Pelé acha “normal” operários morrerem em obras de estádios, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Pelé é como aquele tio que só fala groselha na ceia de Natal. Todo mundo acha engraçado, mas ninguém leva muito a sério. Contudo, há limites para tudo.

Após ser questionado sobre a morte de mais um operário nas obras do Itaquerão, em março, ele afirmou: ”Isso é normal, pode acontecer, mas a minha maior preocupação é quanto à estrutura, os aeroportos, porque no Brasil sempre dá-se um jeitinho”. De acordo com matéria de Bruno Thadeu, do UOL, ”voltei recentemente para o Brasil e o aeroporto está um caos. Essa é minha preocupação.”

Particularmente acho que mortes são piores que atrasos em obras de aeroportos. Mas todo mundo tem sua prioridade.

De certa forma, os piores problemas na maior parte das obras de estádios e aeroportos têm o mesmo DNA: a terceirização tresloucada que torna a dignidade responsabilidade de ninguém. Mais ou menos assim: Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata a Maga Patalógica, que subcontrata o Donald, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas toca o barco mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem bizarrices. Depois, quando tudo acontece, Donald, Patalógica, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles. E aí, ninguém quer pagar o pato – literalmente. Ficam os trabalhadores a ver navios, como Patetas.

Em São Paulo, já foram três mortos no estádio da Copa e 111 trabalhadores resgatados do trabalho análogo ao de escravo na ampliação do aeroporto internacional.

Quando alguém passa desta para a melhor salpicado de sangue e cimento, temos um comportamento bizarro, de crítica quase que envergonhada. A reflexão não pode durar muito porque, afinal de contas, a vida segue. Comprei meu apartamento e ele deve ser entregue, o estádio do meu time tem que ficar pronto, a estrada deve ser asfaltada e o metrô entregue, preciso de energia para a minha indústria e este ano tem eleição. Alguém deve arcar com essas demandas e com a falta de recursos para tanto. Então, que se tome mais uma cachacinha, encha a boca de arroz com feijão e pau na máquina. Amanhã todo mundo já esqueceu o corpo estendido no chão.

Logo após marcar seu milésimo gol no dia 19 de novembro de 1969, Pelé disse ”vamos proteger as criancinhas necessitadas”.

Mas não explicou que, ao completar 18, elas que se danem. Pois o que importa, de verdade, é que não tenhamos aeroportos com cara de rodoviária na Copa.

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