A bananização do racismo, por Ana Maria Gonçalves*

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Não gosto muito de escrever textos assim, no calor do momento, mas acho que dessa vez vai com emoção mesmo, porque o caso passou dos limites. Principalmente porque seria melhor esclarecer vários pontos dessa história, que não é tão simples como parece. Por enquanto, o que se sabe é que a ideia partiu do pai do Neymar, que me parece ser também quem gerencia seus negócios: “O pai do Neymar nos telefonou e pediu que criássemos alguma coisa. Surgiu essa ideia de que a melhor maneira de acabar com o preconceito é usar isso”, disse Guga Ketzer, sócio e vice-presidente de criação da agência Loducca, que é responsável por essa campanha envolvendo Neymar e auxilia o jogador em relação à publicidade. Campanha que, aliás, Guga Ketzer tenta revestir de outro nome, mais palatável, chamando-a de “movimento”.

Talvez, inclusive, para pegar carona na ideia de movimento negro. Segundo ele, a campanha criada pela agência, junto com o staff de Neymar, não tem teor publicitário, pois não estão vendendo nada. Ora, mas é exatamente esse o princípio das agências de publicidade, que conheci bem trabalhando na área por mais de 13 anos: vender alguma coisa enquanto fingem que estão prestando um favor. É claro que estão vendendo a imagem de seu cliente como o garoto propaganda do antirracismo na Copa, já que tem sido amplamente divulgado que esse seria o mote, “Copa Contra o Racismo e Pela Paz”. Eu, com certeza, aplaudiria a atitude de Neymar e de seu pai se, em vez de procurarem uma agência de publicidade (será que pagaram pela campanha, receberam, ou foi na base de troca de visibilidade?), procurassem instituições ou pessoas que entendem de luta antirracista. Ou usassem o prestígio do jogador para colocar a agência a serviço dessas instituições. Porque o que se viu foi um case de grande alcance, e com um resultado extremamente danoso para quem leva a luta à sério e não apenas na época em que dá visibilidade.

O ativista Douglas Belchior explica: “O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.”

Pois é. E é essa atitude despolitizada da agência de propaganda de Neymar, comprada por milhares de pessoas a quem o racismo diz muito pouco, porque não os fere diretamente, que gera “conceitos” e certezas assim, ditas por seu sócio e vice-presidente de criação: “Descobrimos que a melhor forma de combater o racismo seria ridicularizar os racistas”. Ou seja: esse bando de negros incompetentes, há séculos tentando achar daqui e dali uma maneira de combater o racismo, ainda não havia descoberto a moderníssima técnica de ridicularização da qual são vítimas quase que diariamente. Ou ainda: “É uma maneira brasileira de lidar com isso. Tem um problema? Então me dá aqui que eu vou comer. (…) É uma coisa bonita.”. É lindo mesmo ver mais um branco dizendo quem é brasileiro e quem não é, porque muitos movimentos negros, nos quais atuam brasileiros, querem mesmo é não ter que engolir mais racismo. Mas esse, de acordo com Guga Ketzer, é mesmo o nosso destino: “Como quando somos crianças e sofremos com um apelido. Se você se incomodar muito ele com certeza vai pegar. Por isso a nossa ideia era de não fugir da briga, de encarar a polêmica e engolir o problema.”

Na boa, fico aqui me perguntando se já tinha sido combinado antes que o próximo jogador que fosse vítima de uma bananas iria comê-la, porque me parece tudo muito orquestrado. Pode ser paranoia minha, claro, mas esse discurso de engolir parecia já estar pronto… E haja garganta e estômago! Que não são os de Guga Ketzer, claro. Porque, para essa campanha, ele apenas empresta o cérebro, para resolver tudo e de uma vez, por nós: “A melhor maneira de acabar com preconceito é tirar a palavra. Disso, veio a ideia de criar um ícone para expressar isso, que é a pessoa comendo a banana”.

É isso, pessoal, simples e direto. Leiam novamente: a melhor maneira de acabar com o preconceito é tirar a palavra. Daí a ideia de criar um ícone para expressar isso: a pessoa comendo banana. Não dá nem pra rir desse conceito porque o caso é grave. Milhares, talvez milhões, de pessoas compraram a ideia de que estão fazendo alguma coisa relevante e decisiva para a causa antirracista exibindo suas fotos comendo banana. Será que Ketzer perguntou a seus funcionários negros (sim, eles sempre são chamados para validar uma atitude do patrão branco, numa versão corporativa do “tenho amigos negros”) o que eles achavam da ideia?

