Fórum Justiça propõe audiência pública pelo Direito à Moradia e contra a especulação imobiliária no Ceará

forum_justicaPor Rodrigo de Medeiros, pelo Fórum Justiça CE

Hoje, 21 de janeiro, o Fórum Justiça no Ceará* protocolou ofício ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador Luiz Gerardo de Pontes Brígido, e ao Juiz Leonardo Resende Martins, Diretor do Foro da Justiça Federal em Fortaleza (texto abaixo). O documento propõe a construção conjunta de uma audiência pública sobre a Moradia, destacando a problemática do déficit de moradias em Fortaleza, além da questão do impacto de obras e empreendimentos não só na Capital, mas por todo o Estado. Em relação a estes últimos pontos, denuncia possíveis desvirtuamentos do que seria obra de interesse público.

O Fórum Justiça fala ainda da necessidade de harmonizar o Direito Social à Moradia com a preservação do meio ambiente. As remoções, os despejos forçados e a especulação imobiliária são uma realidade, e pedem do Sistema de Justiça um trato que efetive direitos humanos fundamentais e não que acirre os conflitos sociais existentes. Ano de Copa do Mundo, evento que possui o escopo do lucro, e gestões administrativas que querem se destacar pela realização de inúmeras construções, fazem com que se necessite de um exercício jurisdicional que observe todas as nuances destas questões, para a garantia do bem comum.

Ofício do nº01/2014, do Fórum Justiça:

[…] os tribunais, investidos que estão, na árdua tarefa de atuar na Constituição, são constantemente desafiados pelo dilema de dar conteúdo a tais enigmáticas e vagos preceitos, conceitos e valores, o que lhes demanda profundo senso de criatividade, ou como fazem alguns, considerar como não vinculante, justamente, o núcleo central das Constituições modernas (exatamente o que trata proteção e efetivação dos Direitos Humanos e garantias fundamentais), permitindo com isso a mantença de um status quo e dos privilégios de poucos em detrimento de muitos. Esta última postura, ainda defendida por parcelas de tribunais brasileiros, quando não consideram como prioritários, inclusive sobre a legislação interna, os instrumentos normativos de proteção dos Direitos Humanos, implica reconhecer que o Poder Judiciário, cuja função essencial é proteger direitos desta natureza, esteja renunciando à sua própria jurisdição. [1]

Sr. Presidente e Sr. Diretor,

O Fórum Justiça no Ceará-  FJC é um espaço aberto a movimentos sociais, organizações da sociedade civil, setores acadêmicos, estudantes, agentes estatais e todas e todos interessados em discutir a justiça como serviço público e, nesse sentido, a importância de se construir uma política judicial integradora para o sistema de justiça, que compreenda ações voltadas para o reconhecimento de identidades e a redistribuição de riquezas, com participação popular. Aqui no Estado do Ceará já atua há mais de um ano.

Tendo em vista seu escopo, o Fórum está envolvido e preocupado com a questão da Moradia, em Fortaleza e no Estado do Ceará como um todo. É um direito Social posto em nossa Constituição (Art. 6º, da CF), de eficácia imediata, cuja aplicação está sendo ainda mais ameaçada no contexto de preparação da cidade para Copa do Mundo, pois as obras não seguem um processo de planejamento urbano responsável e sustentável.

Fortaleza é a segunda capital do país em residências precárias, conforme estudo do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada- IPEA, divulgado no último dia 25 de novembro:

De acordo com os dados, Fortaleza tem o déficit de 10,5% em relação ao total de residências na capital. Isso significa que a cada 100 habitações, 10 não tinham condições para moradia.[2]

Segundo a Fundação João Pinheiro (2008), o déficit habitacional na zona urbana da Região Metropolitana Fortaleza é de 101.266 unidades. Por outro lado, há 91.551 unidades habitacionais vagas em reforma/construção que poderiam ser utilizadas, mas que tem como principal público as classes de médio e alto poder aquisitivo. Enquanto isso, 94,6% do déficit habitacional concentra-se na população de baixa renda, aquela com faixa de renda entre 0 a 3 salários mínimos, para quem não há a mesma oferta residencial.

