Entulhos do autoritarismo: o que resta da ditadura nos dias de hoje

entulhosStella Maris – Adital

Praça do Ferreira, Fortaleza, Ceará, Brasil, 31 de março de 2014. Movimentos sociais de várias vertentes – Igreja, partidos políticos de esquerda, sindicatos, anarquistas, frente de luta por moradia, ex-presos políticos, etc, comunicam, ainda que desnecessário, pois sob o manto do Estado Democrático de Direito, a realização do ato “Ditadura Nunca Mais, Nem Militar, Nem Civil, Nem de Estado, Nem de Mercado”, em descomemoração ao Golpe Civil Militar de 1964, bem como com o objetivo de denunciar seus resquícios e entulhos ainda vivos em nossa frágil democracia. Na véspera, chega a negativa do Poder Público Municipal, sob a alegação de que a praça fora cedida, antecipadamente, aos militares da reserva e simpatizantes do movimento “Intervenção militar, já”.

Se resistir à repressão e à censura durante os 21 anos que perdurou a Ditadura Civil Militar brasileira sob ameaça de tortura, execução sumária e desaparecimentos forçados foi, para muitos dos ali presentes, um ideal de vida e de luta, não aceitá-la, repudiá-la e enfrentá-la nos dias atuais, é um passo à frente na luta por justiça de transição e um degrau a mais na consolidação da democracia.

Se os movimentos sociais engajados na luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça, e os novos segmentos protagonizados, especialmente, pela juventude que emergiu das manifestações de junho de 2013 estão dispostos a levar à cabo a necessidade real de reescrever a verdade histórica desses 21 anos de obscuridades, o Poder Público Municipal de Fortaleza e o Governo do Estado do Ceará vêm na contramão desse processo histórico.

Reflexo disso foi a proibição e criminalização do ato de descomemoração ao Golpe, e a concessão da Praça do Ferreira, agora do povo, aos defensores do regime ditatorial, da tortura e da intervenção militar, pelo Município de Fortaleza. A criminalização ficou mais óbvia ainda quando o Governo do Estado autoriza a espetacular missão que ensejou o deslocamento de cerca de duzentos policiais do Batalhão de Choque para dividir a Praça, protegendo os militares da reserva e simpatizantes dos “agitadores”, “comunistas”, “desordeiros”, expressões bastante pronunciadas no trio elétrico instalado por eles.

Mas o povo que não recuou no período mais truculento de repressão institucionalizada no país aprendeu e ensinou a geração que levará a história de resistência da geração anterior, o preço das conquistas de direitos, das liberdades substantivas. Ninguém recuou.

A Praça do Ferreira, histórico palco de manifestações da classe trabalhadora, se transformou nesse 31 de março num claro exemplo da luta de classes. De um lado, 70 manifestantes, entre reservistas e simpatizantes da Ditadura, amplamente protegidos pelo aparato estatal, e, de outro, 500 militantes, que se negaram a se retirarem, mesmo após a abordagem de fiscais do Município, ordenando a retirada das instalações e faixas, utilizando-se do poder simbólico da violência, provocada pela barreira policial instalada em posição de enfrentamento.

E é nesse ponto que reside a importância de conhecermos nosso passado para não deixar que ações autoritárias advindas de uma cultura violenta se repitam em nossa curta experiência democrática. Se ainda passamos por momentos que muito se parecem com os anos de chumbo é porque a democracia não foi aprofundada e está permeada por entulhos originados da Ditadura Militar. Esses entulhos são, dentre tantos: a militarização da polícia e da política, o desaparecimento forçado de vários “Amarildos” nas periferias, a criminalização dos movimentos sociais, a impunidade aos agentes de estados responsáveis por torturas, sequestros, desaparecimentos e assassinatos, além da negligência do poder público constituído para com o fortalecimento da democracia e da justiça de transição.

O que vimos do lado dos “terroristas” de 2014 foi exemplo de que relembrar é resistir, com esquetes teatrais, falas e canções, que repetiam, em uníssono: Ditadura nunca mais!

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