Holocausto Brasileiro. Vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. Entrevista especial com Daniela Arbex

Foto: Luiz Alfredo/Museu da Loucura (1961)
Foto: Luiz Alfredo/Museu da Loucura (1961)

“Os funcionários alegavam não ter tido a dimensão da tragédia, que apenas seguiam a cartilha dos mais antigos. Eles também acabaram se desumanizando com o tempo”, reflete a jornalista

Por Andriolli Costa e Ricardo Machado – IHU On-Line

Durante o regime militar da Alemanha nazista, estima-se que cerca de 6 milhões de judeus perderam suas vidas nos campos de concentração. Ainda que um holocausto de tamanhas proporções jamais tenha se repetido na história desde então, a barbárie, a crueldade e a desumanização encontraram eco em vários lugares do mundo. No Brasil, uma das experiências mais emblemáticas é a do Hospital Colônia de Barbacena (MG), caso que se tornou conhecido pela alcunha de “holocausto brasileiro”.

Fundado em 1903, no interior de Minas Gerais, a história do Colônia ganhou espaço na mídia nos últimos anos a partir de uma série de reportagens publicadas no jornal Tribuna de Minas em 2012 e que deu origem ao livro Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil (São Paulo: Geração Editorial, 2013). Obrigados a andarem nus, a defecarem no chão em que dormiam e a enterrar seus próprios mortos, os internos eram enviados ao hospital literalmente para morrer. De acordo com a jornalista Daniela Arbex, autora da publicação, a vida dos internos do Colônia envolvia “um cotidiano de muita limitação, de frio, de fome, de maus tratos físicos e tortura psicológica”.

Os pacientes, que muitas vezes eram internados sem qualquer critério, eram os excluídos da sociedade. Pessoas indesejáveis, oponentes políticos, mendigos, prostitutas, homossexuais e, é claro, aqueles verdadeiramente doentes mentais, segregados da convivência diária para longe dos olhos da sociedade. “Pessoas que foram esquecidas pela sociedade, pela família, que eram ignoradas pelos próprios funcionários e pelos médicos, que testemunharam tudo e nada fizeram.”

Holocausto Brasileiro é o título escolhido por Daniela para registrar este período que, tal qual o Shoah, representou um crime não apenas contra aquelas pessoas, mas contra toda humanidade e que nunca deve ser esquecido. Em entrevista por telefone à IHU On-Line, ela relata detalhes da crueldade cometida contra os pacientes, que eram tratados por nomes de animais; destaca a venda de corpos e ossadas dos mortos sem consentimento das famílias e a visão dos funcionários do Colônia, que não conseguiam ter a dimensão de seus atos e alegavam apenas seguir a cartilha das práticas anteriormente aplicadas.

“Estas pessoas foram se desumanizando, foram deixando de ver, e aquilo foi incorporado na rotina delas. Isso nos leva a parar, olhar para trás e refletir sobre o quanto a indiferença provoca barbárie”, alerta a jornalista. “A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê. É essa indiferença que contribui para a existência de barbáries como a do Colônia”, finaliza.

Daniela Arbex é jornalista graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente é repórter especial do jornal Tribuna de Minas, veículo pelo qual foi vencedora por três vezes do Prêmio Esso de Jornalismo, além de diversos reconhecimentos nacionais e internacionais. Confira a entrevista.

303067_297286300291867_1337358510_nIHU On-Line – Desde que foi lançado, o Holocausto Brasileiro tem sido muito bem recebido, e conquistou vários prêmios e reconhecimentos. A reportagem que deu origem ao livro teve tanta repercussão assim? O que você acha que fez o livro ganhar tanto público quanto ganhou?

Daniela Arbex – A reportagem foi publicada em novembro de 2011 em uma série de sete matérias no jornal Tribuna de Minas (MG). Na época já houve uma repercussão muito grande, a receptividade das pessoas foi enorme, o que inclusive me surpreendeu bastante. O livro teve uma repercussão muito ampliada em relação à série do jornal, primeiro porque a Tribuna é um jornal pequeno, do interior, e que não tem tanta visibilidade, mas o livro alcançou o país inteiro. Essa é uma resposta para o livro ter tido um impacto ainda maior.

