Você é capaz de enxergar o outro na internet ou apenas se vê no espelho?, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Um amigo jornalista defende a tese de que uma parcela das pessoas não está na internet para se informar, mas apenas para poder discutir. Para elas, tudo o que precisam saber já teria sido ensinado na escola, na igreja, na família ou passado pelo telejornal da noite.

Em muitos casos, a pessoa até descobre que a posição do autor ou da autora faz sentido mas, frustrada por uma vidinha bem sem graça, precisa extravasar em algo. Daí texto vira saco de areia. Às vezes, o negócio vai tão no automático que basta identificar o nome de quem escreveu e, muito superficialmente, o tema para começar a soltar preconceitos loucamente. E bate, bate, bate, descontando raiva. Raiva que, na verdade, sente de sua própria condição mas, na maioria das vezes, não percebe. Porque, como ouvimos aqui e ali, “eu não sou louco para ter que fazer terapia ou análise”.

Particularmente, não me importo em ser sparing de comentarista de internet. É claro que torço para que os mais virulentos paulatinamente desapareçam porque isso significará o aumento do nível educacional, intelectual e cidadão de nossa gente. Mostrará que as aulas de interpretação de texto funcionam. Mas, não nego, que gostaria que alguns se mantivessem por uma questão de interesse puramente acadêmico. Pois nenhuma espécie merece a extinção só por ser estranha. E, além do mais, trolls podem ser divertidos. Retomo algo que já havia trazido aqui para provar este ponto.

Atentem para o texto:

Vovó viu a uva.

Interpretação 1:

O jornalista é um idiota vendido para ONGs internacionais que acha que o alimento que ele consome vem da gôndola do supermercado. Não imagina que, por trás de tudo, e sustentando tudo, inclusive o superávit da balança comercial, há um pujante agronegócio e abnegados produtores rurais. A idosa em questão apenas viu a uva, mas por que ele se nega a dizer quem a plantou? Qual o interesse de esconder em seu texto ativista quem a cultivou? Quem a selecionou e trouxe para a mesa da idosa a fim de que pudesse ser vista? O agronegócio está cansado e a população deve fazer uma escolha: ou produzimos uvas ou preservamos o meio ambiente. Mais respeito com o produtor rural e menos preocupação com índios, quilombolas e ribeirinhos, que, como todos sabemos, não produzem uva.

Interpretação 2:

Esta necessidade do politicamente correto vai acabar conosco mais cedo ou mais tarde. Certamente a vovó não viu a uva, nem tinha interesse em vê-la. Mas o jornalista , capacho de um feminismo de botequim, inseriu a vovó na história só para poder comer a mulherada que lê seus artigos, se fazendo de, como posso dizer, sensível. O cretino quer ganhar uma avaliação positiva no Lulu. Todos nós sabemos que a vovó está mais interessada em fazer um bom tricô, cozinhar um bolo para a família, cuidar dos netos ou conversar com as amigas na varanda. Ver a uva é coisa de homem, sempre foi. Afirmar que vovó viu a uva só ajuda a desestabilizar a família brasileira, criando embaraços para o vovô, que lutou a vida inteira para sustentar a casa e garantir que uvas chegassem à família. E, agora, ele não pode nem ver o fruto do seu trabalho? Tristes tempos são estes…

Interpretação 3:

O “jornalista”, ao trazer essas obscenidades para as nossas casas, ajuda a entregar seus filhos de mão beijada para o capeta, que é ardiloso. O livro de Levítico é muito claro: Mulher nenhuma poderá ver a uva de ninguém, a não ser a do seu próprio marido, com união consagrada perante Deus e apenas com fins de procriação. Mulher ver a uva é abominação, com pena de apedrejamento em praça pública. Antes desse clima de permissividade, nem se falava da uva em público. Hoje, uma cena grotesca, como uma pura vovó vendo uma uva, é difundida pela internet sem pudor. Graças ao Senhor Jesus, contudo, nós temos o pastor Marco Feliciano no Congresso Nacional que deve aprovar um projeto de lei impedindo que a uva seja vista e pronunciada. Salve, aleluia, salve! Converta-se enquanto é tempo!

Interpretação 4:

Nós da Associação Empresarial dos Amigos da Escola gostaríamos de vir a público, através desta nota, para demonstrar nosso desprezo contra a invasão de comunistas na educação das crianças deste Brasil demonstrada neste texto. Ao invés de aproveitar a alfabetização para incutir na juventude valores caros à nossa sociedade como a livre iniciativa, a competitividade, a meritocracia e o darwinismo sócio-econômico, eles esvaziam a educação básica com questões sem importância, vovós e uvas. Vejamos o caso de Joãozinho. Se ele tivesse se alfabetizado através dessa cartilha hoje seria um Zé Povinho. Ao contrário, usando o método de inclusão cidadã da Associação Empresarial dos Amigos da Escola, ele partiu de uma criança que devorava biscoitos feitos de barro e brincava com ossinhos de rabo de zebu para se tornar o CEO de uma grande multinacional . Se Joãozinho de tornou alguém sem a ajuda do Estado ou de vovós, sem depender de professores que só reclamam de salários e faltam às aulas, por que insistirmos em custos caríssimos, gastando em uvas na merenda escolar pagas com dinheiro público?

Interpretação 5:

A Vovó viu a uva porque é uma petralha vagabunda, que mama nas tetas do governo federal, depois de ter conseguido um cargo porque trabalhou na campanha de um mensaleiro. Enquanto o brasileiro nem sonha com cheiro de laranja, essa desqualificada de esquerda come cachos de uva comprados com nossos IMPOSTOS! Mas o gigante acordou e esse caso será levado para o Supremo Tribunal Federal para a cassação do patrão da vovó e a restituição de todas as uvas a seus proprietários de direito, que são os homens de bem do Brasil.

Interpretação 6:

Vovó vê uvas, codornizes e caviar porque ficou de bico fechado para fazer vistas grossas no escândalo do trensalão paulista. Na verdade, as uvas estão em cima da mesa da vovó desde a fundação do país. Esteve nas capitanias hereditárias, na Casa Grande, nos Palácios do Café até chegar às mesas dos Jardins, com gosto de um capitalismo decrépito que, crise atrás de crise, está caindo de velho diante da organização popular. O povo está com fome e não quer comer brioches, mas sim uvas. As uvas que hoje o capital saboreia. Apesar da vovó, amanhã há de ser outro dia.

Interpretação 7:

Vovó viu a uva significa que a vovó viu a uva.

Enfim, muita gente, quando lê, não descobre o outro. Apenas vê a si mesmo no espelho.

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