A perseguição a editores e livreiros na ditadura

Guilherme Freitas – O Globo

Numa das muitas ocasiões em que foi preso durante a ditadura, em maio de 1965, o editor Ênio Silveira recebeu uma inesperada demonstração de apoio. Na mira do regime desde o início por sua atuação à frente da Civilização Brasileira, casa de vários autores de oposição, ele foi detido por promover uma feijoada em homenagem ao ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, cassado logo após o golpe. A prisão arbitrária foi contestada por um abaixo-assinado com mais de mil nomes, de militantes históricos de esquerda ao compositor Pixinguinha. E por um bilhete manuscrito do marechal Castelo Branco ao chefe de seu Gabinete Militar, general Ernesto Geisel: “Por que a prisão do Ênio? Só para depor?”, perguntava o presidente. “Apreensão de livros. Nunca se fez isso no Brasil. Só de alguns (alguns!) livros imorais. Os resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror cultural”.

A expressão “terror cultural” havia sido cunhada por Alceu Amoroso Lima para se referir à perseguição de intelectuais e artistas no início do regime. Mais tarde, foi tema de um número especial da “Revista Civilização Brasileira”. Revelado pelo jornalista Elio Gaspari em “A ditadura envergonhada” (Intrínseca), o bilhete de Castelo Branco flagra um momento em que a “linha dura” do regime começava a se impor (e mostra que o marechal supostamente moderado também enxergava livros “imorais” como ameaça). Nos anos seguintes, sobretudo após o AI-5, em 1968, o “terror cultural” se alastrou. Entre seus principais alvos estavam editoras e livrarias.

Um dos símbolos dessa perseguição foi o atentado a bomba contra a Livraria Civilização Brasileira, em 1968. Instalada desde 1955 na Rua Sete de Setembro, no Centro do Rio, a loja havia se tornado centro de debate político e ponto de encontro de autores da casa, artistas e intelectuais de esquerda como Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Di Cavalcanti, Nelson Werneck Sodré e Dias Gomes, entre muitos outros. Na madrugada de 14 de outubro, dois meses antes do AI-5, uma explosão provocada por terroristas de direita deixou parcialmente destruída a fachada, com seu imponente cartaz com os dizeres “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”. Anos depois, o depósito da editora também sofreu atentado a bomba e foi incendiado.

Oposição ao regime

As represálias contra Ênio – que, além dos atentados e prisões, incluíam apreensões de livros e restrição de crédito – atingiam também seus colaboradores, como lembra Aníbal Bragança, professor da UFF e autor de “Impresso no Brasil – Dois séculos de livros brasileiros” (Editora Unesp). Em 1966, aos 21 anos, Bragança foi um dos fundadores da Livraria Diálogo, em Niterói, que tinha uma parceria com a Civilização Brasileira, vendendo os livros e a revista de Ênio e recebendo seus autores para lançamentos e cursos. Nos primeiros dois anos de atividade, a Diálogo se tornou um movimentado espaço cultural.

Em outubro de 1968, a Diálogo fez sua estreia como editora, publicando a primeira tradução brasileira de “O Estado e a Revolução”, de Lênin. Era para ser o início de uma série dedicada ao pensamento marxista. Mas, nos dias seguintes ao AI-5, em meio a uma intensa campanha difamatória (um jornal local alardeou que a Diálogo “importava toneladas de subversão para Niterói”, diz Bragança), a livraria foi invadida e fechada pela polícia, e os proprietários ficaram presos por uma semana.

– Ênio sempre foi uma referência para o meu trabalho como livreiro e editor. Era um homem que pensava o Brasil e que personificava o engajamento na luta pela cultura do país – diz Bragança, que vendeu a Diálogo em 1971 e, quatro anos depois, abriu outra livraria em Niterói, a Pasárgada, que fechou as portas em 1986.

Em 1973, o empresário Fernando Gasparian comprou a editora Paz e Terra de Ênio Silveira, que a havia adquirido anos antes para diversificar suas atividades e tentar despistar o regime. Filiado ao MDB e cassado pela ditadura em 1969 por conta de suas atividades políticas, Gasparian se exilara na Inglaterra e voltara em 1972 para fundar o jornal “Opinião”. Com uma rede de colaboradores brasileiros e estrangeiros, como Antonio Candido, Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer e Eric Hobsbawm, e editado por Raimundo Pereira, tornou-se um espaço de oposição que reunia uma ampla gama de tendências políticas. Sofreu censura desde as primeiras edições, e Gasparian foi preso várias vezes por contrariar o regime (o “Opinião” tinha uma coluna sobre xadrez, e a piada na redação era que, quando um russo ganhava, o jornal era apreendido). Em pelo menos uma ocasião forças paramilitares explodiram uma bomba em frente à sede do veículo, no Jardim Botânico, deixando um bilhete que ameaçava “Gasparian e seus asseclas”.

