Diversidade Cultural, esquecida da Justiça

Foto: Claudia Andujar: Índio e a bandeira na Constituinte
Foto: Claudia Andujar: Índio e a bandeira na Constituinte

Apesar das conquistas da Constituição e de convenções internacionais, decisões do Judiciário continuam desconhecendo caráter pluricultural e pluriétinico do Brasil

Por Ela Wiecko V. de Castilho, Outras Palavras

Falta aprofundamento sobre os direitos dos povos à sua identidade cultural. Aprofundamento teórico, como se observa pela extensa bibliografia sobre direitos civis, políticos, econômicos e sociais, e ausência de literatura sobre eles. Prático, quando se examina a implementação dos direitos humanos.

Cultura são “traços espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que distinguem e caracterizam uma sociedade ou um grupo social”, conjunto que abrange as artes e letras, mas também “os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os valores, as tradições e as crenças”- conforme definição da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) na Convenção Internacional sobre a Diversidade Cultural (2001).

A insuficiente delimitação do conteúdo dos direitos culturais deve-se certamente ao fato de a codificação dos direitos culturais não se encontrar sistematizada em um só tratado, mas dispersa em grande número de instrumentos, tanto universais como regionais. Mas a verdadeira razão seria o temor dos Estados a que o reconhecimento do direito às diferentes identidades culturais pudesse colocar em perigo as unidades nacionais – um temor que revela a força do fenômeno histórico da colonialidade.

A colonialidade é constituída num sistema eurocêntrico, embasado na inferiorização naturalizante de grupos humanos, lugares, saberes e subjetividades não ocidentais. Essa inferiorização se apoia na extração dos recursos e na exploração da força de trabalho em uma lógica de reprodução estendida do capital. A colonialidade sobreviveu ao colonialismo (situação de submissão de povos por meio de um aparelho administrativo e militar metropolitano) e continua se reproduzindo por meio de discursos e tecnologias do desenvolvimento e da globalidade. Ela abarca uma dimensão ontológica (colonialidade do ser) e uma dimensão epistêmica (colonialidade do saber) (1).

Globalmente articulada, foi ela o motivo da oposição a que se introduzissem os direitos culturais na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos( DUDH), durante a Conferência de São Francisco, em 1945. Tais direitos só vieram a ser reconhecidos em 1966, no art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (2).

Identidade cultural

A Unesco tem aprovado convenções, declarações e recomendações que desenvolvem o conteúdo dos direitos antes enunciados. A Convenção relativa à Luta contra as Discriminações da Esfera do Ensino, de 1960, por exemplo, diz no art. 5º que “deve ser reconhecido aos membros das minorias nacionais o direito ao exercício das atividades docentes, emprego e ensino do próprio idioma, sempre e quando: (i) esse direito não seja exercido de modo que impeça aos membros das minorias compreender a cultura e o idioma do conjunto da coletividade e fazer parte em suas atividades, nem que se comprometa a soberania nacional (ii…), (iii…)”.

Carta Africana, de 1981, introduz o conceito de identidade cultural como conjunto de características que distinguem um grupo social. Esse tema tem sido tratado junto com o das minorias nacionais e o dos povos indígenas e tribais. Em 2005, na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco, os aspectos culturais são reconhecidos como um dos motores fundamentais do desenvolvimento, tão importante quanto os aspectos econômicos. A “proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo”, afirma .

A identidade cultural – “conjunto de referências culturais por meio do qual uma pessoa ou um grupo se define, se manifesta e deseja ser reconhecido” (3)– não pode, contudo, ser restringida a grupos étnicos. Há grupos sociais que não se incluem na categoria de povos indígenas e tribais ou de minorias nacionais, mas que possuem forte identidade cultural, como é o caso de populações que vivem da atividade agrícola.

Constituição de 1988

A Constituição de 1988 rompe com uma história de quase 500 anos de negação da autonomia cultural dos povos indígenas e do direito à diferença étnica e reconhece o Brasil como um país pluriétnico e multicultural. Há cerca de 300 povos indígenas ou sociedades indígenas com identidade própria, diferentes entre si e da sociedade dominante. Há mais de 3000 comunidades quilombolas no Brasil.