 Além disso, há 402.388 unidades habitacionais em situação inadequada, o que inclui as seguintes condições: falta de banheiro, falta de acesso a serviços básicos, adensamento excessivo de moradores, existência de teto inadequado, falta de regularização fundiária. São problemas que atingem, sobretudo, a população de baixa renda que vive nas favelas em condições precárias e inseguras sob os aspectos econômico, social, ambiental e jurídico.

Há de se observar a complexidade da organização do espaço urbano. Fortaleza possui terrenos de marinha, terrenos da União, do Estado, do Município, muitos dos quais não estão devidamente identificados e demarcados. Também é fato público que além da força da especulação imobiliária, atualmente, existem uma série de obras com impactos na Moradia. A quantidade de terrenos vazios e subutilizados é uma afronta diante do grande número de famílias sem casa, enquanto existem diversos instrumentos legais hábeis a fazerem os mesmos cumprirem a sua função social:

Hoje não resta dúvida de que o controle democrático é incompatível com as liberdades empresariais que são indispensáveis à máxima acumulação do capital. E é por não poder prescindir dessas liberdades que o capital tem todos os motivos para resistir ao controle democrático. O direito de propriedade ilimitado não pode coexistir com a democracia. Um democrata otimista pode alegar que o Legislativo e o Judiciário já fizeram sérias investidas contra o direito de propriedade ilimitado. Mas quanto mais incisivas são essas investidas, mais os porta-vozes do capital se esforçam para vincular a liberdade de propriedade às demais liberdades individuais. [3]

Sem prejuízo da preservação das áreas verdes, do meio ambiente, nestes casos mais extremos, há de se observar também a Lei Orgânica do Município- LOM, que só prevê autorização para a remoção, no mesmo bairro:

Art. 191. A política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Município, assegurará:

I – a urbanização e a regularização fundiária das áreas, onde esteja situada a população favelada e de baixa renda, sem remoção dos moradores salvo:

a) em área de risco, tendo, nestes casos, o Governo Municipal a obrigação de assentar a respectiva população no próprio bairro ou nas adjacências, em condições de moradia digna, sem ônus para os removidos e com prazos acordados entre a população e a administração municipal;

b) nos casos em que a remoção seja imprescindível para a reurbanização, mediante consulta obrigatória e acordo de pelo menos dois terços da população atingida, assegurando o reassentamento no mesmo bairro;

II – a preservação, a proteção e recuperação do meio ambiente natural e cultural;

III – a participação ativa das entidades comunitárias no estudo, no encaminhamento e na solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

IV – às pessoas com deficiência, a acessibilidade a edifícios públicos e particulares de freqüência aberta ao público, a logradouros públicos e ao transporte coletivo, na forma da lei;

V – a utilização racional do território e dos recursos naturais, mediante a implantação e o funcionamento de atividades industriais, comerciais, residenciais e viárias.

Inclusive, frente ao crescimento desordenado e as obras não racionalizadas, há previsão na LOM de desestímulo à urbanização, em certos casos:

Art. 192. A urbanização deverá ser desestimulada ou contida em áreas que apresentem as seguintes características:

I – necessidade de preservação de seus elementos naturais e de características de ordem fisiográficas;

II – vulnerabilidade a intempéries, calamidades e outras condições adversas;

III – necessidade de preservação do patrimônio histórico, artístico, arqueológico ou paisagístico;

IV – necessidade de proteção aos mananciais, às praias, regiões lacustres, margens de rios e dunas;

V – previsão de implantação e operação de equipamentos urbanos de grande porte, tais como, terminais aéreos, marítimos, rodoviários e ferroviários, autopistas e outros;

VI – necessidade de preservação ou criação de condições para produção de hortas e pomares.

O Plano Diretor Participativo do Município (Lei Complementar nº 062/2009) criou mecanismos que precisam ser ainda implementados, como as Zonas de Interesse Social- ZEIS, da forma que segue:

Art. 133. As Zonas Especiais de Interesse Social 3 – ZEIS 3 – são compostas de áreas dotadas de infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse social, bem como aos demais usos válidos para a Zona onde estiverem localizadas, a partir de elaboração de plano específico.

§ 1º Caberá ao Poder Público Municipal elaborar Plano de Intervenção para cada ZEIS 3, no qual serão delimitadas as áreas precisas de aplicação das diretrizes contidas neste artigo, respeitados os procedimentos sequenciais dos arts. n. 208 a 217 deste Plano Diretor, e em conformidade com os arts. 5º e 8º do Estatuto da Cidade.

