O tesouro escondido, por Claret Fernandes*

mãos branca e negra

Inicia-se o inverno na região do Xingu, com as chuvas finas na madrugada, pequenos trovões, o barulhinho da goteira e o frescor da manhã. Há muita lama nas estradas, e muitos buracos, em alguns trechos de chão da Transamazônica, mas, principalmente, nos travessões. Parece incrível, mas algumas cidades, como Brasil Novo, estão sem abastecimento de água para consumo humano.

Maria, mãe solteira, vem com o recém-nascido no colo, acompanhada de seu companheiro José.

Quando soube da gravidez de Maria, sua namorada, José não entendeu o fato e, influenciado pela ideologia do templo, esteve decidido a abandoná-la. De um momento para outro, porém, ele mudou de ideia e disse ter tido um sonho. O amor tem lá seus caminhos! Então arranjou uma tenda emprestada, e foi morar com Maria, acolhendo-a.

Completado o tempo, Maria deu à luz, em Belém do Pará.

O nascimento do menino foi assim! Acontecia a festa do Círio em Belém. Maria chegou à cidade. Procurou por tudo quanto é hospital e não encontrou vaga. Os hotéis, além de caros, estavam lotados. As hospedarias mais simples também não tinham quarto, e nem uma sala. Correu atrás de padres, irmãs, até do bispo da Capital, mas, naqueles dias, estavam muito ocupados com a grande festa do Círio, que chega a reunir dois milhões e meio de pessoas em um só dia. Os pastores, também, tinham seus afazeres.

Quem haveria de notar e acolher uma menina estranha e grávida, um caso tão comum em meio a tantas outras, naquela cidade-mar de gente.

Procuraram um abrigo qualquer. Mas sempre a porta lhes batia na cara.

Chegaram a ir ao parque de exposições. Quem sabe ali teriam ao menos a sorte de Jesus, que encontrara um coxinho. Mas não! O segurança os expulsa de lá, alegando que um recém-nascido ali, com seu choro, iria estressar os cavalos de raça.

Então se dirigiram ao porto. Maria sentia cólicas na barriga, em dores de parto. O menino queria nascer, esse era seu destino, mas não achava um lugar, e dava pontapés dentro do útero da mãe.

Depois de rodar toda a cidade, exaustos, Maria e José chegaram ao porto, já anoitecendo. Ali encontraram um barco velho abandonado, de um pescador chamado Pedro, falecido há algumas centenas de anos.

Maria entrou! Lá dentro havia tudo enquanto é ‘porcaria’, coisa que ela não tinha nem coragem de comentar com José. Havia, também, tocos de cigarro e restos de pinga em litros pelos cantos.

Maria acomoda-se bem ao fundo do barco, junto a palhas de coqueiro secas. Em poucos instantes, José, que ficara na porta, houve o choro de uma criança.

As lágrimas escorreram no rosto de José, num misto de alegria e muita apreensão. Era o seu primeiro filho, talvez o único.

Uma pergunta girava em sua cabeça: o que haveria de ser daquele menino, com a vida tão difícil, num sistema que explora o trabalho dos trabalhadores e os bens naturais, e com tanto preconceito?

Ratos e mucuras transitavam por ali, e chiavam, reparando o menino. Peixes saltavam no rio, bem próximos ao barco. Um boto parecia saudá-lo, pulando e dando tapa na flor da água, como se batesse palmas.

Tarde da noite, chegaram outras visitas: meninas de rua, bêbadas ou loucas de crack, algumas adolescentes já grávidas. Amontoaram-se pelo chão, barulhentas. Mas antes deram um sorriso para o menino, num momento raro de estranha lucidez.

Uns ‘pés inchados’ passaram na madrugada, e, também eles, souberam do menino, e da sua belezura, e quiseram vê-lo.

De manhã, depois que o sol vinha forte pelo Amazonas, os panos velhos que serviam de cortina se abriram e, só então, Maria viu que o dia já estava claro.

Uma adolescente grávida, que dormira inconsciente de tanta pinga na cabeça, aproximou-se, delicadamente, e fez graça com o dedo para o recém-nascido. Depois rodou a sua bolsinha bem em frente ao rosto do menino. Ele abriu um ar de riso. Maria riu também, e tirou o peito para dar-lhe de mamar.