Mas eu acho especialmente que tanto o livro quanto a reportagem tocam o leitor porque é a primeira vez que as vítimas do Holocausto tiveram voz. Essa é uma história que sempre foi contada pelo olhar dos jornalistas, nunca pelo olhar dos sobreviventes.

Nunca houve a preocupação de ver como aquelas pessoas estavam, se havia alguém vivo, sabe? Então eu penso que o diferencial do livro é dar voz as vítimas. Fora que essa é uma história que toca em qualquer época, porque é uma história que fala não só das pessoas do Colônia, mas fala de todos nós. Fala do humano que existe em nós, do nível de maldade e horror a que nós podemos chegar, mas também da possibilidade de solidariedade. Ele mostra todas as contradições humanas, por isso eu acho que ele é tão forte. Por isso o livro teve tanta repercussão.

IHU On-Line – De onde veio a motivação para escrever a obra?

Daniela Arbex – O que me moveu a contar essa história foi exatamente não conhecê-la. Foi o fato de descobrir que a minha geração não sabia nada a respeito dela. Quando eu tive acesso, 50 anos depois, ao conjunto de imagens feitas no interior do hospital em 1961, fiquei completamente impactada. A minha geração tinha o direito de conhecer essa história, e quando eu comecei a contá-la percebi que o país desconhecia uma de suas piores tragédias. Isso é o que me mobilizou: a vontade de tornar conhecida essa história, para que todos pudessem conhecê-la, não só agora, mas também no futuro.

IHU On-Line – O que foi o Colônia? Como o livro Holocausto Brasileiro traz luz a esse escuro período da história do Brasil?

Daniela Arbex – O Colônia foi um hospital criado pelo Estado em 1903 para atender pessoas que tivessem doenças mentais. Eu acredito que ele tenha sido criado com boas intenções, com o propósito de tratamento mesmo, mas o Hospital teve sua finalidade desviada desde os seus primeiros anos. Nós conseguimos documentos de 1911-1914 que já revelam a existência de superlotação, e outros documentos que mostram a falta de critérios médicos para a internação de pessoas. Houve uma paciente de 23 anos, uma brasileira chamada Maria de Jesus, que foi internada porque tinha tristeza como sintoma. Então percebemos que a finalidade de tratamento não foi alcançada. Na verdade, o Colônia acabou se tornando um depósito de rejeitados, de excluídos, de pessoas que incomodavam outras com mais poder. Toda a sorte de indesejáveis teve o Colônia como destino.

IHU On-Line – É possível pensar em um perfil para os internos do Colônia?

Daniela Arbex – Com certeza. Mães solteiras, meninas que haviam perdido a virgindade antes do casamento, homossexuais, prostitutas, andarilhos, pessoas que tinham perdido documentos, todo o tipo de gente que teve a infelicidade de encontrar o Colônia no seu caminho.

IHU On-Line – Como era a vida desses internos?

Daniela Arbex – Na verdade era uma vida com muita ociosidade, com um cotidiano de muita limitação, de frio, de fome, de maus tratos físicos, de tortura psicológica. Pessoas que foram mandadas para lá exatamente para morrer. Que foram esquecidas pela sociedade, pela família, que eram ignoradas pelos próprios funcionários, pelos médicos que testemunharam tudo e nada fizeram… Era uma realidade que foi construída a partir da omissão de muita gente, e uma omissão que perdurou por muitos anos. Entre 1930 e 1980 o Colônia viveu o seu pior período, isto é, são 50 anos do período mais controverso dessa instituição e com o maior número de mortes.

IHU On-Line – O que era feito com os corpos dessas pessoas?

Daniela Arbex – Na verdade os corpos foram vendidos. Entre 1969 e 1980 foram vendidos 1.853 corpos para 17 faculdades de medicina do Brasil, e sem que as famílias tivessem autorizado. Então foi um comércio clandestino, um comércio fúnebre de corpos. E, quando essas faculdades ficaram abarrotadas de cadáveres, a ossada dessas pessoas, desses cadáveres, também começou a ser comercializada.