§ 2º Os proprietários que implementarem projetos habitacionais de interesse social nos terrenos vazios contidos nas ZEIS 3 serão beneficiados com a transferência de todo o potencial construtivo da propriedade para as áreas passíveis de importação deste parâmetro.

§ 3º Nas ZEIS 3 com predominância de edificações subutilizadas e não utilizadas em áreas dotadas de infraestrutura, serviços urbanos e oferta de empregos, ou que estejam recebendo investimentos desta natureza, poderão, conforme o interesse público, além do disposto no caput, visar à requalificação urbanística e à dinamização econômica e social.

Art. 134. São objetivos das Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS 3):

I — ampliar a oferta de moradia para a população de baixa renda;

II — combater o déficit habitacional do Município;

III — induzir os proprietários de terrenos vazios a investir em programas habitacionais de interesse social.

Art. 135. Serão aplicados nas Zonas Especiais de Interesse Social 3 (ZEIS 3), especialmente, os seguintes instrumentos:

I — parcelamento, edificação e utilização compulsórios;

II — IPTU progressivo no tempo;

III — desapropriação para fins de reforma urbana;

IV — consórcio imobiliário;

V — direito de preempção;

VI — direito de superfície;

VII — operações urbanas consorciadas;

VIII — transferência do direito de construir;

IX — abandono;

X — plano de intervenção.

Art. 136. São critérios para demarcação de novas ZEIS 3:

I — ser área dotada de infraestrutura urbana;

II — existência de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que permita a implantação de empreendimentos habitacionais de interesse social e de mercado popular;

III — não estar localizada em áreas de risco;

IV — estar integralmente localizada na macrozona de ocupação urbana.

Os conflitos sociais gerados pela não efetivação do Direito à Moradia terminam por se judicializar gerando uma situação de conflito fundiário, definido pela Resolução Recomendada 87/2009 do Conselho das Cidades como:

[…] disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade.

 Ou seja, tanto há casos de disputas pelo imóvel sem função social entre uma coletividade e um proprietário particular ou público, quanto de comunidades já estabelecidas e que são ameaçadas de remoção por grandes empreendimentos que se visa a estabelecer no seu local de moradia.

Os conflitos, na maior parte das vezes, são materializados por ações possessórias, reivindicatórias, e ações individuais de desapropriação cujo atual procedimento – ainda marcadamente patrimonialista – não alcança a complexidade dos direitos fundamentais envolvidos.

Mesmo a ação civil pública ainda não se efetivou como instrumento processual de defesa do direito social à moradia e do direito difuso à cidade, tendo em vista que a maior demora e complexidade do procedimento não consegue competir com outras medidas legais e ilegais utilizadas contra as comunidades:

 […] adjetiva o direito brasileiro como “pobre” no sentido de que, salvo algumas exceções, a interpretação e aplicação do nosso ordenamento jurídico têm colhido escassos frutos no que se relaciona às garantias devidas aos direitos dos pobres, de modo particular os humanos fundamentais sociais. [4]

Como um exemplo, podemos citar o caso da obra do Veículo Leve sobre os Trilhos, em que as medidas conciliatórias e as decisões judiciais que acolheram, ainda que em parte, os pedidos autorais da Defensoria Pública do Estado do Ceará, não foram suficientes para aliviar a pressão sofrida pelas comunidades:

Os Núcleos de Moradia e Habitação e de Direitos Humanos e Ações Coletivas, da Defensoria Pública do Ceará, impetraram Ação Civil Pública (ACP) contra a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e contra o Estado do Ceará, em defesa de cerca de cinco mil famílias de Fortaleza. Elas serão atingidas pelo Projeto VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos), que está sendo construído pelo Governo estadual às margens do ramal ferroviário da REFFSA, no trecho Parangaba – Mucuripe.

O trajeto envolve 12,7km, onde algumas dessas 5.000 famílias vivem há mais de 50 anos. Todas já consolidaram sua posse, assim como as condições de moradia, trabalho, acessibilidade, saúde e educação no local, e, como relatam os moradores mais antigos, as moradias são passadas de geração em geração há muito tempo.