O seu conceito de cultura abrange as manifestações das “culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, §1º). Isso significa que há grupos na sociedade brasileira que possuem modos diferentes de criar, fazer e viver. A Constituição não manda mais integrar todos numa única cultura, ao contrário, reconhece o direito à manutenção das diferenças étnicas e os direitos culturais dos indígenas, afrodescendentes e demais grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Contudo, nem sempre a proteção expressa da cultura popular na Constituição de 1988 tem sido adequadamente avaliada pelo poder público. Tem ficado invisível, por exemplo, nos estudos de impacto ambiental: pesquisa com onze estudos para empreendimentos do setor elétrico mostra como é ignorada a cultura de comunidades rurais. Poucos se preocuparam em revelar a dimensão coletiva da população atingida, ao contrário: seu discurso leva o leitor à percepção de um universo disperso, um aglomerado de famílias ou de estabelecimentos rurais avulsos; quando muito, fazem referência às relações de parentesco e vizinhança ou a redes de solidariedade.

Isso decorre de uma ideologia que associa as características típicas do universo rural tradicional ao ‘atraso’ ou ao ‘estagnado’, em contraste com o desenvolvimento, que encontra nos empreendimentos de geração de energia elétrica um de seus maiores ícones. Trata-se da colonialidade.

Reconhecimento dos direitos culturais

Os direitos culturais não são suficientemente reconhecidos no Brasil. Faltam normas que complementem o que consta na Constituição e nos instrumentos internacionais ratificados, assim como estruturas administrativas que assegurem a prática dos direitos pelos povos e grupos humanos culturalmente diversos. Leis que colidem frontalmente com o direito à diversidade cultural, como o Estatuto do Índio (Lei n. 6001, de 1967), continuam sendo aplicadas.

Notem alguns exemplos. Uma secretaria estadual de Educação e Cultura não autorizou o funcionamento de quatro escolas de aldeias indígenas em razão do reduzido número de alunos e formação inadequada dos professores. Contudo, os estados que avançaram no cumprimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas consideram o número de alunos por terra indígena, e não por aldeia. Isso é essencial para consolidar a educação escolar indígena intercultural, pautada na flexibilidade curricular e na organização comunitária, com o propósito de oferecer e produzir conhecimentos que possam reduzir as desigualdades sociais no diálogo com outras culturas e fortalecer os conhecimentos tradicionais.

Um juiz de Direito indeferiu o pedido de retificação de registro civil, feito por um procurador da República, para que fosse lavrado com os sinais indicativos de peculiaridades fonéticas da língua Yanomami. Invocou ausência de legitimidade do Ministério Público, por não se tratar de direito da coletividade, mas de direito personalíssimo. Ora, o uso da própria língua e de seus sinais gráficos característicos diz respeito à cultura do povo indígena, bem protegido constitucionalmente, e a defesa desse direito está expressamente atribuída ao Ministério Público Federal.

Outros direitos

Mas há ainda uma outra exigência que se impõe, advinda do Estado pluriétnico e multicultural. É o reconhecimento da existência de outros direitos, ou conjuntos de normas que regem uma organização social. Entra-se aqui no tema do pluralismo jurídico, de amplo tratamento na filosofia e teoria do direito no séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, e que, retomado em termos muito diferentes pela antropologia do direito, é uma das questões mais estudadas pela disciplina atualmente.

Conforme Boaventura de Souza Santos, o conhecimento multicultural – matéria-prima do pluralismo jurídico – é perpassado por duas dificuldades: o silêncio e a diferença. O direito estatal destruiu as formas de saber próprias dos povos que foram objeto do colonialismo ocidental. Como realizar o diálogo quando algumas culturas foram reduzidas ao silêncio, sem que o interlocutor fale a linguagem hegemônica que o pretende fazer falar? (4).

