A coisa mais importante em Belo Monte, por Claret Fernandes*

uniao-do-povo*para Combate Racismo Ambiental

No dia 8 de março os bancos em Altamira estão mais cheios que o normal. Vê-se pelas filas enormes, que passam além da esquina. O aluguel, já atrasado, fica para o dia seguinte, pois a secretária não consegue sacar o dinheiro no Banco do Brasil.

É dia de pagamento em Belo Monte! Essas ‘máquinas’ poderosas, e as mais importantes do mundo todo, as que produzem todas as riquezas e podem tornar-se extremamente ‘perigosas’, recebem seu salário e lotam ainda mais a cidade.

Formam-se aqueles montes nos pontos de ônibus. O uniforme cinza com as marcas de sal, sugado gota a gota pela CCBM, fica em casa. O traje é leve, com um quê de chique, muitos trabalhadores com bermuda e tênis.

A imensa maioria é homem.

Cada ponto, cada boteco, cada loja, tudo está lotado. Parece dia de festa!

O confinamento no canteiro de obra impõe uma rotina estressante na vida do operário, que fica louco ou precisa extravasar-se. Em consciência, uma parte do dinheiro ele manda para a mulher e os barrigudinhos no Estado de origem e, a outra parte, torra nos bares, no bordel, nas festas.

Um deles disse ficar abobado com a engrenagem maluca à qual é submetido. Confessa até que veio para trabalhar bastante, juntar dinheiro no menor tempo e gozar a vida junto à sua família, no Maranhão, mas isso são águas passadas. A engrenagem, que não para, lhe muda os miolos. Agora entrou na roda, e a fila anda.

Os músculos, assim tão fortes, facilmente arrancam com a força física o dinheiro do mês seguinte, movimentando a Belo Monte, que vai a pleno vapor, e, por isso, não é preciso reservar o que já está seguro, no bolso.

Enquanto isso, mais um acidente na Tancredo Neves! Todos os dias eles acontecem e quase ninguém liga mais.

É comum! Altamira, sem as condicionantes cumpridas, virou um caos. A barragem de Belo Monte é um crime não só porque barra o Xingu, devasta floresta, prejudica o peixe, a ave, o animal, mas, principalmente, porque mói vidas humanas, no canteiro e fora dele.

Dessa vez foi um acidente tão trágico, que ainda chamou a atenção. O caminhão passa por cima do ciclista. Um Senhor de Assurini que, sozinho, cuidava de três filhos. O motorista até admite ter ouvido um barulhozinho, mas, como não viu nada, seguiu em frente.

Debaixo de uma árvore, cuja sombra virou espaço de plenária do povo, bem perto da Casa de Governo, há duas bolsas novinhas, uma de luxo, jogadas no canto da rua. Papéis e mais papéis se espalham pelo chão, sinal de que foram reviradas à cata de qualquer coisa dentro. A polícia civil informa que com a greve dos pracinhas da PM, a partir de sexta-feira (4), houve registro de mais de 40 ocorrências.

Por sua vez, a TV do Prefeito propagandeia o melhor abrigo do mundo, o Parque de Exposições. Mas as quase duas mil pessoas ali dizem que a situação é bem outra. A pressão popular muda um pouco o ambiente para melhor. Mas ainda muito longe do razoável. A água, por exemplo, é imprópria para consumo humano. E há muitas pessoas, especialmente crianças e idosos, com diarréia.

A militante comenta de sua dificuldade em ir à reunião pela tarde, pois o filho mais novo passou mal à noite toda com o incômodo, e ainda está molinho. Ela acabou indo porque militância é militância, mas com o coração cortado.

Na parte mais nobre do Parque, perto de onde as pessoas se amontoam, ficam os cavalos de raça de ricaços da região. Cada um daqueles cavalos vale uma nota!

Os donos se juntam e pagam o zelador para os animais. E, vez por outra, aparece um naqueles carrões para ver como passam.

Os cavalos têm comida balanceada, água potável, banho quantas vezes quiser durante o dia. Não lhes pode falta nada!

Muitos acham isso errado! Mas dizem, apenas, que é sorte dos cavalos. Triste sina de um povo que trata o destino como sorte! Eles (os cavalos) têm um dono enricado! As famílias não têm donos, e não possuem quase nada.

 O que as famílias têm muito ali, e que é uma preciosidade, são as crianças. Elas sofrem, mas persistem.

Essa gente impactada negativamente pela barragem, porém – gentinha para muitos – está se metendo agora a ser dona do seu destino. Quem não tem dono e nem é dono de quase coisa alguma se propõe a ser dono do próprio nariz, e da história.

