Contaminado: o drama de um ex-funcionário de fábrica de remédios

José Messias Moreira, 50, um dos 70 ex-trabalhadores da Eli Lilly que dizem ter sido contaminados na fábrica em Cosmópolis (SP) - Leticia Moreira/Folhapress
José Messias Moreira, 50, um dos 70 ex-trabalhadores da Eli Lilly que dizem ter sido contaminados na fábrica em Cosmópolis (SP) – Leticia Moreira/Folhapress

Lucas Sampaio, Folha de S. Paulo

José Messias Moreira, 50, trabalhou por 12 anos em Cosmópolis (a 135 km de SP) na Eli Lilly, fabricante de remédios como Prozac (antidepressivo) e Cialis (para disfunção erétil).

Hoje, tem diversos problemas de saúde, como disfunção erétil, diabetes e perda de memória, e acusa a empresa de contaminação por metais pesados.

Como outros 70 ex-funcionários da Eli Lilly, Messias cobra indenização.

Ele pede R$ 3,7 milhões, mesmo após acordo extrajudicial com a empresa.

Recentemente, a multinacional norte-americana foi condenada a pagar multa de R$ 1 bilhão por danos coletivos, após o Ministério Público do Trabalho denunciá-la por contaminação.

A seguir, trecho de seu depoimento à Folha:

Nasci em Paulínia (SP), mas moro há 20 anos em Cosmópolis. Fui contratado pela Eli Lilly em 1990, quando já trabalhava havia um ano e meio como temporário. Saí em 2002.

Na fábrica, trabalhei na linha de produção e no incinerador. Na linha de produção, meu trabalho era mexer com aldrin [substância cancerígena], soda cáustica, ácido sulfúrico e tebuthiuron [herbicida altamente tóxico]. No incinerador a gente queimava tudo o que não presta. Queimamos muitos produtos da Shell, que eram os mais perigosos, e de outras empresas.

Na linha de produção, uma vez estourou uma mangueira e soltou uns gases. Inalei e fui parar no ambulatório. Era uma dor que queimava o peito por dentro, e a médica quis me dar uma injeção que parecia para cavalo.

Eu não queria tomar, mas a médica entrou em desespero e disse que, se eu não tomasse, ia morrer. Fiquei dois dias em casa e melhorei.

No incinerador, uma vez queimei um produto que, no rótulo, estava escrito “água”. Mas não era. Fui parar no HC [Hospital de Clínicas], da Unicamp, mesmo usando EPI [equipamento de proteção individual]. Não sei o que era.

Quando o produto era líquido ou pastoso, a gente fazia um coquetel diluído com água contaminada para poder incinerar. A gente aproveitava pra queimar os produtos quando chovia. De tão pesada, a fumaça descia.

Às vezes eu tomava três banhos pra tirar o cheiro do produto. Por mais que estivesse de máscara, a gente inalava alguma coisa. Na saída, cada um tomava um litro de leite porque falavam que era bom.

Quando a Cetesb [agência estadual de saneamento ambiental] chegava lá para fiscalizar, a gente passava a incinerar água. Eles apareciam de surpresa, e a gente mudava todos os procedimentos.

Às vezes ficava dois meses incinerando água –e depois tirava o atraso. A gente sabia que não podia, mas fazia.

Você vê coisas erradas, mas não pode falar nada porque é demitido.

*

A empresa pagava muito bem, era a melhor da região. Eu ganhava R$ 1.500 líquidos. Hoje, vejo que não valeu a pena.

Estudei só até a quarta série. Comecei a trabalhar cedo porque meus pais tiveram problemas de saúde. Era o mais velho dos oito filhos e até hoje cuido deles.

Com nove anos comecei a vender café na porta da Replan [refinaria da Petrobras, em Paulínia]. Fui engraxate na rodoviária aos dez. Aos 14, comecei a colher algodão. Quando entrei na Eli Lilly, sabia que tinha que dar o meu melhor. Eu me desdobrei porque precisava do emprego.

Quando saí da empresa, minha família me ajudou muito. Eu tinha um salário bom. Quando você perde o emprego, fica com a cabeça a mil. A gente tinha condições até para ir para a praia no verão.

*

Uma vez eu estava afastado por tendinite no ombro e marquei uma cirurgia. O médico perguntou se eu tinha diabetes, e eu disse que não.

Fiz o exame e deu que eu tinha. Não pude operar. Podia ter morrido na cirurgia porque não sabia que tinha diabetes. Eu fazia exame médico todo ano na Eli Lilly, e diziam que a minha saúde estava ótima. Durante os 12 anos fizeram exames e me disseram que eu não tinha nada.

Na cama, com a minha mulher, eu não consigo ser como era antes. Eu consigo satisfazer a minha mulher, mas posso ficar duas horas que não consigo chegar lá. Não é normal ficar tanto tempo assim.

Minha filha mais nova tem cinco anos e veio de uma gravidez inesperada. Ficou dois dias na UTI quando nasceu.

Com 35 anos, eu jogava bola. Com 37 eu não tinha mais fôlego.

Tenho problema de memória também. Às vezes estou falando com alguém e esqueço o que estou falando. Às vezes solto o copo que estou na mão. Já aconteceu três vezes.

Minha mulher não fala nada porque sabe dos meus problemas.

Tenho muita dor de cabeça também. Uma vez tive que invadir o pronto-socorro para ser atendido. No pensamento eu pedia para morrer, porque a dor era muito forte.

Se você tem plano de saúde, tudo bem. Mas eu não tenho. Sou segurança do estúdio de Paulínia e ganho R$ 999. Com hora extra, chega a R$ 1.500.

*

Em 2005 eu e mais nove ex-funcionários fizemos um acordo extrajudicial.

Prometeram R$ 250 mil para cada um, mas eu recebi só R$ 154 mil, em três vezes, e descontaram 25% para a advogada. Falaram que a gente não ia pagar imposto também, e hoje a Receita me cobra R$ 40 mil.
Teve gente que recebeu R$ 619 mil, e ninguém sabe por que.

Em 2011, entrei com a ação na Justiça. Isso que a Eli Lilly nos deu foi um “cala boca” mal explicado.

Estou aqui me expondo porque eu tenho 50 anos. Mas eu tenho uma filha de cinco e outra de 17 e posso deixar alguma coisa para elas. Eu só quero o que é certo.

OUTRO LADO

A Eli Lilly nega que haja indícios de metais pesados na área da fábrica de Cosmópolis, hoje operada pela ABL Antibióticos.

A empresa diz que a segurança de seus funcionários “em todo o mundo é fundamental” e que não há “absolutamente nenhuma base” para a decisão que a obrigou a pagar R$ 1 bilhão.

A reportagem não conseguiu contato com a Eli Lilly para comentar o caso específico de José Messias Moreira.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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