O ponto crucial desse déficit de reconhecimento é o embate contínuo entre visões de mundo e, no interior mesmo do campo dos direitos humanos, o confronto entre direito ao desenvolvimento e direito à identidade cultural. É emblemática a decisão do juiz federal de Altamira no caso Belo Monte, segundo a qual “deve prevalecer uma política desenvolvimentista/ integracionista no trato destas sociedades” (indígenas). A visão de direito ao desenvolvimento do referido juiz é restrita àquela da sociedade hegemônica, podendo ser imposta aos grupos subalternos, porque “os interesses indígenas não podem jamais soterrar o interesse público nacional”.

Superar o pensamento hegemônico (a colonialidade)

A insatisfação dos grupos étnicos ou culturais está crescendo. Não se conformam mais em ser invisíveis para a burocracia do Estado e para a sociedade, nem se contentam com a simples carta de direitos. Querem que sejam extraídas todas as consequências do reconhecimento étnico e cultural.

Assim, por exemplo, a demanda pela educação e saúde indígena diferenciada, por programas no rádio e na televisão em língua indígena, pelo registro civil dos nomes indígenas, pelo respeito às suas normas. Assim também a demanda pela titulação das terras ocupadas por comunidades tradicionais as mais diversas, não mais restritas a indígenas ou quilombolas.

Além da luta incessante dos povos e grupos que têm suas identidades étnicas e/ou culturais negadas, a ampliação do reconhecimento dos direitos culturais exige um conjunto de iniciativas do Estado brasileiro. Uma delas diz respeito ao ensino jurídico que, de modo geral, só estuda o direito estatal e propaga a ideia de que o costume é desimportante no Brasil. Por outro lado, prevalece a ótica do direito subjetivo individual sobre os direitos coletivos ou transindividuais – o que pode ser percebido na interpretação dada pelo Judiciário nas ações civis públicas.

O objeto de estudo jurídico continua sendo a norma e não a situação-problema, a demanda, e como aplicar a norma a essa situação. Não se proporciona a oportunidade de estudar a legislação indigenista e os direitos culturais, não se trabalha com o conceito de território étnico/cultural, com o direito à diferença e tantos outros conceitos desenvolvidos pelas ciências sociais. Não há pesquisa sobre normas estabelecidas ao lado e, às vezes, até contra o direito estatal.

Também o sistema de justiça não tem fornecido a adequada resposta às violações que lhe são levadas ao conhecimento. Apesar da Constituição de 1988 ter rompido com o paradigma assimilacionista, presente nas políticas indígenas desde o período colonial, a prática judiciária oferece respostas tímidas diante do novo modelo do constitucionalismo plural, pautado numa concepção da igualdade que incorpora a diferença.

“Subjacente a essas dificuldades [do ensino e prática jurídica] encontra-se uma controvérsia ainda mais ampla sobre uma concepção de direito e de justiça, sobre um modelo de ordem econômica e política e sobre um paradigma de relações sociais e de cultura”, ensina o jurista José Eduardo Faria (5). Para concretizar o Estado Democrático de Direito pluriétnico e multicultural é necessário reinterpretar as leis e construir uma nova sensibilidade jurídica, diante da interculturalidade e do lugar da diversidade no constitucionalismo.


1 Estudos sobre a colonialidade têm sido desenvolvidos por pensadores críticos ligados ao movimento indígena da Bolívia e do Equador e ao Fórum Social Mundial. Entre eles, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Sandro Mezzadra, Ramón Gosfroguel, Nelson Maldonado-Torres, Santiago Castro-Gomes e Catherine Walsh.

2 Todos os instrumentos internacionais indicados podem ser consultados no Minicódigo de Direitos Humanos, organizado por Eduardo C.B. Bittar e Guilherme de Assis Almeida, publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), em 2010, com distribuição gratuita.

3CHIRIBOGA, Oswaldo Ruiz. O direito à identidade cultural dos povos indígenas e das minorias nacionais: um olhar a partir do sistema interamericano. SUR: revista internacional de direitos humanos, ano 3, n. 5,2006, p.44 [ed. em português]..

4 SANTOS, Boaventura de Souza, 2000, p. 27.

5 FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, v. 21, p. 45, nov./1986.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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