Organização popular no Vale do Salitre: População lança Carta Política para órgãos públicos e sociedade

Foto: TV Salitre
Foto: TV Salitre

Por Gisele Ramos*, em  APSFV

O Vale do Salitre, no submédio São Francisco, é uma região conhecida pelos conflitos em relação ao acesso à água e a terra, mas essa nem sempre foi a realidade do povo salitreiro. Antes da chegada dos grandes produtores que se apossaram das terras indevidamente e nelas desenvolveram os projetos de irrigação, no rio Salitre corria água o ano todo, o que possibilitava prática da agricultura familiar agroecológica. Para discutir toda essa transformação sociocultural que se reflete no atual modelo de desenvolvimento agrário, a comunidade da Alfavaca sediou no dia 16 de março o seminário, Salitre: De onde viemos? Para onde vamos?.

O evento contou com a participação de aproximadamente 20 comunidades do Salitre, representantes da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Comitês de Bacia Hidrográfica do São Francisco e do Salitre, Câmara de Vereadores, órgãos públicos e sociedade civil. O evento foi pensado para reunir o povo salitreiro com o objetivo de refletir a realidade atual do Vale do Salitre a partir das histórias de vida e luta das comunidades.

Após a entrega da Arca das Letras e inauguração do Núcleo de Leitura D. José Rodrigues, projetos comunitários de incentivo à leitura, a salitreira Érica Daiane Costa, membro da Articulação São Francisco Vivo, fez uma abordagem histórica das políticas, projetos e programas públicos voltados para as comunidades do Vale. O Projeto Salitre, por exemplo, com uma área irrigável estimada de 31.305 hectares, foi apresentado pelo governo como um investimento em infraestrutura para garantir a agricultura irrigada e, desta forma, alcançar uma melhor qualidade de vida. “Esta, porém, não é a realidade que estamos acompanhando. Dos 255 lotes previstos no projeto, apenas onze são de moradores nativos do Salitre; quanto os outros, não sabemos de quem são e de onde vieram”, comentou.

A situação de exclusão atual das comunidades do Vale do Salitre revela a necessidade de organização comunitária para proposição, monitoramento e execução integrada de políticas e programas públicos de desenvolvimento a partir dos potenciais e necessidades das culturas locais: agricultura familiar agroecológica, manifestações das culturas populares, pequena agropecuária apropriada, artesanato. Após essa contextualização, a plenária foi dividida em grupos para debater a atual realidade do Salitre, a partir de alguns pontos como: acesso a terra e à água na comunidade, educação, saúde, modo de produção, organização popular. A partir da socialização do trabalho em grupo, foi criada uma carta política, que reafirma as verdadeiras necessidades da comunidade.

Acesso a Terraum dos problemas centrais do Salitre – Durante as reflexões de como vem sendo imposto o modelo desenvolvimentista na região do Salitre, a representante da CPT, Marina Rocha, expôs sobre os conflitos agrários que são gerados, direta ou indiretamente, pelos grandes empreendimentos modernos, seja pelo deslocamento das comunidades de suas terras, muitas vezes sem a devida indenização, seja pelos impactos socioambientais gerados pelo manejo insustentável que esses empreendimentos fazem dos recursos naturais. Ela destacou os casos da mineração e dos empreendimentos de geração de energia eólica. No caso da mineração, os impactos ambientais são irreversíveis, já que a retirada do minério significa a retirada da camada protetora dos aquíferos responsáveis por manter a perenidade dos rios no longo período de estiagem que caracteriza a região semiárida. “Para resistir a essas ameaças, é necessário que as associações lutem unidas pelos bens comuns, que são a terra e a água”, disse.

Para o Coordenador Geral do Irpaa, Ademilson da Rocha (Tiziu), convidado para falar sobre a Convivência com o Semiárido, a maioria do povo salitreiro tem um forte sentimento de pertencimento e valorização de sua comunidade. Ele pontua que apesar da região ser lembrada pelos conflitos de água, o maior problema na comunidade está ligado às questões fundiárias, pois sem terra do tamanho adequado, não tem como ter água, nem a prática da agricultura familiar. Apesar de todas as dificuldades pontuadas pela comunidade, ele acredita na mudança desse cenário, no potencial que a juventude do Salitre tem de se organizar e promover um processo de transformação social através dos instrumentos de participação política.

