Anistia Internacional: “A tortura é frequente no sistema prisional brasileiro”

pau de arara torturaPara representante da Anistia Internacional Brasil, os Estados assumem um discurso hipócrita em torno da tortura e pouco fazem para coibi-la

Por Marcelo Hailer, Fórum

Foi lançada nesta terça-feira (13), em Londres, a campanha da Anistia Internacional “Stop Torture” . A organização divulgou um levantamento de países onde a tortura ainda permanece como uma prática de Estado, entre eles, o Brasil, onde cerca de 80% da população declarou que teme ser presa e torturada.

Outro número, em nível global, é que cerca de 44% das pessoas entrevistadas discordaram da frase “se eu fosse detido pelas autoridades no meu país, estou confiante de que estaria a salvo da tortura”. Outros países que figuram na escala do medo de ser torturado são: México (64%), Turquia, Paquistão e o Quênia (58%), Reino Unido (15%), Austrália (16%) e o Canadá (21%).

Para Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional – Brasil, ocorre hoje um discurso hipócrita dos Estados a respeito da prática da tortura. “Alguns adotam a tortura como política mesmo, outros fazem o discurso de que são contra a tortura, mas na prática não a coíbem, ou quando a coíbem é de forma muito insuficiente.”

Ciconello também acredita que a pesquisa pode ser um forte componente no debate à reforma dos aparelhos policiais e de custódia dos países, principalmente no Brasil, onde, de acordo com o representante da Anistia, a prática da “tortura ocorre de forma frequente no sistema prisional”.

Fórum – Um dos dados da pesquisa aponta que 80% dos brasileiros têm medo de serem presos e torturados. O que significa tal número?
Alexandre Ciconello – Uma leitura disso é que há a percepção de que existe tortura nas prisões, nas delegacias, nos espaços de custódia tradicionais, é muito alta no país. A prática de tortura ainda está consolidada em algumas instituições públicas, principalmente no campo da segurança pública.

Fórum – Há um outro dado que chega a ser contraditório: 19% dos brasileiros se declaram a favor da tortura em casos de defesa. Que tipo de leitura pode se fazer desse número?
Ciconello – Esse número, embora 19% ainda seja um grupo considerável, tem que ver o oposto que 80% considera que a tortura, em nenhuma situação, pode ser aceitável nem necessária. A sociedade brasileira realmente acha que a tortura não pode ser justificada. 19% é um grupo minoritário e é um número mais baixo do que de outros países. Nos Estados Unidos, se você observar os dados comparativos, a população relativiza um pouco e a possibilidade de torturas nessas situações é muito mais alta. Ainda há uma necessidade de se ter campanhas educativas e uma série de medidas para que a população não aceite a tortura em nenhuma circunstância, porque é um crime contra a humanidade e um crime hediondo. A maioria não concorda com a tortura, defende mecanismos que a coíbam, mas, ao mesmo tempo, teme ser torturada no caso de estarem sob a custódia do Estado. Com a percepção de que a tortura existe, ela é uma prática ainda e ao mesmo tempo é uma prática que deve ser condenada e não pode ser aceita.

Fórum – Temos tido vários debates no Brasil a respeito de uma reforma na segurança pública, da polícia e do seu modo de atuação. Essa pesquisa pode ajudar nesse debate?
Ciconello – Acho que sim, porque quando ela mostra que o brasileiro reconhece a existência da tortura, de que realmente acontece para conseguir informações e como uma forma de punição, isso tem a ver com uma herança que está presente nas grandes instituições policiais, nos centros de custódia. Ao mesmo tempo você tem um claro posicionamento da sociedade no sentido de condenar [a tortura], então a gente precisa realmente promover mudanças nessas estruturas: reforma da polícia, mecanismos de prevenção e combate à tortura, que ainda estão sendo implementados e mecanismos para impedir a impunidade e para que os casos de tortura sejam realmente investigados. Temos hoje uma impunidade que vem do passado, quando a tortura era uma política de Estado. Na época da ditadura militar, os agentes de Estado que cometeram tortura estão impunes até hoje e essa é uma agenda da Anistia, pois, a impunidade do passado alimenta a impunidade do presente. Hoje nós temos muita dificuldade de processar e responsabilizar o Estado e seus agentes por práticas de tortura e maus tratos dentro do sistema prisional brasileiro, onde os maus tratos e tortura ocorrem de forma frequente.

Fórum – A pesquisa traz outro dado muito importante: mais de 141 países praticam a tortura. Frente a este horizonte, é possível erradicar a prática da tortura? 
Ciconello – É por isso que a Anistia colocou como prioridade lançar uma campanha global contra a tortura e isso mesmo depois de 30 anos de termos uma Convenção Internacional de Combate à Tortura. A comunidade internacional, em 1984, definiu a tortura como uma prática inaceitável e criou mecanismos para erradicá-la e combatê-la. Trinta anos depois, a gente vê que ela ainda existe e é forte, e em alguns países é utilizada como política de Estado, como técnica de investigação criminal. Depois de trinta anos ainda há muito a ser feito e é por isso que a Anistia colocou isso em sua agenda de maneira prioritária e de forma global. Fizemos uma pesquisa, um relatório com casos e temos cinco países prioritários e todas as seções da Anistia vão centrar esforços onde a gente identificou que a tortura tem ganhado uma nova ênfase.  No caso do México, por conta da guerra às drogas, a questão do narcotráfico, o Estado vem violando direitos em nome do combate ao narcotráfico, como também outros países que ainda seguem como uma prática muito arraigada. E aí nós temos o caso de Guantánamo. Quando você pega os dados dos Estados Unidos, tem uma certa lassidão, uma certa flexibilização dos discursos, você têm lideranças políticas que relativizam a realização da tortura, como aconteceu durante o governo Bush (2001-2009), criando uma certa autorização para que essas práticas ganhem um novo recrudescimento. Quando a gente achava que estava caminhando, vem esse discurso de Guantánamo, esses discursos que utilizam a questão da defesa são grandes retrocessos.

Fórum – Depois do início da “guerra ao terror”, durante a gestão Bush, as torturas cresceram muito.
Ciconello  Com certeza. Em razão disso, quando você tem e acaba aceitando alguns casos, ela [tortura] acaba crescendo, é uma autorização para que possa ocorrer e não haja punição. É por isso que os mecanismos [prevenção e punição] são importantes. Na conferência de imprensa [da Anistia Internacional], em Londres, colocou-se que há uma certa hipocrisia no tratamento da tortura pelos Estados: alguns adotam a tortura como política mesmo, outros fazem o discurso de que são contra a tortura, mas na prática não a coíbem, ou quando a coíbem é de forma muito insuficiente.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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