IHU On-Line – Qual a relação do regime político vigente à época com o tratamento dado aos pacientes? Os momentos finais do Colônia, em que ele esteve isolado da população, se deu durante o governo militar.

Daniela Arbex – Há uma relação forte, porque foi a época em que o hospital ficou o maior período blindado. Durante 18 anos nenhum repórter entrou no Colônia, então penso que há essa relação. Mas acredito também que não é só o momento político. A história do Colônia foi construída em cima da teoria eugenista de limpeza social, de se livrar de tudo que incomodava a sociedade. O Colônia foi uma forma de fazer isso acontecer, para que a sociedade pudesse ficar livre desse tipo de gente que incomodava tanto.

O que sustentou esse modelo foi exatamente essa cultura, que existe até hoje. Mesmo hoje em dia as pessoas continuam fingindo não ver, ignorando o sofrimento do outro. É só ver o caso dos grandes hospitais psiquiátricos, onde ainda há relatos de violação da dignidade humana. Esta é uma realidade que persiste mais de 100 anos depois.

IHU On-Line – Que importância a luta antimanicomial teve para dar fim ao holocausto brasileiro?

Daniela Arbex – A luta antimanicomial teve e tem seu lugar. Ela foi fundamental para se começar a pensar na extinção de um modelo que segregava mesmo, modelos que violavam a dignidade, que confiscavam a humanidade do indivíduo. Ela tem um valor incrível para a história e para a humanização dos modelos de atendimento.

Foi muito importante, no momento em que não se falava disso, que essas pessoas começassem a gritar e fizessem a sociedade discutir sobre uma realidade tão ignorada. Ignorada e cômoda também. Porque enquanto o hospício permanece cercado por muros, nós não precisamos saber o que está acontecendo ali.

Acredito que teve um valor incrível, agora há um longo caminho a ser percorrido, o desafio é imenso. Ainda não se venceu essa guerra e precisamos fazer com que os serviços essenciais, terapêuticos, ou o serviço substitutivo sejam capazes de substituir esse modelo hospitalar ultrapassado. Então acho que a sociedade brasileira precisa cobrar a implantação da rede substitutiva e, mais do que isso, que ela funcione com qualidade.

IHU On-Line – Por onde andam os “filhos do Colônia”? As crianças que nasceram lá?

Daniela Arbex – Então, eu encontrei duas. A filha da paciente Sueli Rezende, que nasceu lá. Hoje ela é graduada e formou uma família. Encontrei também o João Bosco, que é bombeiro e membro da banda do corpo de bombeiros da polícia militar de Minas Gerais. É uma pessoa muito batalhadora, muito digna. Ele conseguiu reconstruir, refazer essa história, mas passou a maior parte da vida sem saber que era órfão de uma mãe viva. Ele não sabia que a mãe estava viva, e a mãe também não sabia que o filho vivia; os dois se encontraram mais de 40 anos depois. Então essa lacuna que foi deixada na vida dessas pessoas, que deixaram de conviver com seus pais, com suas mães, é uma coisa que não se resgata. Apesar de essas pessoas terem, de alguma forma, dado a volta por cima, e elas são muito valorosas por isso, vai sempre haver uma lacuna na vida delas.

IHU On-Line – Quem eram os responsáveis/gestores do Colônia (Estado, Município, União)? Alguém foi responsabilizado pelos maus-tratos?

Daniela Arbex – Não, ainda não teve um responsabilização. Eu vejo muitas pessoas hoje cobrando uma responsabilização, algumas críticas que, inclusive, afirmam que o livro não dá nomes, mas eu não podia ser injusta. Eu não podia citar um nome, sendo que essa foi uma barbárie cometida durante cinco décadas. Durante 50 anos passaram pelo hospital milhares de pessoas, funcionários, médicos e profissionais de toda sorte, isso sem falar da própria população de Barbacena (MG) e dos familiares dos pacientes espalhados pelo país inteiro. Eu acho muito difícil que haja uma individualização dessa responsabilidade. Para mim, o mais correto e talvez o caminho possível fosse a responsabilização do Estado de Minas Gerais que foi responsável pela manutenção do Hospital, porque essas pessoas estavam sob a custódia do Estado.

