A luta antirracista: da perspectiva institucional para a disputa ideológica

Fato ocorreu num sábado, às 15h, na Rua Bárbara de Alencar, centro comercial do Crato, como mostrou a jornalista Raquel Paris, em seu blog (Foto Correio do Brasil)
Fato ocorreu num sábado, às 15h, na Rua Bárbara de Alencar, centro comercial do Crato, como mostrou a jornalista Raquel Paris, em seu blog (Foto Correio do Brasil)

Racismo é uma ideologia que legitima desigualdades sociais – à medida que tais desigualdades vão sendo reduzidas (ainda que em pequena escala), ela vai entrando em colapso e busca se manifestar por atos explicitamente violentos

Por Dennis de Oliveira*, Revista Fórum

Os avanços institucionais no campo da luta contra o racismo nos últimos doze anos são inegáveis. Foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial que, apesar dos seus limites, é o primeiro marco legal para construção de políticas de Estado de combate ao racismo; as cotas raciais nas universidades federais foram implantadas; avança-se na implantação de cotas nos concursos públicos; foi promulgada a lei 10.639/03 que institui o ensino de História da África e Cultura afro-brasileira nos currículos do ensino básico; foi instituída a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), com status de ministério, que vem fomentando a constituição de políticas transversais de combate ao racismo em várias áreas, como na saúde e educação.

Esta nova situação criou uma nova demanda para as lideranças do movimento antirracista: a discussão, de forma propositiva, de políticas públicas. Este novo cenário é uma conquista do movimento e é fruto de um governo mais alinhado aos setores populares. Querer dizer que nada mudou entre o governo tucano, em que vigorou o neoliberalismo e as políticas de combate ao racismo entravam, no limite, como “políticas compensatórias”, é miopia política. O espaço que se tem hoje para discutir o tema “combate ao racismo” é muito mais amplo, permitindo, inclusive, fazer críticas em um patamar mais avançado às ações do governo.

Tudo isto significa que estamos às mil maravilhas? Como diria o saudoso educador Paulo Freire, ser pacientemente impacientes. Há uma questão vital que deve ser refletida pelos militantes do movimento antirracista. A abertura de espaços institucionais para esta discussão acabou por absorver de tal forma parte significativa das lideranças que se deixou um flanco aberto na sociedade civil – onde justamente se dissemina, por diversos meios, a ideologia do racismo.

Dois episódios ilustram isto. O primeiro: no dia 6 de fevereiro de 2013, às 15h, na Rua Bárbara de Alencar, centro comercial do Crato, Francisco do Nascimento foi amarrado por dois homens a um poste e assim permaneceu durante duas horas. O motivo: em surto, teria quebrado vidraças de lojas. O segundo: um menino foi amarrado e preso nu em um poste na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, depois de ser espancado. Motivo: ele seria autor de furtos no bairro. O que é comum nos dois casos: são pessoas negras. Outra coisa comum: as justificativas expressas por várias pessoas nas redes sociais e até por uma “jornalista” (sic!) do SBT dizendo que os cidadãos “de bem” estão “fartos” deste “caos social”, deste “desgoverno” que virou o país e decidem, assim, fazer “justiça com as próprias mãos”.

Mas o que é este “caos”? Talvez o fato de que a diferença salarial entre brancos e negros tenha reduzido (a média salarial dos trabalhadores negros era 48,3% dos brancos em 2003 e chegou a 57,1% em 2013). Ou porque a participação de negros e negras no ensino superior passou de 4% em 1997 para 19,8% em 2011. E que a temática racial vem sendo discutida em diversas áreas das políticas públicas. Domésticas agora têm direitos trabalhistas como qualquer outro trabalhador. Note-se que as diferenças raciais continuam gritantes. Mas o fato de a senzala começar a chegar perto da Casa Grande vai destruindo qualquer vestígio de “cordialidade” brasileira. Claro, jovem negro quer ir à universidade, trabalhar, ir ao shopping…

Pesquisa recente do Instituto DataPopular dá algumas pistas para entender esta situação: 55% da elite acha que deveria ser obrigatória a existência de produtos com versões diferentes para ricos e para pobres; 50% das pessoas das classes A e B afirmam frequentar apenas ambientes com pessoas de sua nível social delas; 17% dizem que pessoas mal-vestidas deveriam ser barradas ao tentarem entrar em certos lugares; 26% afirmam que o metrô “aumenta a circulação de pessoas indesejáveis nas suas proximidades”.

Em outras palavras, a sensação de “caos” que se fala tem muito a ver com o incômodo que determinados segmentos sentem em ter que dividir espaços com outras pessoas que eram toleradas apenas como “serviçais”. Caos no trânsito é também incômodo por conta de faixas exclusivas para ônibus, caos na educação é por conta de pessoas das mais variadas classes sociais estarem também nas escolas; caos na saúde é ter que dividir filas também com pessoas destas classes; caos nos aeroportos, idem. E a sensação de insegurança é porque “tipos suspeitos” (meninos negros, meninas negras, funkeiros, rappers, etc) passeiam no shopping e frequentam as mesmas lojas que a tal “zelite”.

Racismo é uma ideologia que legitima desigualdades sociais – à medida que tais desigualdades vão sendo reduzidas (ainda que em pequena escala), tal ideologia vai entrando em colapso e busca se manifestar por atos explicitamente violentos. E é justamente isto que estamos observando. Daí a necessidade do movimento antirracista procurar focar também a sua atuação no combate ideológico ao racismo na sociedade civil, o que implica não restringir a ação política apenas no âmbito institucional (ou, como no conceito de Gramsci, na “sociedade política”). O dado apresentado pelo professor Márcio Pocchmann, da Fundação Perseu Abramo, de que a grande massa de novos incluídos não tem participado das organizações do movimento social (entidades estudantis, sindicatos, associações de moradores) é um indicador que pode sinalizar para uma situação perigosa: a constituição de uma sociedade civil com relações apenas pragmáticas com as instituições da sociedade política, mantendo perspectivas ideológicas conservadoras (como o racismo, o machismo, a homofobia, entre outros) que podem travar eventuais avanços que se conquiste no plano institucional.

Na próxima coluna, continuaremos a tratar do assunto.

* Professor da Universidade de São Paulo no curso de Jornalismo (graduação), Direitos Humanos (pós-graduação) e Mudança Social e Participação Política (pós-graduação). Membro do NEINB (Núcleo de Apoio à Pesquisa e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro). E-mail: [email protected]

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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