não tá nem aí para ocupação. Seus moradores estão em festa, não pela ocupação, mas por sempre ter essas festas, que são um clichê na comunidade”, observou um comentário postado na página Maré Vive logo após a veiculação da matéria.
Assistidas pela grande maioria dos moradores, as matérias da TV Globo se tornaram um alvo preferencial: “Estou me sentindo figurante de uma novela que nunca passou na Globo”, comentou uma moradora, com fina ironia. Outro morador foi mais incisivo: “Essa foi demais! A plim-plim disse ainda agora que os moradores da Maré podem sair de casa para ‘interagir com os cavalos’ da Polícia Militar. Tá de sacanagem, né?”.
Consciência
A postura crítica frente à narrativa dominante na mídia é apenas a ponta de um iceberg de consciência política que existe no Complexo do Maré. A mesma consciência que faz os moradores clamarem por um outro tipo de presença do Estado: “Pra que esses carros de guerra aqui na Maré? Nossos impostos estão sendo utilizados para a espetacularização do Estado, para a propaganda político-midiática comercial e a criminalização da pobreza. Esses milicos poderiam ajudar a melhorar o asfalto das comunidades, ao invés de ficarem gastando gasolina com esses tanques. Poderiam trazer material de construção para reformar as casas, ao invés de exibirem esses fuzis e essas feições de psicopata. Poderiam montar hospitais universitários, equipados e definitivos, ao invés desses centros de comando para matar. Mas, pensar isso é uma utopia tremenda”, diz um dos comentários mais contundentes.
Os relatos criticam também a visão estereotipada da favela: “Não clamamos por paz porque nunca estivemos em guerra. Vivemos sim, sempre, sob o descaso das autoridades e do poder público, e mesmo com tudo isso temos luz, água, esgoto, coleta de lixo e outros serviços básicos, tudo conquistado pela luta da comunidade unida, resistente e forte. Povo lindo, que já ocupa este espaço desde a década de 40”, diz um morador.
Outro morador ressalta que, com a presença dos militares, não é bem uma “invasão do Estado” o que está acontecendo na Maré: “Barracas da Claro TV e da Sky já foram montadas no Pinheiro. Esse é o tom da ‘pacificação’ e da nossa entrada no ‘Estado de Direitos’, resumido para nós apenas ao direito de consumir”.