Essas dificuldades se estenderam à Paz e Terra, que Gasparian transformou em um refúgio para livros de autores perseguidos, como Paulo Freire, Celso Furtado e Barbosa Lima Sobrinho. Muitas livrarias recusavam os títulos, com medo de sofrer atentados como os cometidos contra bancas de jornal que vendiam o “Opinião”. Gasparian então fundou a Livraria Argumento, no Leblon (mesmo nome de uma revista que teve vida breve, abatida pela censura). Palco de lançamentos históricos da Paz e Terra, como “Não à recessão e ao desemprego”, de Celso Furtado, e “Tempo de Arraes”, de Antonio Callado, a Argumento reunia centenas de pessoas em eventos que se tornavam fóruns de oposição em tempos de abertura.

– O “Opinião”, a revista “Argumento” e a Paz e Terra não existiam para dar lucro, e sim para fortalecer a oposição ao regime. Não eram empresas, eram uma frente política – diz Marcus Gasparian, filho de Fernando, hoje à frente da Argumento.

“Éramos jovens”

Em “Livros contra a ditadura – Editoras de oposição no Brasil 1974-1984” (Publisher), Flamarion Maués mostra como o período de abertura iniciado com Geisel transformou, ainda que lentamente e não sem contradições, o ambiente de “terror cultural”. A censura, as prisões e as apreensões de livros continuavam, mas editoras com histórico de oposição, como Civilização Brasileira, Paz e Terra (ambas pertencentes hoje ao grupo editorial Record), Vozes, Codecri, Zahar e Brasiliense, intensificaram suas atividades. E surgiram também o que Maués chama de “editoras de oposição engajadas”, pequenas casas vinculadas a partidos ou movimentos de esquerda.

No livro, Maués estuda três destes casos: Ciências Humanas, ligada ao PCB; Brasil Debates, ao PCdoB; e Kairós, ao grupo trostskista Libelu (Liberdade e Luta). Com catálogos voltados principalmente para intervenções nos debates de esquerda, e sem projetos empresariais, a maioria das editoras “engajadas” tinha vida curta. Mas deram contribuições importantes para a redemocratização, diz o autor.

– Mesmo com a abertura, ainda havia um cerceamento do debate politico. A maioria dos canais de participação publica estava fechado para a esquerda. A imprensa alternativa e as editoras se tornam o espaço que os intelectuais encontram para se organizar e ter uma atuação política e cultural – diz Maués.

Fundada justamente em 1974, a L&PM, sediada em Porto Alegre, estreou com um livro que já testava os limites da anunciada abertura política. Era uma coletânea de quadrinhos do personagem Rango, anti-herói miserável criado pelo cartunista Edgar Vasques que ironizava o discurso grandiloquente do “milagre brasileiro”. O livro vendeu 12 mil exemplares em poucos meses e rendeu ao editor Ivan Pinheiro Machado uma visita à delegacia para explicar as piadas com símbolos pátrios.

Assim como outras editoras perseguidas, a casa gaúcha sofria apreensões de livros e tinha crédito negado em bancos (num deles, Ivan ouviu do gerente que “o coronel ligou para cá e disse: L&PM não!”). Mas sobrevivia publicando livros de políticos da oposição, como Paulo Brossard e Pedro Simon, literatura nacional e estrangeira e antologias de humor com autores como Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, os irmãos Caruso e Angeli, entre outros. O lançamento mais conturbado foi “A verdade de um revolucionário”, livro de memórias do general Olympio Mourão Filho, um dos artífices do golpe de 1964. Morto em 1972, Mourão deixou uma obra em que dava sua versão dos eventos e criticava figuras proeminentes do regime. O livro foi apreendido ainda na gráfica, em 1978, e só foi publicado no ano seguinte, depois de uma longa disputa judicial.

– Acho que foi a última apreensão de livros da história do Brasil, até chegar o Roberto Carlos… – ironiza Ivan, relembrando o início turbulento da editora, que este ano completa 40 anos. – Éramos jovens e tínhamos um idealismo, uma revolta contra aquela situação. Lembro que o Darcy Ribeiro uma vez me disse: “Mas você é editor, numa época dessas? É por isso que o mundo vai para frente, por causa da insciência da juventude!”.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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