Essa é, no momento, a coisa mais importante que vem acontecendo em Belo Monte: o despertar de um povo!

As opiniões se dividem! Alguns acham muita pretensão, outros acham que essa gente tem razão.

Alguns desavisados se assustam. Habituados a dizer que o ‘povo não quer nada’ e a enrolá-lo com promessas, agora vêem mover-se aquilo que consideravam uma estátua. Alguns se irritam, pois perdem, com isso, o posto confortável de mediadores. Mas muitos pulam de satisfação.

O povo vai se mexendo! Não é a invenção da roda, mas é um girar diferente.

Não é fácil! Às vezes as próprias pessoas se desentendem uma com a outra, deixam a reunião, atropelam-se na ‘sede ao pote’, pois também não estão acostumadas com o exercício do poder. Sempre alguém ‘resolveu’ o problema delas. Sempre alguém foi a ‘voz’ delas na Câmara, na Associação, no Sindicato, mesmo sem saber se é exatamente aquilo que queriam dizer. Sempre sonharam com alguém que as levasse para águas tranqüilas e verdes pastagens. Mas agora sabem da melhor ‘pastagem’ que lhes convém. Agora percebem que só elas, e mais ninguém, podem resolver os próprios problemas.

Isso não é anarquismo; é que quando as mediações caducam, a organização popular é capaz de acordar-lhes a consciência, gerar novas mediações e avançar passos na história.

Mas é a coisa muito linda de se ver! É coisa linda a tomada de consciência de um povo! Mais belo que o verde da floresta, que o tremular das águas, que a cachoeira grande do Xingu, que a suavidade do vento no inverno, que o barulhozinho da chuva mansa da madrugada. Gente lascada se une, ergue a cabeça e busca ser gente na vida.

Não sei se isso já é o ascenso de massa ou se ainda é só desespero. Pois no Xingu há razão de sobra tanto para esperança quanto para desespero. Não sei, também, se vai dar em barbárie, pela força da opressão, ou poder popular. Toda conjuntura é multifacetária. O que sei é que coisas que há muito não ocorriam com o povo começam a ocorrer. O que era eventual vai se tornando processual. O que era fragmentado vai ganhando unidade.

No dia 4 de março duzentas pessoas ocuparam o Jatobá. No dia 13 de março quase mil pessoas pararam a rodovia de acesso a Belo Monte, impedindo a passagem da empresa e forçando uma reunião. A Norte Energia foi obrigada a ceder, pois 5 mil operários ficaram parados.

A empresa não tem medo dessa semente de organização popular! O que sente é uma cócega de nada feito mosca inoportuna a zumbir-lhe na orelha. Mas teme de verdade o poder de germinação dessa semente. Ela sabe que sementes germinam, se espalham, e formam grandes florestas.

Ela não deixa por menos! De um lado, atende parte da demanda historicamente reprimida como a colocar quebra-molas para diminuir o impacto da revolta popular. Por outro lado, processa supostos líderes, com interdito proibitório, acreditando que, assim, o Movimento se dissolve.

Mas o fermento da luta através da pressão popular vai se disseminando. Houve uma luta histórica. Veio um desânimo. Mas o  clima agora é outro! Belo Monte, com toda a sua força bruta, não consegue parar o povo!

Quem é militante já sente a diferença. Antes os próprios vizinhos chamavam a militância de idiota: ‘tanta reunião para não dar em nada’, comentavam. Às vezes, quando os procurava, até fugiam dela para poupá-la de um não na cara.

A Norte Energia até ouvia o povo, mas com um ar de cinismo, como se escuta um cão enraivado a ladrar, mas acorrentado. Agora essa corrente, que só existe na cabeça, está prestes a romper-se. E gente com mente livre é gente na vida. É gente que sonha! É gente que ousa lutar!

O telefone da militância não para de tocar. Mais um e mais um quer entrar. A agenda está lotada, mais que as ruas de Altamira! Haja discernimento para tocar o prioritário. Nesse momento, método é fundamental.

O tempo é de possibilidades, e de muito aprendizado.

Ainda na noite do dia 8, os mototaxistas, que chamaram o Movimento para conversar, ligaram convidando para a carreata dos pracinhas da PM, em greve. Carros e motos, centenas e mais centenas, seguiram buzinando do Quartel à Câmara Municipal. Também eles sentem os problemas na pele.

Não há estrelas no céu de Belo Monte! As poucas se apagaram quase por completo! Mas há uma luz que brilha, e vem da organização e da união do povo.

A noite não é tão escura.

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