Barbárie versus Direitos Humanos: que lado você escolhe?

brasil em raçasPor Eustáquio José, em Um Brasil de Verdade

Crescem no Brasil os casos de “justiça feita com as próprias mãos”. Agora, depois de declarações de ódio explícito e escancarado de pessoas contra os chamados “criminosos” (todos eles com um selo social bem determinado: pobres, de predominância negra e que ocupam favelas e comunidades carentes, pois os criminosos ricos jamais são alvo de justiceiros nesse país, daí se vê que há sim uma questão racial e social implicada) e essas “pessoas do bem”, como ajornalista Raquel Sherazade (que motivou o PSOL a representar contra o canal SBT por incentivo/apologia à tortura e ao linchamento) fez questão de salientar em seu comentário infeliz à frente de uma bancada de jornalismo no horário nobre, parecem não se incomodar mais com limites, com rédeas e se colocam acima da justiça.

Mais uma vez a sociedade hipocritamente distribuída acha-se no direito de questionando a Lei, o Direito (que não é perfeito, mas é a lei) usar de suas próprias mãos para poder abusar do ódio, do rancor, da violência desautorizada e julgar e condenar pessoas sem direito algum à defesa – que é um dos princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988 (em parte, versando sobre a constituição do júri no artigo 5º, inciso XXXVIII alínea a) ou qualquer garantir mínima (volte ao mesmo artigo 5º no inciso XXXVI e veja o compromisso da lei em não lesar quem quer que seja, mesmo aqueles que tiverem cometido delitos gravosos passíveis de condenação). Nem com tantas garantias legais, sem contar a os dois primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos quando esses dizem ser todas as pessoas livres iguais portadores de todos os direitos e de dignidade e detentoras do direito de gozar de liberdade e dignidade como o expresso no corpo da Declaração, ninguém parece se importar com isso e se acha no direito, de sua grande fonte ilibada de ação de cometer crimes piores do que os que eles julgam para controlar socialmente a sociedade. Caso mais novo desse tipo foi um ladrão (esse fato não será apagado pela ação, porém não justifica em nada a reação extremada e bárbara contra ele) que foi barbaramente torturado e queimado vivo (veja a reportagem aqui pelo site da Uol). 

Longe de mim querer justificar condutas criminosas, mas o que você acha de populares julgando, espancando, amarrando/imobilizando e tocando fogo num criminoso sem que nada seja dito ou que nada seja brecado nessa sociedade? O caso, mais uma vez, aconteceu no Rio de Janeiro, mas quantos casos estão acontecendo Brasil afora? Uma declaração irresponsável de uma jornalista provocou uma reação intolerável em cadeia que faz de nosso país um barril de pólvora que explodirá em selvageria a qualquer momento. Eu volto à mesma tecla: trata-se de não só linchamento público e crime de tortura explícito (coisa condenável em qualquer codificação mundial), mas é um caso de crime de ódio, isto é, de um crime motivado por questões sociais e, principalmente, raciais. São cometidos não apenas com um indivíduo, mas atentam contra a dignidade humana (princípio fundamental e de primeira dimensão em nossa codificação constitucional) e contra grupos específicos que engrossam a estatística de condenados antes mesmo de serem julgados, visto que, em que pese a grande diferença social e racial desse país, sobretudo acentuada nos últimos anos com a ascensão da nova classe média incomodando deveras a “antiga”, as vítimas têm sempre a mesma característica, de Amarildo a esse indivíduo do vídeo (primeiro link). Vale dizer que a lei n 7.716 de 5 de janeiro de 1989 que devem ser punidos os crimes resultantes de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Some-se a isso as penalidades já previstas em lei pelo Código Penal brasileiro. Além dessa lei, há, também, alei n 9.455 de 7 de abril de 1997 que fala sobre o crime de tortura. 