São 22 comunidades carentes que estão sendo ameaçadas de remoção  para a implantação do  VLT e, além de não terem recebido informações adequadas sobre o projeto, também não lhes foi feita proposta de reassentamento em local próximo, como exige a legislação municipal. Ao contrário, a intenção é removê-las e reassentá-las a uma distância de cerca de 14 km do local onde vivem, contra a sua vontade e ignorando-se que a posse com fins de moradia há décadas constitui usucapião constitucional urbano. Outra hipótese oferecida é indenizá-las pelas benfeitorias, por valores que não permitem a aquisição de outra moradia em condições semelhantes.

Na ACP, a Defensoria Pública manifesta sua estranheza quanto ao trajeto previsto para o VLT no EIA/RIMA, pois em vários trechos a linha que o governo pretende construir desvia de grandes empresas privadas e/ou de terrenos vazios, mas atinge comunidades inteiras. São citadas como exemplos a Comunidade Lauro Vieira Chaves, localizada no Bairro Montese, com 203 famílias (mais de 800 pessoas), e a Comunidade Aldacir Barbosa.[5]

Esta, infelizmente, não é uma questão que se restringe a Fortaleza, devendo ter uma atenção do Sistema de Justiça em todo o Estado:

Fortaleza, 27/06/2013 Representantes da Infraero e da Procuradoria Municipal de Juazeiro do Norte (CE) procuraram a Defensoria Pública da União no Ceará, na segunda-feira (24), para propor a participação do órgão nos processos de desapropriação de imóveis decorrentes da construção do aeroporto da cidade.

“A presença da DPU se faz muito importante devido à quantidade de famílias carentes na área. A assistência da Defensoria garante o caráter social dessa ação”, disse a procuradora-geral Mariana Gurgel.

Segundo Mariana, cerca de 140 famílias vão precisar deixar suas casas. Os imóveis já foram avaliados pela Caixa Econômica Federal e as rodadas de conciliação com os proprietários devem começar em meados de julho.[6]

Não se pode cair na falsa dicotomia de conflitos entre bens jurídicos, mas de forma racional compatibilizar os interesses. Sentença, que possui a mesma raiz de sentimento, não pode refletir sentimentos de descaso ou de violação a Direitos Sociais, nem mesmo de desprezo à população que não tem acesso as esferas de poder (político e econômico). Da mesma forma, há também de se evitar a judicialização, procurando fomentar critérios objetivos de solução de empasses como estes.

Com intuito de propiciar diálogos necessários, é que o Fórum Justiça vem a este Tribunal e a este Foro propor uma construção conjunta de uma audiência pública sobre o tema. Da mesmo jeito que as áreas verdes são cada vez mais ameaçadas, surgem obras das mais diversas, muitas com a justificativa de serem de interesse público, que terminam por remover milhares de famílias. À constatação deste quadro não pode se fazer olvidar do Direito à Moradia.

Certo do compromisso com o bem comum, aguarda-se o retorno, agradecendo desde já a atenção.

Atenciosamente,

Secretaria Executiva do Fórum Justiça no Ceará

Aurilene Vidal – Coordenação Estadual das Pastorais Sociais

Sandra Moura de Sá – Presidente da ADPEC

Rodrigo de Medeiros – RENAP-CE


[1] CAPPELLETTI, Mauro. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 207.

[2] Disponível em http://ne10.uol.com.br/canal/cotidiano/nordeste/noticia/2013/11/26/fortaleza-e-a-2-capital-do-pais-com-maior-indice-de-residencias-precarias-456941.php Acesso em 10 de DEZ 2013

[3] MACPHERSON, C. B. Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1991, p. 75)

[4] ALFONSIN, Jacques. Das Legalidades Injustas às Ilegalidades Justas: Estudos sobre direitos humanos, sua defesa por assessoria jurídica popular em favor de vítimas dos descumprimentos da função social da propriedade. Porto Alegre: Armazém Digital, 2013, p. 145

[5] Disponível em http://racismoambiental.net.br/2011/12/ce-defensores-publicos-defendem-5-000-familias-do-vlt-e-da-especulacao-imobiliaria/  Acesso em 10 de DEZ 2013

[6] Disponível em http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15517%3Adpu-e-convidada-a-participar-de-processos-de-desapropriacao-no-ceara&catid=79%3Anoticias4&Itemid=220  Acesso em 10 de DEZ 2013

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