Ideias… Recentemente participei de uma reunião com a presidente Dilma. Fomos convocados praticamente de um dia para o outro, através da SEPPIR, sem saber muito bem o motivo. O que nos foi passado é que a presidenta estava convocando uma reunião com ativistas dos movimentos negros. Apenas isso. Sobre o que aconteceu lá, deixo os textos do Douglas Belchior e da Ana Paula Magalhães Pinto.

Na época também pensei em escrever alguma coisa, mas confesso que outras escritas e até mesmo uma esperança de que as coisas tomassem outros caminhos adiaram a ideia. Porque, lá no fundo, realmente queria acreditar que a Copa podia ser uma oportunidade de fazer um trabalho interessante contra o racismo. Houve a promessa de novas reuniões, inclusive, e a de que participaríamos ativamente da elaboração da campanha que estava sendo gestada. Se tais reuniões aconteceram, não sei. E também acho que não iria, porque saí de lá me sentindo mal, pensando nas barbaridades que tem sido feitas para que essa Copa aconteça. Mas essa campanha do Neymar, apoiada pela Dilma, me fez decidir de vez que, se tem “Copa contra o racismo”, estou na oposição. Da Copa e da campanha. Quero deixar claro que continuo dando todo meu apoio à SEPPIR, que vem realizando um excelente trabalho dentro das condições mais desfavoráveis, mas acho um absurdo que seja tratada como mero coadjuvante nessa jogada mercadológica da presidência e do Ministério dos Esportes. Vai ter campanha contra o racismo na Copa? Que a articulação seja da Secretaria para a Promoção da Igualdade Racial, e não do Ministério dos Esportes.

A ideia que ouvimos nessa reunião, da presidenta Dilma, é que o slogan da adotado será “Copa contra o racismo e pela paz”. Fico que perguntando que racismo e que paz, porque pelo jeito a articulação de um e de outro estão nas mãos de jogadores, cartolas e figuras midiáticas oportunistas e alienadas que nunca se interessaram seriamente pelo assunto; e da PM, das Forças Armadas e de mercenários estrangeiros. Atenho-me aqui a falar apenas de racismo, assunto para o qual me sinto melhor informada, e a essa altura do campeonato algumas das figuras que temos em campo são:

– O Ministério dos Esportes, encabeçado por Aldo Rebelo. Segunda a presidenta, foi dele a ideia de combater o racismo e proclamar a paz, através de vídeos com personalidades brasileiras e estrangeiras que seriam exibidos nos estádios, antes dos jogos. Seria dele também a ideia de colocar jogadores em campo, carregando flâmulas e faixas contra o racismo e pela paz. Ou seja: nada de novo no front, nem nada que fuja do padrão “pra inglês ver”. E olha que, em 2012, ele e a ministra Luiza Bairros haviam se reunido paradiscutir projetos para a Copa:

“Destacamos a demanda da criação de oportunidades para empreendedores negros e negras e também da criação de observatórios da discriminação, uma ideia que surgiu na Bahia e que pretendemos espalhar por todas as cidades-sede da Copa 2014”, resumiu Luiza Bairros. (…) “Paralelamente a isso, no caso específico da Copa, o observatório também pode prever a realização de festas populares, de maneira que possamos, em todos esses lugares, aproveitar a inclusão efetiva de artistas e grupos culturais populares”, acrescentou Luiza.

Parece-me que as sugestões da Ministra não foram ouvidas. Inclusive, parece-me que Aldo Rebelo se esqueceu completamente dessa reunião, porque disse à presidenta Dilma que a ideia de fazer algo contra o racismo durante a Copa tinha sido dele. Interesse que soa, no mínimo, contraditório com sua trajetória em relação aos interesses da população negra. Ou em completo acordo com a sua atitude de não nos ouvir. Quando boa parte dos movimentos negros estava combatendo a presença de racismo em Caçadas de Pedrinho, livro infanto-juvenil distribuído pelo governo, Aldo Rebelo foi do contra.

O que denunciávamos ali, inclusive, era o racismo presente em Tia Nastácia ser chamada de macaca de carvão. Veja bem: macaca. Termo no qual, apenas agora, ele passou a ver problema? Aldo Rebelo é ferrenho defensor de Monteiro Lobato, racista que lamentava, entre outras coisas, não termos tido uma Ku Klux Klan no Brasil: “País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan é país perdido para altos destinos. (…) Um dia se fará justiça ao Kux-Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destroem (sic) a capacidade construtiva”.

