O que é um país desorganizado: o vaivém de um crime, de uma morte, de um fato

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Eustáquio José – Um Brasil de Verdade

O cinegrafista Santiago da TV Bandeirantes morreu após ser atingido por um rojão no Rio de Janeiro. Eis o fato. Na frieza da narrativa do fato está implícita uma história cheias de vaivéns, cheia de histórias mal contadas e de artimanhas político-sociais das mais intricadas que fariam dessa história, por si só, um marco daquilo que vivemos hoje em dia no Brasil: de um lado a necessidade de se manifestar e de se enfrentar o poder cada vez maior do bloco Estado-Mídia e do outro lado os arcabouços do poder e toda a sua infinidade de calhordices sociais. Depois de feita essa pequena introdução aos fatos vamos a eles, porque nada melhor do que ver quantos lados têm uma mesma notícia, uma mesma ocorrência, uma mesma situação nesse mundo hipercomplexo que vivemos. 

Em primeiro lugar o crime: alguém soltou um rojão para frente e esse rojão atingiu em cheio o cinegrafista que estava de costas. Já per se nós temos aí um problema: que tipo de crime aconteceu? A resposta é dura. O cinegrafista foi vítima de um homicídio. E por quê? Um artefato jogado em sua direção e a pouca distância do mesmo, artefato esse que é confeccionado para ser atirado para cima e com outra finalidade. Tal artefato foi o mesmo que matou o menino boliviano Kevin Espada em um jogo entre Corinthians e San Jose em Oruro na Bolívia. Alguém que solte um rojão do chão não tem por intenção indireta assustar, mas sim atingir alguém e corre esse risco em fazê-lo num lugar movimentado numa manifestação. Poderá até não ter tido uma intenção direta de ferir alguém, contudo como se defenderá do fato que o instrumento usado causa dano sério quando atirado nessa direção? Logo, é fácil concluir e até simples que houve um homicídio inclusive passível de ser caracterizado como dolo eventual, isto é, quando a consciência pode prever o resultado, mas não se quer o crime, mesmo que se assuma o risco (confira aqui no site jusbrasil). Ao soltar o artefato é preciso saber que se assume o risco de atingir alguém, mesmo não se tendo esse alguém como alvo. Mas é certo que havia um alvo. Quem seria? A polícia, enquanto aparelho de cumprir ordens repressoras do estado? Não se pode precisar com exatidão, apesar de os indícios serem bem completos nesse sentido. A polícia tem-se tornado a adversária número um não só de manifestantes, mas de toda a sociedade, em especial da parcela da sociedade que é mais carente e em sua grande maioria negra, mas aí temos um assunto para um próximo texto.

Sigamos a nossa linha de raciocínio dentro de outro ponto: a cobertura da mídia sobre o fato. Desde o começo há uma tentativa da imprensa de rumar em duas frentes. Em primeiro lugar culpar os chamados Black Bloc pela morte do cinegrafista, na velha mania de a imprensa encontrar culpados diretos e ainda ajudar a manter a ordem, o status quo.Um dos suspeitos, agora indiciados, presos e que depuseram parece ter ligação direta com o movimento, porém o acusado de soltar o rojão não parece nem ser infiltrado da polícia e, tampouco, alguém que pertença ao grupo de orientação anarquista. Por que querem fazer tal relação? Porque se encontraria solução para o risco diante da Copa do Mundo que ocorrerá em junho, inclusive no Rio de Janeiro e os bandidos seriam justamente os manifestantes. A violência do grupo, que é reconhecida por eles mesmos, termina ajudando a construção desse tipo de ambientação da mídia. O grupo trabalhar com técnicas de guerrilha urbana não significa que escolham alvos civis para tanto, porém também não significa que lamentem a morte de um cidadão inocente e que estava trabalhando como uma “perda necessária” na grande guerra contra o Estado – feita a partir da polícia e da imprensa. A morte do cinegrafista Santiago não é número ou estatística de guerra, mas número de confronto violento. Mas tal afirmação não coloca o BB (sigla para Black Bloc) como os culpados pela ação e os responsáveis por ela. Foi dito, inclusive, que jovens eram aliciados e treinados para poderem cumprir tais tarefas. A ação foi coordenada e se destaca numa aparente confusão causada. A culpa do movimento é indefinida e, ainda pior, pode ser prejudicial a todos. Um movimento culpado pode engessar outros movimentos e ainda tornar possível a lei anti-terror o PL 499/2013 (conferir discussão aqui), como é apelidada, de entrar em cena, o que seria horrível para qualquer país que se diga democrático. Essa não-democracia ameaça fortemente a discussão e a própria consideração de um país que vive os cinquenta anos de uma terrível e tenebrosa ditadura civil-militar (conferir aqui o que a lei promete desestimular de protestos e pode aquietar um país em um estado perigoso de ebulição).

O outro grande problema é a motivação política que se tem por detrás dessa fatalidade. Sim, há interesses políticos sérios por detrás disso – e a polícia necessariamente é um campo bem distinto do que seria uma moralidade ou uma eticidade aceitável – e um deles é culpar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) de co-autoria ou de fornecer algum tipo de ajuda ao ativista (ou suposto ativista) participante e co-autor da ação que resultou na morte do cinegrafista (confira link aqui). Essa participação é controversa justamente porque o deputado Freixo foi adversário político do prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (PMDB) e ainda seria opositor do governo municipal e estadual de Sérgio Cabral Filho (PMDB), ambos aliados do governo federal. Percebam que a política quer chamar atenção dessa culpa para, literalmente “tirar o cavalo da chuva” e desviar o foco ou mesmo desfocar o fato, aquele fato exposto lá em cima no começo do post. Fazendo isso pune protestos e protestantes e ainda atinge adversários políticos agradando a mídia que manipula a seu contento.

Outro ponto alto é a atuação do advogado de ambos os indiciados (caso inédito) e que teria permitido uma entrevista exclusiva com a sempre suspeita Rede Globo de Televisão na qual o acusado Caio assume a autoria do crime. Esse mesmo advogado usa de apelos emocionais, onda de declarações que provocam dúvidas e une uma espécie de sede pelo holofote com uma confusão mental diante da defesa dos réus. Há quem o acuse de trabalhar para culpar ainda mais aqueles que deveria defender, sabe-se lá com que interesse escuso o faz.

Assim, amigas e amigos, a história está longe de ter um fim. O que há até agora de concreto é que houve um fato, houve um crime e esse crime tem de ser objeto de um processo e como tal chegar a apontar culpados e inocentes. Se existem outros crimes ligados, outros interesses pretendidos, outros atores desconhecidos ainda do público é algo que não se pode ainda prever. O que há de certo é que nós estamos diante de uma salada de notícias e cada um que puxe para um lado e só com uma certeza: a violência (de todos os lados) atingiu níveis intragáveis.

O resto, só nas cenas dos próximos capítulos…

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Tato Silva.

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