O Seminário foi encerrando com diversos encaminhamentos, a exemplo da necessidade de organizar outros momentos para debater as carências, conquistas e perspectivas para o povo do Salitre. Também foi feita a leitura das propostas construídas ao longo do encontro, que estão sendo encaminhadas para os mais diversos públicos. Leia abaixo a Carta Política do Seminário:

Salitre: de onde viemos? Para onde vamos?

Nós, salitreiros e salitreiras, jovens, adultos, crianças e idosos, de aproximadamente vinte comunidades situadas à margem direita e esquerda do Rio Salitre e diversas organizações sociais que apoiam as nossas lutas, nos reunimos no dia 16 de março na comunidade de Alfavaca para refletir sobre nossa história, problematizar nossas realidades e propor elementos que constituem um projeto popular para o Salitre.

Iniciamos nosso encontro com a inauguração do Núcleo de Leitura D. José Rodrigues e a entrega da Arcas das Letras, iniciativas que são bem vindas para contribuir com o fortalecimento do gosto pela leitura e busca pelo conhecimento.

Hoje tivemos também a oportunidade de conhecer diversos marcos da nossa história, a exemplo do massacre dos povos nativos na foz do Rio Salitre no ano de 1675 e a morte de dois empresários na comunidade de Campo dos Cavalos no ano de 1984.

Lembramos da chegada da energia elétrica em nossas comunidades e com ela a mudança no modo de produção, com forte exploração e concentração da terra e da águas e de um modelo de agricultura centrado em tecnologias de irrigação, agrotóxicos e cultivos temporários.

Vimos que o sonho do Projeto Salitre, sonhado por muitos anos como a redenção do nosso povo, causou-nos decepção, indignação e que hoje somos mão de obra (muitas vezes sem garantia de direitos trabalhistas) ou arrendatários em nossa terra. Ao final da programação ficou claro que o problema do Salitre hoje não é apenas a água (para consumo humano, animal e para produção), mas o acesso à terra é também uma questão central que impede a qualidade de vida que as comunidades anseiam.

Apesar de tudo isso, nunca fugimos das lutas e nos organizamos de diversas formas. Para fortalecer nossa organização popular, neste evento apontamos problemas e proposições que devem contribuir com a melhoria do modo de vida e permanência das famílias nas comunidades:

Neste sentido, discutimos:

Situação do Rio Salitre

O rio não tem mais como armazenar a água da chuva, está totalmente assoreado e com grande desmatamento de suas margens. Hoje há um uso da água de forma desordenada, com grande desperdício e concentração por parte de quem possui uma maior quantidade de terra. A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) não cumpriu acordo para entrega de Kit’s para sistema de gotejamento e não tem nenhum programa de recuperação ambiental para o rio. O rio é vida, é o conjunto de mata ciliar e toda sua Área de Preservação Permanente (APP) recuperad, não só instalar uma adutora sem o devido cuidado. A implantação do Projeto Salitrão não contou com Estudo de Impacto de Vizinhança e hoje a região do Salitre tem suas terras erodidas com voçorocas provenientes das obras de implantação do projeto da Codevasf.

– É necessário a perenização total do rio, com a limpeza total de sua calha. O uso da água deve obedecer os preceitos da Lei Federal 9.433/97, atender os usos múltiplos e ter uma gestão compartilhada;

– Somos contra o Canal do Eixo Sul da Transposição, uma vez que este como está previsto só irá beneficiar a agricultura industrial, enquanto o Salitre há anos luta pela água para produção familiar. Já água do Rio São Francisco para a sub-bacia do Salitre, não é transposição, pois somos da mesma Bacia;

Modelo de Produção

O modelo de produção atual não garante a permanência das famílias nas comunidades, é insustentável, há um uso inadequado da água e solo. O uso abusivo de veneno tem contribuído para o aumento de doenças como câncer e outras. Permanece o processo de migração, principalmente de jovens. Ao contrário das promessas de geração de emprego, o aumento de uso de máquinas no Perímetro Irrigado tem gerado a falta de empregos na agricultura.

