“A escola estar no campo, além de um direito, é a garantia de um espaço fundamentador de debates, de aprofundamentos e de construção coletiva”

maria_cristina_entrevistaPor Viviane Tavares, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz

O eixo II do documento de referência da Conferência Nacional da Educação (Conae) 2014 trata de Educação e Diversidade: Justiça Social, Inclusão e Direitos Humanos. É neste eixo que são apontadas questões sobre ações afirmativas em relação à garantia do acesso, da permanência e do direito à aprendizagem aos grupos historicamente excluídos. De acordo com o documento, políticas públicas existem, o que é necessário é a concretização das mesmas, junto à efetivação Plano Nacional da Educação (PNE), bem como a ampliação do financiamento, a efetivação do regime de colaboração entre os entes federados e maior articulação entre os sistemas de ensino, incluindo a instituição do Sistema Nacional de Ensino (SNE).

A educadora Maria Cristina Vargas, uma das representantes do coletivo nacional de educação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) na Conae explica, nessa entrevista, como a educação no campo é discutida nesse espaço, além de detalhar quais são as necessidades dos trabalhadores do campo em relação à educação. De acordo com ela, o cenário hoje é desanimador: até agora são 37 mil escolas fechadas e uma proporção de uma escola construída para cada 100 fechadas, e é no campo onde está concentrada a maior taxa de analfabetos do país. Confira:

Como é a discussão da educação no campo na Conferência da Educação?

Nós teríamos que pensar esse momento político como importante participação da população nas discussões da educação. O que nos preocupa é que mesmo sendo um processo que foi desenvolvido por meio das conferências municipais e estaduais, a participação dos trabalhadores do campo ainda é muito limitada. Pela forma que é conduzida essa preparação, que impões vários limites se restringindo à comunidade escolar, aos educadores, o que é muito importante, mas essa importância não nega a ampliação de outros atores sociais.

E como é durante o evento e os resultados dos anteriores?

Em relação aos pontos da educação no campo, a Conae ainda não é o espaço que a gente vai conseguir o diálogo necessário. Da última Conae [em 2010] até agora, pouca avançou. Avançamos em relação aos marcos regulatórios, como o decreto [7.542, de novembro de 2010, que dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA.], que leva em consideração a educação do campo. Mas, o problema está no sistema do nosso país que, por serem estados e municípios os responsáveis principalmente pela educação básica, não chega na efetivação destes programas. E sabe por quê? Porque nosso sistema de governo está voltado para o agronegócio. Se o agronegócio tem como principal objetivo a produção em grande escala, para exportação, e não a produção de alimentos, ele pensa quanto menos gente no campo, melhor. Já a agricultura camponesa é o contrário, garante mais gente no campo e mais produção de alimentos, então a questão das políticas públicas também é maior como mais escolas, políticas de saúde, infraestrutura de moradia. Não adianta ter um decreto se não tem vontade política de efetivação.

Como está a realidade da educação no campo hoje?

A realidade que temos hoje é de fechamento de 37 mil escolas do campo nos últimos anos. De 100 escolas que fecharam, uma abriu. São dados que demonstram como está a política de educação no campo nos estados e municípios. Construir escolas no campo não dá visibilidade, não dá retorno de popularidade aos prefeitos e governadores. Por outro lado, temos que reconhecer que as escolas que abriram são bem estruturadas, uma conquista das comunidades que exigiram essas escolas, mas não atende a necessidade de escolarização de populações do campo. Hoje as matrículas dessas crianças das 37 mil escolas foram feitas na cidade. O jovem fica no campo até quando tem escola, no momento que não tem mais esse direito básico, que é a educação, ele tem que se deslocar ou parar de estudar. Além disso, a maior parte do que é oferecido no campo é o ensino fundamental, o ensino médio está longe de chegar perto do que é preciso. A escola tem que estar próxima do estudante. O convívio e o aprendizado tem que se dar junto a sua comunidade.

O que alegam para fechar uma escola?

No Brasil, um dos principais motivos que as prefeituras alegam – principalmente, porque são os municípios os responsáveis pelo ensino fundamental – é a questão financeira, que não é possível manter uma escola com poucos alunos, e preferem financiar os transportes escolares. No caso nosso, a gente não é contra o transporte escolar, mas que seja intracampo, pode até ter uma nucleação das escolas, se for importante e discutido com a comunidade que é bom aglutinar as crianças, mas por que essa nucleação não pode ser no campo, de maneira a organizar geograficamente para que ela fique no campo? Já que a escola mais distante fica inviável seguindo essa lógica, de que é melhor sustentar uma escola maior do que uma menor, por que não organizar ali mesmo no campo? Outra é a formação de professores, principalmente no segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio, porque esses períodos exigem profissionais qualificados em cada área, então isso amplia a quantidade de professores, nesse caso, principalmente no segundo segmento, poderia ter nucleação.

Qual é a realidade dos educadores no campo?

Os movimentos têm investidos na formação e na ampliação da quantidade de professores que possam trabalhar no campo, de preferência que sejam jovens e/ou sujeitos do próprio campo. Mas isso não impede, claro, de não tendo essa população que mora ali próximo da escola, que venham pessoas de outras regiões com uma formação que ajude a compreender a realidade do lugar. Essa é uma luta constante, de ampliar o acesso à Universidade, enfim, é a cada dia uma conquista específica de cada lugar.

Como é a educação no campo e relação ao sistema tradicional que é imposto, como os materiais didáticos etc.?

A educação tradicional relata o camponês como o jeca ou um lugar romantizado com a relação com a natureza e não como um lugar de trabalho e cultura. O que temos lutado também é que possamos mudar essa realidade na formação.  Os estudantes do espaço urbano também precisam ler o campo com a sua realidade, com um entendimento mais amplo. Os materiais didáticos que são utilizados no campo e na cidade têm de demonstrar a realidade camponesa para que  todos possam compreendê-la.

Qual é a importância dos trabalhadores estudarem no campo, além da proximidade, de ficar perto de casa? O MST tem uma pedagogia da alternância, que é dividir o tempo-escola e tempo-comunidade. Que diferença isso faz?

alternância é uma prática desenvolvida principalmente para a realidade camponesa, até para garantir o estudo, porque ele pode ficar um período na escola e outro na sua comunidade, desenvolvendo as práticas, e trabalhar muito a teoria e prática, e teoria para refletir. Mas, a defesa das escolas no campo, além de garantia de um direito, que é o da educação, é que a escola na realidade camponesa se comporta como um coração dessa comunidade, porque ela está mostrando que ali naquele lugar é um espaço de direito. A concepção de campo que foi desenvolvido pelo sistema é de que aquele lugar de trabalho, e não de formação cultural do sujeito. Nesse sentido, a escola estar no campo, além de um direito,  é a garantia de um espaço fundamentador  de debates, de aprofundamentos e de construção coletiva. A presença da escola é um reconhecimento desta comunidade. Assim como outras políticas públicas devem estar. O fato de ter médico no campo é muito importante também.

Diante dessa realidade, com diferentes demandas, quais serão as pautas nesta Conae?

As discussões que a gente tem feito nos fóruns da educação no campo são, entre tantas outras, a questão da construção das escolas e a parada imediata de fechamento de escolas. A gente tem também outra fundamental que é a de formação de professores. Mas tem uma que é mais invisível e que é um descaso do Estado, que é a alfabetização de jovens e adultos. É no campo onde está concentrado o maior número de jovens que não teve acesso à leitura e à escrita. E para nós isso é um dever desse Estado e não andar a passos lentos como está acontecendo agora. Em torno de 28% da população analfabetos se concentra no campo.

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