A adolescente reparou, reparou o menino todo peladinho naquela brisa da manhã e saiu em disparada pela janela do barco sem dizer nada. Em cinco minutos, estava de volta, trazendo belas roupinhas de criança. E as entregou a Maria, que enrolou o menino.

É por essa sensibilidade ativa, pensou Maria, que elas têm a precedência no reino.

Ele ficou uma graça com a roupinha! As duas sorriram.

Nenhuma autoridade foi visitar o menino. Mas muitos poderosos haveriam de tramar contra ele, e contra todo aquele que o adotasse na sua vida.

A notícia do menino corria por toda a Belém. Quem o via, dizia que o menino era a cara da mãe, com aqueles traços indígenas. Alguns comentavam que na cor da pele, na força da raça negra, o menino puxara a José. Apesar de toda a discrição, ele não escondia uma ponta de orgulho.

Num susto, Maria viu aproximar-se da janela um rosto de mulher com modos de madame, com uma fita vermelha e larga no pescoço. Em alguns segundos, o barco foi invadido por três policiais fortemente armados. A mulher gritou aos policiais, apontando o dedo para a menina:

‘É aquela! A gente nem pode ir à igreja na primeira sexta-feira, que essas ‘pivetes’ já entram para roubar! Por isso torço pela redução da maioridade penal. Essas putinhas têm que ir para a cadeia!’.

Maria se contorceu toda de indignação, e segurou o menino. Instinto e amor de mãe! Aquele pensamento não era o de Jesus nem de Francisco.

Quis até jogar as roupas fora, manchadas de preconceito e exploração, mas deram tanto trabalho à menina! E faziam tão bem ao menino!

Os policiais caíram em cima da adolescente, agarraram-na pelo cabelo, arrastaram-na para fora do barco e a enfiaram dentro do camburão.

O carro saiu com a sirene ligada.

Todos pareciam acostumados com aquelas cenas, exceto Maria, José e o menino, que chorou, parecia espantado.

À tarde chega notícia da morte da adolescente. Ninguém tinha dúvida: ela fora assassinada!

Aquela tragédia encomendada mexeu profundamente com o sentimento de José, que se dispôs a organizar o velório dela bem ali, no barco velho, ao lado do bebê.

No início eram uns gatos pingados, depois foi juntando tanta gente, lotando a praia e, por fim, se transformando num dos maiores atos na defesa das meninas de rua, e contra a violência.

A Marcha da Vida pelo centro de Belém do Pará foi muito bonita, com faixas, cartazes, bandeiras, e levou à prisão dos assassinos. Era a primeira vez que assassinos de crianças e adolescentes iam para a cadeira.

A manifestação, porém, saiu cara a José, atingindo, também, Maria e o menino.

José, um jovem recém-formado jornalista, ganhara um Tablet de presente. Passava horas no Face book, trocando mensagem com seus amigos. Vício do tempo da universidade! Agora, porém, na escola da vida, descobre no Tablet um instrumento tão eficaz numa causa tão nobre: denunciar a violência de Belém do Pará, de Altamira, de Belo Monte para o Brasil e o Mundo.

As denúncias surtiram efeito, mas a pancada lhe veio muito forte. Passou a viver na clandestinidade, com Maria e o menino: passava uma noite no barco, outra na república com os universitários.

Dizem que um comandante de nome Herodes chegou a ordenar o assassinato de crianças da periferia, principalmente na região portuária, todas com um tiro na cabeça, para atingir o menino, mas isso não foi confirmado.

Passado um mês nesse esconde-esconde, Maria tomou o menino e, com José, pegaram estrada. Iam para a região de seus parentes. Ali todos eles corriam risco de morte.

O pai de um estudante, pescador profissional, sensibilizado com a causa deles, e extremamente indignado com Herodes – por causa do boato da matança de inocentes-, dispôs-se a levá-los numa embarcação enfrentando os perigos do Amazonas e das autoridades, até um local seguro.

Sentiram o balanço do rio, com suas águas barrentas, e chegaram a Gurupá. O pai do estudante, que os socorrera, voltou com a embarcação. Maravilharam-se com o Xingu, da cor das matas, da cor do céu. Misturaram-se ao povo simples, carne de suas carnes, e aí permaneceram meses.

Aquele casal jovem, com o menino, andava de família em família, de vila em vila, pelo rio ou pelas trilhas na mata. Tomavam açaí com farinha, e o menino crescia em tamanho, graça e sabedoria.

