E a Petrobrás apareceu, por Oiara Bonilla

Lago do Manissuã, Rio Tapauá (AM) - Terra Indígena Paumari. Foto de Oiara Bonilla
Lago do Manissuã, Rio Tapauá (AM) – Terra Indígena Paumari. Foto de Oiara Bonilla

“Bem diferente é o mundo no qual estamos penetrando hoje”.
Claude Lévi Strauss, 2011.

Oiara Bonilla, em Amazônia Real

Rio Tapauá, Bacia do Rio Purus, Amazonas. Num dia qualquer do último mês de fevereiro. P., índio Paumari, morador da uma bela casa flutuante na aldeia Manissuã – casa que ele ajudou o sogro a construir a duras penas, assim que se casou com M., sua filha mais nova. P. saiu para pescar no lago na sua embarcação, com arpão e tarrafa, à procura do alimento para família. Como todos os dias, saiu cedo, no raiar do dia, quebrou jejum com café doce e farinha, tirou a água da canoa, entrou nela em equilíbrio. Pegou no remo e saiu.

P. gosta do barulho do remo na água preta do lago.

Ele vai devagar, curtindo o som aquático, o ar fresco no rosto e o silêncio ruidoso da mata acordando. Quer atingir a margem direita, lá perto da boca do igarapezinho onde, na véspera, percebeu movimentos de peixes, boquinha da noite, quando foi mariscar para a janta.

Suspira e imagina como e onde construirá em breve seu próprio flutuante – no mesmo lago, mas distante da casa de seus sogros. Quando seu terceiro filho nascer, daqui uns meses, ele vai tentar comprar diesel para cerrar as tábuas da casa. Talvez ele precise arrumar algum serviço extra com os Jara (ribeirinhos), porque o dinheiro da venda do pirarucu do projeto de manejo ainda não será suficiente, e a bolsa família nem vai dar para comprar os pregos e o material do qual vai precisar.

P. chama os peixes. Mas estão demorando. Enquanto chama, seu pensamento vaga. Ah, terá também de avisar o arabani (xamã) pois vai derrubar uns paus para confeccionar as tábuas. [Os espíritos das árvores, assim como de todos os seres que povoam o mundo, podem não apreciar tais ações e revidar, capturando as almas humanas e carregando-as para seus domínios invisíveis, o que provoca, no mundo visível, doença e morte. O xamã paumari é o único diplomata que pode assegurar a comunicação entre todos os seres do cosmos e manter uma certa estabilidade dentro do intenso vai e vem de almas, corpos, e espíritos que é a dinâmica da vida humana].

Hesita, pensa que poderia resolver mais rápido se reconciliando na igreja, mas seus sogros não iriam gostar, sua mãe também não, M. menos ainda.

Melhor um ritual. Aí, P. chamaria os parentes lá de cima, lá do Cuniuá e do Tapauá, lá do Açaí, do Xila, da aldeia Terra Nova onde moram seu irmão, seus primos e tios. M. iria atrás de banana da terra para fazer o mingau. Quem sabe no final poderiam tocar um brega também? Ele sorriu, mas nada de peixe. Ouviu um motor, distante e potente. Estranhou, mas continuou sonhando.

Dançariam a noite inteira e as mulheres cantariam pros espíritos, nesse coro agudo e alegre, quase embriagante. Ele adora ouvir M. cantar. Sorriu de novo, mas o ronco ensurdecedor se fez mais presente. Ficou à espreita e viu uma sombra escura e barulhenta passando ao longe, na boca do lago, pelo Rio Tapauá. Várias sombras frias. Tumulto metálico, cheiro de diesel, gritaria de brancos. Desistiu.

Desse jeito, o peixe não vai aparecer mesmo.

***

Este breve relato retraça, do ponto de vista de um pescador paumari, a passagem pelo Rio Tapauá (AM) de balsas da empresa Petrobras, que acaba de iniciar atividade de prospecção de petróleo e gás na região sem consultar nem informar ninguém.

Há quinze dias, 15 a 18 balsas da Petrobras carregadas de equipamentos de prospecção mineral, tubulações e geradores de energia subiram o Rio Tapauá (AM) atravessando duas terras Paumari legalmente demarcadas e passando à proximidade de outras cinco terras indígenas dos povos Banawa, Suruwaha, Paumari e dos isolados Hi-Merimã. A notícia partiu de informações de indígenas paumari da Terra Indígena Manissuã, de ribeirinhos, de comerciantes, de membros de organizações locais e de funcionários da Fundação Nacional do Índio.

Nenhum dos povos indígenas da região teve acesso a qualquer processo de informação ou consulta. Impactos irreversíveis devem incidir sobre a vida e o ambiente de mais de 1300 pessoas que habitam nas Terras Indígenas Paumari do Manissuã, Paumari do Lago Paricá, Paumari do Cuniuá, Banawa, Suruwaha, Deni e dos isolados Hi Merimã. O total das terras indígenas da bacia alcança os 2.726.000 hectares. Esta região do interflúvio Purus-Juruá concentra ainda um dos maiores índices de biodiversidade da Amazônia.

A  Petrobras só confirmou a atividade de prospecção de petróleo e gás no final da semana passada ao Amazônia Real, após um jogo de desinformação que envolveu a Fundação Nacional do Índio, a Agência Nacional de Petróleo e o IPAAM (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), organismo que autorizou o empreendimento. É importante enfatizar aqui que nenhum tipo de consulta foi realizada junto aos Paumari e demais etnias da região. O Brasil, como signatário da Convenção 169 da OIT, deve proteger o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens, seus territórios e seus direitos originários.

Lamentavelmente este é mais um exemplo de empreitada desrespeitosa e destruidora levada a cabo por empresas nacionais e internacionais com incentivo, aval e cumplicidade dos governos estaduais e federais, em nome do desenvolvimentismo. Autoridades alegarão “distância X ou Y das terras indígenas”, “tecnologias que minimizarão impactos”, “avanços e melhorias” mirabolantes para os moradores da região (que esperam há séculos os serviços públicos decentes aos quais têm direito), compensações milionárias para os povos indígenas (ainda mais determinantemente nocivas e devastadoras), minimizarão impactos e financiarão projetos de preservação do que sobrar. Mas o fato é que o futuro dos habitantes da região, assim como o nosso, será bem diferente se não reagirmos agora, vigorosa e claramente, a essa e às demais violações dos direitos indígenas que viraram rotina no país.

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