É a Lobato que Aldo Rebelo homenageia ao propor o Dia do Saci, e era o Saci que Aldo Rebelo gostaria de ter como mascote da Copa.

Ou seja, estamos bem de proponente de ações contra o racismo, né?

– O pai do Neymar, que foi quem encomendou a campanha, e deve tê-la aprovado também. Entendo e me solidarizo com a dor de um pai vendo o filho ser alvo de racismo. Principalmente quando esse filho não se vê como preto, caso de Neymar. Mas os ataques racistas contra ele já acontecem há algum tempo. Só agora tornou-se importante fazer algo? Fica parecendo sim, oportunismo, ou birra para provar-se certo em outro caso polêmico envolvendo Neymar e Alexandre Pires, no clip dos macacos.

– A presidenta Dilma, de quem gostaríamos de ver muito mais empenho em causas importantes para a população negra, como as descritas no texto do Douglas Belchior, apoia essa campanha da Loducca e ainda escreve um tuíte que perigosamente resvala na retomada da ideia de democracia racial: “Vamos mostrar q nossa força, no futebol e na vida, vem da nossa diversidade étnica e dela nos orgulhamos. ?#?CopaSemRacismo?” .

Não, a Copa não será sem racismo. A não ser que nos surpreendamos todos com as recém-descobertas propriedades antirracistas da banana. O nosso bom e velho racismo continuará durante e depois da Copa, e talvez apenas não se manifeste durante os jogos. Adoraríamos ser ouvidos e respeitados para além das exigências da FIFA. Racismo é crime! É muito sintomático da impunidade desse crime, perigoso e inaceitável – frise-se: inaceitável – que uma chefe de nação apoie uma campanha que, em vez de pedir punição para um crime do qual muitos brasileiros são alvo todos os dias, incentive o consumo de bananas. A digníssima presidenta tem noção do que ela fez? Racismo no Brasil é crime, presidenta. Inafiançável. Imprescritível. Crime! Anos e anos de luta dos movimentos negros para que racismo seja considerado crime, em um país que aos trancos e barrancos vem relutando em se admitir racista, vão por água abaixo quando uma presidenta acha que está tudo bem “punir” criminosos – frise-se: criminosos – com a “resposta ousada e forte” (palavras dela no Twitter) de se comer banana! Que ela desmonte os sistemas judiciário e penal e instale fazendas de bananas pelo país inteiro, oras; de preferência com uns pretos realizando o trabalho de plantar, colher, recolher e comer. Fiscalizados, é claro, pelo Ministério da Agricultura, como era na época da escravidão.

Será que ainda dá tempo de se testar essa estratégia durante a Copa? E exportar a tecnologia inovadora para todos os países participantes que também lutam contra o racismo? Olha aí, Luciano Huck, grande oportunidade de investimento! Porque tem ele também, correndo pelas laterais:

– Luciano Huck, que parece ter sido super importante para a propagação dessa campanha, com seus milhões de seguidores no Twitter. Tentando lucrar em cima da dor alheia, porque ele e sua família loira nunca foi nem será alvo de racismo, descascou rapidinho a banana de Andy Warhol (ou a camiseta já estava pronta também, assim como a campanha, apenas esperando uma “oportunidade”?), apropriou-se do mote da campanha publicitária e vestiu dois modelos brancos para tripudiar da nossa causa e vender camisetas a R$ 69,00. Esse site avisa que a camiseta está sendo vendida em uma seção chamada “Camisetas do Bem”.

Eu me arrepio toda quando vejo o termo “do bem” associado a qualquer coisa relacionada ao racismo, porque, se vocês não sabem, “Cidadão do Bem”era o nome do principal jornal publicado pela Ku Klux Klan. Eles que, debaixo dos seus capuzes, se consideravam cidadãos do bem. Luciano Huck, bem provavelmente, assim como boa parte dos que aderiram a essa campanha que incentiva a impunidade de um crime, deve se considerar um cidadão do bem. Na luta contra o racismo, armados com uma banana justiceira.