– É preciso discutir o Projeto Salitrinho apresentado pela Codevasf, pois trata-se de um Projeto Hídrico, não contempla a questão do acesso à terra. Além disso, é voltado para as comunidades situadas até o Junco, as quais hoje já usufruem da água do Rio São Francisco colocada no Rio Salitre através das adutoras I e II;

– Não podemos deixar acontecer com o Projeto Salitrinho como aconteceu com as chamadas Barragens sucessivas que 30 anos depois percebeu-se que não foi a medida mais adequada para o Vale do Salitre, ao contrário, contribuiu significativamente com a destruição do Rio Salitre;

– Não se pode mais pensar a economia do Salitre apenas a partir da irrigação. Para tanto, exigimos que seja feito um estudo da viabilidade de todas as áreas (criação de animais, beneficiamento de produtos, artesanato, turismo rural, etc), considerando a sustentabilidade sócio- ambiental;

– As famílias agricultoras precisam ser incentivadas a produzirem alimentos que possam ser vendidos para Programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar);

Acesso à Terra e Preservação da Caatinga

É histórica no Semiárido a grilagem de terras ou venda das mesmas a preços muito baixos para fins de exploração do agronegócio. No Salitre não é diferente. Boa parte das famílias hoje não possuem terra se quer para construir uma cisterna, são comodatárias.

– As pesquisas acerca da extração de minérios e instalação de parque eólico na região da Serra do Mulato, com 39.555 ha, situada na Eco região da Depressão Sertaneja Meridional, pertencente a Categoria, Reserva Ecológica e Arqueológica, tipo, Proteção Integral de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Juazeiro, através do Decreto nº 012 de 02 de janeiro de 1997, representa uma ameaça às famílias que moram afastada do Vale, bem como às matas, aos solos e lençóis freáticos e ao próprio leito e nascentes do Rio Salitre.

– A empresa Agrovale, com o aval da Codevasf e do Ibama e financiamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), começou a derrubar cerca de 2 mil hectares (numa primeira etapa) de Caatinga para plantar cana-de-açúcar no Perímetro Irrigado Salitre.

– Exigimos rigor na aplicação das leis ambientais. Grandes empresas vem destruindo a flora e a fauna da região, desrespeitando a justiça, e nada é feito pelos poderes competentes que fingem não ver.

Abastecimento de água potável

Atualmente a população conta com o abastecimento feito pelos carros pipas, inclusive pegando água nos canais de irrigação, cujo tratamento é feito por pastilhas. O Programa Água Para Todos, inaugurado há 01 ano, antes das fases de teste, apresenta irregularidade no fornecimento e má qualidade da água que chega apenas em algumas comunidades, em alguns dias da semana.

– A Codevasf e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto – Saae precisam corrigir as falhas que impedem o pleno funcionamento do sistema o mais rápido possível, deixando a população esclarecida;

– Após a regularização do Água para Todos, exigimos a imediata suspensão dos carros pipas nas comunidades beneficiadas com o Programa;

– É necessário estender a discussão sobre abastecimento da água para todo o município e propor a elaboração do Plano Municipal da Água.

Educação

A discussão acerca da educação contextualizada tem crescido no município de Juazeiro, muitas escolas e iniciativas particulares de professores/as tem contribuído com o conhecimento acercada história e realidade local. Há uma boa relação entre a escola e a comunidade, mas é preciso vivenciar ainda mais os problemas da comunidade, inclusive entendendo a importância da educação escolar no engajamento da juventude na organização popular:

– Solicitamos ações por parte da Direc 15 com relação a falta professores do estado. Há escolas que chega a reunir mais de duas turmas (mesma série) para suprir a falta de professor/a;

– Pedimos que seja revista a entrega da merenda nas escolas, pois tem sido constante a falta desta devido a pouca quantidade que é entregue nas escolas pela Secretaria de Educação;

– Necessidade de educadores/as para acolher estudantes com necessidades especiais. Hoje há acompanhamento de forma itinerante;

– Destacamos a importância das escolas terem transportes próprios na escola e não o mesmo veículo servir a duas ou mais escolas.

