Movimentos sociais brasileiros espionados

Empresas privadas do Brasil, de setores estratégicos como mineração ou infraestrutura, espionam e se infiltram nos movimentos sociais e em suas atividades, segundo uma missão da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), que foi concluída no dia 14. Há quase um ano, no dia 24 de janeiro de 2013, durante reunião de planejamento dos líderes do Movimento Xingu Vivo para Sempre, em Altamira, norte do Estado do Pará, suspeitou-se que uma pessoa registrava as conversações e decisões do encontro

Fabíola Ortiz – IPS

Esse coletivo, que reúne organizações sociais e ambientais de áreas próximas ao projeto da megacentral hidrelétrica de Belo Monte, a terceira do mundo quando entrar em operação, se opõe à instalação da represa no rio Xingu, na Amazônia brasileira. As suspeitas se confirmaram quando se verificou que um dos participantes, recém-chegado ao movimento, tinha nas mãos uma caneta esferográfica espiã.

“Todas as vezes que alguém intervinha, ele dirigia a caneta para onde estava a pessoa. Foi algo completamente inesperado”, contou à IPS a advogada Roberta Amanajás, da Sociedade Paraense de Direitos Humanos, que integra o Movimento. “Essa reunião foi um momento muito estratégico, em que trocamos informações privilegiadas, que só as organizações do coletivo possuem. Ele era um espião contratado pelo consórcio que constrói a obra”, explicou.

Descoberto, o espião se identificou como Antônio e confessou ter se infiltrado no Movimento para vigiar as atividades de sua coordenadora, Antônia Melo. Segundo a advogada, o espião contou que enviaria o material para a divisão de inteligência do Consórcio Construtor Belo Monte e para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que mantém um agente em Altamira. “Ele contou que tinha de seguir todos os passos da coordenadora para o Consórcio e que também foi responsável pela demissão de 80 trabalhadores da obra”, afirmou Amanajás.

Outra função do infiltrado era detectar líderes sindicais que pudessem organizar greves na obra, acrescentou. “Não temos dúvidas sobre o processo de espionagem, só não sabemos como acontece. O Movimento Xingu Vivo é o que mais representa a resistência ao modelo de construção das hidrelétricas, e mais, ao desenvolvimento que se impõe na Amazônia”, afirmou a advogada. O Movimento critica a expropriação dos recursos naturais, que não garante os direitos dos povos naturais da região.

A espionagem das organizações sociais da Amazônia não é um caso isolado do Brasil, denunciaram os ativistas da missão da FIDH, que entre 9 e 14 deste mês se encontrou com membros de organizações humanitárias, do Ministério Público, e diretores de empresas acusadas de espionar. A missão internacional integra as atividades do Observatório para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos, um programa conjunto com a Organização Mundial Contra a Tortura, e esteve em Brasília, Belém e Rio de Janeiro.

“O que nos preocupa é a relação entre os órgãos públicos e as empresas. Há provas de articulação com agentes do Estado”, afirmou Jimena Reyes, chefe da FIDH para a América, ao apresentar as primeiras conclusões da visita. “É uma situação muito preocupante. São utilizados esquemas públicos para atuações ilegais e ilegítimas, para espionar movimentos sociais”, ressaltou.

A conivência dos funcionários públicos com as empresas foi comprovada pela missão, ao constatar que há companhias que têm acesso a dados secretos do governo, por meio do Infoseg, uma rede que aglutina a informação de segurança pública obtida por mais de 400 agências brasileiras de investigação. Alexandre Faro, integrante do Observatório, disse que, pelo fato de terem destinado grandes recursos, as empresas têm muito interesse em saber o que as organizações sociais farão em relação aos seus projetos.

“Penso que é uma cultura que as companhias têm há muito tempo. Descobrimos no ano passado, não temos provas, mas suponho que são práticas generalizadas em setores sensíveis como mineração e energia”, opinou Faro à IPSsobre a atividade de espionagem dos grupos empresariais contra ativistas na América Latina. As acusações de espionagem também recaem sobre a empresa Vale, gigante da mineração.

Membros da Justiça nos Trilhos, uma organização que defende as comunidades prejudicadas por projetos mineradores, contaram que são espionados desde 2008, pouco depois de iniciarem seu trabalho. Os delegados da FIDH conversaram com um ex-empregado da Vale, identificado como André Almeida, que forneceu dados sobre as relações da empresa com o governo, durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado, no dia 24 de outubro do ano passado.

Entre as acusações, destacaram espionagem de jornalistas, funcionários públicos e líderes sindicais, além da infiltração de espiões nas organizações sociais e nos sindicatos, para obter informação privilegiada. Essas atividades ilegais tiveram a participação ou o apoio de agentes da Abin para atividades de treinamento, incluindo pagamento a agentes do Estado. Segundo essas revelações, estima-se que a Vale destinou cerca de US$ 200 mil mensais à espionagem, informou Faro.

“O que está em jogo no Brasil é o valor da democracia, trata-se de privilegiar a inteligência”, disse o integrante da missão internacional. “O que não é comum é informações assim chegarem ao conhecimento do público. Revela que estão completamente desinibidos a respeito de tudo que fazem de ilegal”, acrescentou Faro. A seu ver, “as empresas privadas acreditam que têm suficiente legitimidade para invadir a vida das pessoas e investigar seus filhos, seus maridos e seus antecedentes”, enfatizou.

Danilo Chammas, advogado da Justiça nos Trilhos, afirmou à IPS que o primeiro indício de que eram espionados obtiveram já em 2008. Em janeiro de 2012, seu escritório foi destruído e, em outubro do mesmo ano e em janeiro de 2013, sua página na internet foi invadida. “Esperamos que a missão da FIDH impulsione mudanças profundas e que as investigações ganhem maior ritmo e as próprias empresas modifiquem suas práticas. O objetivo de tudo isso é que desistamos de agir”, destacou.

Os delegados da FIDH apresentarão o informe com suas conclusões, informações e recomendações, no prazo de dois meses. Amanajás recordou que a visita da missão que protege os defensores dos direitos humanos ocorre após a polêmica generalizada gerada ao se ficar sabendo que o governo brasileiro foi espionado pela Agência Nacional de Segurança (NSA), dos Estados Unidos. “Como o governo não gosta de ser espionado, os movimentos sociais também não gostam”, criticou.

Sobre as perguntas da IPS, a Vale informou que não se pronunciará sobre um caso que está na justiça e sob segredo processual, enquanto o consórcio de Belo Monte não deu respostas.

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