Da mesma maneira que qualquer coisa dita depois de “eu não sou racista, mas…” é racista, essa campanha também é, e estão tentando nos empurrá-la garganta abaixo, dizendo que não. Essa campanha é vazia, burra, rasa, oportunista, leviana, desrespeitosa, criminosa. Reforça estereótipos e barra o diálogo, e por isso o seu sucesso, já que ninguém quer mesmo se envolver muito com o assunto. Está se sentindo ofendido ao ler isso aqui, porque aderiu e/ou achou o máximo? Vá brigar com a Loducca, o pai do Neymar, o Neymar, o Luciano Huck, a presidenta Dilma, as pessoas que nunca levaram a sério a tentativa de diálogo que os movimentos negros estão, há décadas, tentando estabelecer. Se a gente tivesse conseguido ter esse diálogo, uma das coisas que daria para perceber é a dificuldade de se esvaziar a simbologia impregnada em um ícone racista. A banana é um ícone racista, usado por racistas para xingar negros de macacos. Não é um publicitário que, de uma hora para outra, vai declarar que ela não é mais e, como num passe de mágica, ela passa a não ser. Esse pensamento mágico já foi tentado durante várias décadas, com a democracia racial. A gente sabe que não funciona, e bananas atiradas em campo, guinchos e trejeitos imitando macacos ainda estão aí para provar. Não para negar. Numa comparação bem baixa e um pouco falha, eu sei, mas necessária porque é preciso colocar as coisas em perspectiva, será que o Luciano Huck teria coragem, por exemplo, de vender camisetas estampadas com a suástica, símbolo impregnado de nazismo/racismo, porque um publicitário e um jogador de futebol dizem que, de uma hora para outra, comer biscoitinhos em forma de suástica, e fotografar-se comendo-os, é a melhor maneira de ressignificar esse símbolo e transformá-lo em seu contrário, apagando sua história e acabando com o racismo contra judeus? Pois é. Queria ver. Bem como queria ver também outro chefe de nação dizendo a seus cidadãos judeus que tenham sido vítimas de um “Heil Hitler” com seu gesto característico e com a intenção de ofender e humilhar, que é ousada e forte a atitude de, em vez de exigir punição, brincar de “engolir” a humilhação?

O que aconteceu em campo, com o Daniel Alves (a quem presto toda a minha solidariedade), poderia ter provocado uma discussão produtiva, se não tivesse sido esvaziada por essa campanha infeliz e tivesse sido seguida, principalmente por parte dele, de um discurso um pouco mais consciente e consistente. Dá para perceber o despreparo da maioria dos nossos atletas ao lidar com o racismo quando ficamos sabendo, por exemplo, da atitude (essa sim) dos jogadores de basquete do Los Angeles Clippers. Os caras protestaram contra declarações racistas do dono do time – sim, do dono, não de um torcedor – reunindo-se antes de uma partida, no centro da quadra, retirando seus uniformes e usando as camisas de aquecimento do lado do avesso, escondendo o logo do time.

Na verdade, dá é vergonha de comparar, e lá racismo nem é crime. E dá mais vergonha ainda quando sabemos da atitude (essa sim) de Obama, que foi a público condenar a atitude incrivelmente ofensiva e racista: “Temos que, constantemente, estarmos atentos às manifestações racistas que nos dividem mais do que salientam nossa diversidade como uma força. Os Estados Unidos continuam a lutar contra o legado da escravidão e da segregação, que ainda está aí, os vestígios da discriminação. (…) E eu acho que temos que ser claros e firmes em denunciá-la, ensinando nossas crianças de uma maneira diferente, mas também permanecendo esperançosos de que parte do motivo pelo qual declarações como essa se sobressaem tanto é porque já houve uma mudança no modo como nos vemos”.

Enquanto isso, temos uma presidenta que se presta ao papel de ficar batendo palma para internautas dançarem sobre nossas dores, involuírem com as nossas lutas e comerem banana. Porque ela acha que salientar a nossa origem comum de primatas vai fazer com que racistas, que nem se assumem e nem se sabem racistas, deixem de ser racistas. Às vésperas de uma Copa na qual quer mostrar ao mundo que somos modelo de combate ao racismo.

Se a gente não quer passar mais vergonha ainda, e nem digo como nação, mas como seres pensantes e atuantes em causas que nos são caras (racismo e paz, além de outras coisinhas mais), está é mais do que na hora de tomarmos as rédeas dessa campanha. Na raça. Porque não dá pra confiar nesse povo que está aí no comando, fingindo que pensa o problema, que planeja, que se preocupa e que resolve, enquanto só o empurra pra baixo do tapetão. Que tal pensarmos juntos numa campanha paralela, realista, denunciatória e que eleve o nível dessa discussão?

*A mineira Ana Maria Gonçalves foi para a Ilha de Itaparica escrever seu romance, Ao lado e à margem do que sentes por mim. O livro, escrito durante seis meses, foi publicado de forma independente. Já em parceria com a Editora Record publicou o aclamado Um defeito de cor, inspirado em Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama.

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