Organização Popular

Para seguir em luta pela concretização dos diversos apontamentos feitos é preciso fortalecer a organização comunitária popular:

– Compreender o Salitre dentro de um contexto político e social, com problemas que estão em toda parte e que precisam ser discutidos pelo conjunto da sociedade, a exemplo da privatização das terras e das águas que é um problema do Nordeste e do Brasil e de várias partes do mundo;

– É preciso buscar um objetivo comum, fortalecer as associações, realizar mais reuniões e eventos conjuntos, mobilizações;

– Criar um Conselho Popular com caráter consultivo e deliberativo sobre as questões que tenham a ver com a vida do povo e do meio ambiente na região do Salitre;

– Lutar para que as políticas públicas de fato cheguem às comunidades;

– Envolver a juventude através da arte, novas tecnologias, calendário de eventos, bibliotecas, novos espaços de lazer.  As escolas tem papel estratégico nisto.

Saúde

A saúde precisa ser garantida a partir de diversos aspectos tais como: consumo de água tratada, alimentação saudável, saneamento básico, dentre outros. Os programas de Saúde do município precisam considerar a importância da saúde preventiva, uma forma de garantir melhor qualidade de vida das pessoas e minimizar os custos com a saúde pública:

– Não se pode mais admitir a falta materiais básicos (até mesmo para curativos) nas Unidades de Saúde;

– Necessidade de atendimento médico e odontológico com maior frequência em todos os postos;

– Exigimos o retorno de uma ambulância do SAMU exclusiva para o distrito de Junco;

Infraestrutura

A região do Salitre é carente de uma série de serviços básicos que tem relação com a saúde, educação, economia, etc. A má qualidade das estradas, por exemplo, atrapalha o funcionamento das escolas, transporte de pessoas, tráfego de ambulâncias e escoamento da produção:

– É necessário pensar em alternativas de coleta e destino do esgoto, pois assim que o sistema Água para Todos for regularizado e ampliado, as comunidades irão vivenciar problemas sérios com relação a este aspecto;

– Com o prazo final para agosto de 2014 estabelecido pela Lei 11.445/2007 (universalização do saneamento básico), a coleta de lixo feita pela prefeitura dever se estender as demais comunidades, como estabelece o PNSB – Plano Nacional de Saneamento Básico, pois hoje se limita a um número pequeno, o que leva os moradores a queimarem em locais inapropriados ou deixar a céu aberto;

– Exigimos celeridade na execução do Projeto de asfaltamento de Sabiá até Capim de Raiz (com recursos aprovados) e destinação de recursos para novos trechos;

– Pedimos urgência na recuperação das estradas vicinais, especialmente de pontos centrais que impedem o tráfego no período das chuvas, considerando a necessidade de cascalhamento, colocação de manilhas, pontes, etc.

– A comunidade de Curral Novo e adjacências sofre hoje com a ameaça de uma das maiores problemáticas de um perímetro de irrigação, o “dreno central ou principal” que recebe todo excedente de água natural que foi espalhada na área e retorna pelo “dreno” a água natural acrescida dos agrotóxicos introduzidos. Assim, toda família que estiver com suas moradias próximas ao “dreno” será afetada e deverá ser removida por questões de prevenções de saúde. Como também a água do “dreno” deverá ser monitorada porque será lançada a montante da captação que abastece várias comunidades e a cidade de Juazeiro.

Salitre, 16 de março de 2014

Participaram da construção deste documento:

União das Associações do Vale do Salitre – UAVS
Associação de Alfavaca
Associação de Baraúna e Angico
Associação de Recanto, Bebida e Santa Terezinha
Associação de Junco
Associação de Manga
Associação de Goiabeira
Associação de Gangorra II
Associação de Sobradinho
Associação de Passagem do Sargento
Associação de Boa Vista
Associação de Curral Novo
Associação de Campo dos Cavalos
Comunidade de Tapera
Comunidade de Mulungu
Comunidade de Arame
Comunidade de Gangorra I
Comunidade de Deusdará
Escola Edualdina Damásio (Campo dos Cavalos)
Escola João Dias Ferreira (Alfavaca)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – Irpaa
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Núcleo de Leitura D. José Rodrigues
Articulação Popular São Francisco Vivo
Comitê em Defesa da Ilha do Fogo e do Rio São Francisco
Fórum de Comunicação Sertão do São Francisco
Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Salitre
Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
Câmara de Vereadoes de Juazeiro

*Gisele Ramos é estudante de Jornalismo da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) em Juazeiro, estagia na assessoria de comunicação do IRPAA e integra o Fórum de Comunicação Sertão do São Francisco.

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