IHU On-Line – Você chegou a conversar com funcionários? Como eles enxergavam o tratamento que era aplicado aos pacientes?

Daniela Arbex – Na verdade eles não enxergavam. Eu conversei com muitos funcionários e a resposta era sempre a mesma. Eles alegavam não ter tido a dimensão da tragédia, que apenas seguiam a cartilha dos mais antigos e aprenderam que era daquela forma que devia ser feito. Eles também acabaram se desumanizando com o tempo. Alguns tentaram fazer alguma coisa (poucos na verdade), mas eu acho que essa rotina acabou desumanizando essas pessoas de alguma forma. Elas não tinham a dimensão exata da gravidade dos atos e do que estava acontecendo ali. Agora, olhando para trás, muitos confidenciaram que se arrependem e que podiam ter feito mais, que podiam ter evitado mortes, e isso para mim foi surpreendente.

IHU On-Line – Foi uma escolha muito feliz o termo Holocausto Brasileiro, porque esse comportamento dos funcionários lembra muito o que Hannah Arendt fala da banalidade do mal no próprio Holocausto.

Daniela Arbex – Exatamente. Eu tive pouquíssimas críticas em relação ao nome, mas uma pessoa colocou publicamente que achava que nada podia ser comparado ao nazismo. E o livro mostra exatamente o contrário, pode ser comparado sim, pois o Colônia foi também um campo de extermínio em massa. As condições nas quais as pessoas foram mantidas, a forma com que elas foram tratadas, as vítimas tendo que enterrar seus próprios mortos, enfim, penso que se assemelha muito ao que aconteceu na Alemanha nazista.

IHU On-Line – A banalidade do mal se caracteriza por um comportamento que segue a cartilha, segue a técnica, sem que haja nenhuma reflexão humana sobre o acontecimento. Como você vê isso no caso do Colônia?

Daniela Arbex – Volto à questão da construção da cultura da época. Aquelas pessoas não eram vistas como gente, porque elas nunca foram tratadas como gente. Ao contrário, muitas não tinham nem nome de gente. Quando entravam no hospital eram rebatizadas e recebiam nomes de animais. Uma delas, por exemplo, foi apelidada de gansa, outra de boi… Começava ali, ao não considerar essas pessoas como gente. Passa também pelo pensamento de achar que essas pessoas, por serem tidas como loucas, não mereçam um tratamento digno, humanizado. Os psicofármacos também foram introduzidos no país na década de 1950; então tem tudo isso.

Todo o estigma da loucura, toda a falta de recursos da época, todas essas limitações levaram aos abusos sistemáticos. Agora, eu entendo que a segregação fazia parte da cultura da época e faz parte da cultura de hoje, mas o que eu nunca vou conseguir entender e jamais irei aceitar são os abusos que foram cometidos. Porque uma coisa é você segregar, é tirar essa pessoa do seu convívio social. Outra é maltratar, deixar passar fome, passar frio, é você violar a dignidade dessa pessoa de todas as formas. Para mim, isso é grave, é crime de lesão à humanidade em qualquer tempo.

Quanto a essa banalização do mal, eu entendo que as pessoas foram se desumanizando, foram deixando de ver, aquilo foi incorporado na rotina delas. “É assim mesmo, eu não consigo mudar e o que eu vou fazer?”. Elas passaram a cometer os mesmos equívocos de outras pessoas e, quando se viu, isso durou quase um século. Então se você pensar que a abertura dos porões da loucura começou na década de 1980, você vai ver que durante oito décadas isso foi admissível. Como? Isso nos leva a parar, olhar para trás e refletir sobre o quanto a indiferença provoca barbárie. A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê. É essa indiferença que contribui para a existência de barbáries como a do Colônia.

IHU On-Line – Você tem planos para outras publicações?

Daniela Arbex – Tenho. Estou iniciando as entrevistas para um próximo livro que já está sendo preparado. Não vai ser sobre esse tema, mas também trata de uma história encoberta no país. É um livro que fala sobre o funcionamento de instituições, de acolhimento de forma irregular, mas não é sobre a loucura. Não especificamente, porque é sobre outras loucuras que o ser humano faz e comete.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.