A lei n 9 455/1997 já foi uma tentativa tardia para poder enquadrar dentro do ordenamento jurídico brasileiro um crime que já foi cometido no Brasil de diversas formas em diversas épocas históricas desse país. Desde a Colonização até a Ditadura Civil-Militar e culminando nos dias de hoje com esses casos bárbaros. Anos de escravidão e anos de desigualdade social ainda refletem na hora de se buscar justiça com as próprias mãos. Crimes não se justificam, contudo não pedem outros crimes para repará-los. O fato de se linchar um cidadão e queimá-lo vivo não fará com que o produto de seu crime seja restaurado só dará a sensação de que retrocedemos aos tempos, anteriores ao humanitarismo do século XVIII, nos quais a vingança era a pedra de toque das relações sociais. Uma terra selvagem, sem lei, sem norma, sem regulamento, na qual a força desproporcional regula tudo e faz com que nos percamos nessa condição de racionalidade, de espécie privilegiada e superior. Será que o somos mesmo?

Há quem ainda dê de ombros para os Direitos Humanos. Há quem diga, erroneamente, que os Direitos Humanos só aparecem quando um criminoso é condenado para evitar que seja maltratado nas prisões. Há quem acuse os defensores dos direitos humanos de passar a mão na cabeça de delinquentes e desamparar as vítimas deixando-as em condições de dor e sofrimento. Vale uma ressalva grande aqui. Direitos Humanos não se resumem às organizações de direitos humanos. Direitos Humanos são um tipo específico de Direito no qual os direitos universais de garantias fundamentais tem papel principal e sob o qual não são permitidos nenhum tipo de desrespeito ou ameaça a esses princípios. Uma boa definição de Direitos Humanos, com seus prós e contras, pode ser extraída do grande jurista italiano Norberto Bobbio. Nela se vê claramente que a metonímia que as pessoas acusam, ora por ignorância, ora por leviandade, ser resumo dos Direitos Humanos deteriora algo que surgiu como tentativa de solução para os cada vez mais perniciosos crimes (leia-se duas grandes guerras, várias outras guerras, guerras civis, regimes de segregação racial, ditaduras e perseguições religiosas) e tentar fazer com que os países não entrem de novo na guerra de todos contra todos que tanto aludia Hobbes.

Um braço dos Direitos Humanos é visto sim no tratamento aos presos (no Brasil a metade nem está legalmente condenada, mas aguardando julgamento ao lado de criminosos já cumprindo suas sanções) em infernos precários nos quais seu crime se multiplica pelos maus tratos sofridos. Exemplo disso é um estudo encomendado pela BBC Brasil no qual vários juristas, operadores do direito, ativistas fizeram e apontaram os piores presídios e o que ocorre por lá. O complexo prisional de Pedrinhas (Maranhão) é só a ponta do iceberg. Nós somos o segundo país no mundo que mais pune e condena pessoas. Nós a amontoamos em pequenas selas e a jogamos em todo o descaso e violência possíveis. Encubamos o perigo. E olha que nem cito efetivamente os manicômios judiciais onde há prisão perpétua e pena de morte por olvide, por maus tratos, por tortura.

Cumpre fazer uma pergunta: é preciso mais para se dizer que os direitos humanos são infinitamente preferíveis a um estado de barbárie? O que ainda está obliterado nessa questão?

Não é admissível que se defenda criminosos. Não se fala nisso. O que é igualmente ou pior é defender o crime bárbaro incentivado por programas de televisão, discursos de ódio e violência de uma sociedade grotesca e pouquíssimo civilizada como é a brasileira. Sociedade hipócrita que se diz baseada em valores religiosos (nem citarei religião específica para não me fazer desentender) e morais e que não perde a oportunidade de cometer ilícitos e danos maiores do que os que imputa às vítimas. Como explicar amarrar, espancar e queimar vivo um cidadão que cometeu um roubo? Nem o princípio de Talião foi seguido, mas algo bem mais primitivo e anterior a esse princípio. Não há espécie alguma de proporcionalidade e curiosa também é a nossa mania de transformar as coisas em prol das vítimas, mas não temos competência para cometer crimes sob a desculpa de o Estado não punir, através de seu braço competente a polícia. Não temos que nos desculpar para cometer um ilícito no erro de outrem. Cabe uma reflexão séria e uma constituição notadamente correta da realidade ou iremos mergulhar no mundo pernicioso e perverso da realidade brutal que estamos criando. A escolha que faço é claríssima: sempre em prol dos Direitos Humanos. É preferível ser conhecido pejorativamente como defensor de marginais do que me tornar um criminoso contumaz em nome da justiça, seja lá o que se queira dizer com essa palavra.

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