José trabalhava de carpinteiro, fazendo uma casa de madeira, consertando um barco ou um instrumento qualquer. Aprendera a profissão com o avô. Ganhava a vida no trabalho.

Com seu violão, tocava e animava as Comunidades Eclesiais de Base. E, com discrição, que herdara também do avô, denunciava crimes sociais e ambientais, enviando fotos e textos para o mundo, e ajudava o povo a organizar-se.

Um ou outro desconfiavam dele, por ser jovem e negro, temendo que não levasse a sério os compromissos assumidos.

O preconceito ainda é muito grande.

Maria tecia, e se misturava à mulherada indígena, todas parentes, sangue de seu sangue, nas aldeias e nos alagados. Lavava roupa, vasilhas, e se banhava nos igarapés. Passava horas e horas admirando as vitórias-régias e os pássaros de canela fininha andando por sobre as suas folhas, catando insetos e filhotes de peixe.

Tinha muitos afazeres, mas gastava o melhor do seu tempo ouvindo a História, mestra de todas as mestras, e cuidando do menino.

Permaneceram em Gurupá até os festejos de São Benedito. Depois foram subindo o rio, com a ajuda de amigos. Passaram por Porto de Moz e Sousel, mas não encostaram.

No prazo de um mês, estavam em Altamira.

No alagado da cidade, Maria e José hospedaram-se em casa de sua parentela, indígenas não-aldeados. Muitos expulsos de suas aldeias por causa da barragem de Belo Monte.

O casebre, onde Maria morara anos seguidos, antes de ir a Belém para o nascimento do menino, já estava destruído. Depois José fez o próprio barraco num lote vago, na área das palafitas. Ali permaneceram por quase três anos.

O menino brincava muito com a criançada. São algumas centenas de crianças no alagado. Desde o primeiro dia, sentira-se em casa. Com dois anos e meio de idade, corria, pulava, na rua e nos trapiches. Era muito esperto!

As pessoas, que conheciam Maria, chegavam e ‘adoravam’ o menino, de cabelo preto e corrido, olhos castanhos e pele preta: um indiozinho negro.

Muita coisa o menino não entendia.

Numa quinta-feira, por exemplo, máquinas passaram pra lá e pra cá, e deixaram a rua larga e alta. Agora, o Xingu poderia encher sem submergi-la. Ficou como uma avenida. Trocaram-se todas as lâmpadas queimadas e a noite ficou clara como um dia. Com isso, diminuiu a presença de bandidos, alguns ricaços, que se escondiam ali. Ergueu-se uma caixa d’água grande, que dava conta de distribuir água com fartura para todas as casas. As mães gostavam, pois podiam lavar roupa e vasilha sem precisar ficar medindo água. Mas quem adorava mesmo era a criançada, pois podia banhar-se sem aqueles gritos da mãe: ‘menino, vai rápido com esse banho que a fila é grande!’.

A Rua Oito, onde ocorreram essas ‘pequenas’ mudanças, passou a chamar-se Rua da Liberdade. Maria explicava ao menino que aquilo era milagre da organização do povo.

Muita coisa, de fato, o menino não entendia.

Quando iam completar três anos no alagado, por exemplo, chegaram máquinas semelhantes às que fizeram a rua, porém maiores e em mais quantidade, e derrubaram tudo, não deixando tábua sobre tábua. Maria e José, com o menino, e centenas de outras famílias, foram despejados sem nenhum direito. Ainda foram processadas e acusadas de invasoras.

José, que ajudara a construir tantas casas ali, que tocara tanto o seu violão, que cantara nas festas, que brincara com a criançada, e o menino, agora saía com uma mão na frente e outra atrás.

Maria, que ouvira tantas profecias de seus parentes indígenas, explicava ao menino que aquilo tudo eram coisas do ‘Tatu canastra’, que chegara com suas unhas enormes furando a terra, roubando-lhe o espírito (ouro) e destruindo a casa dos deuses (Xingu).

Maria e José se inseriram nas manifestações pelos direitos das famílias atingidas pela barragem de Belo Monte, fazendo caminhadas, mobilizações, acampamentos. Proclamaram o Dia do Fico no alagado: estava claro que a expulsão das famílias era limpeza social!

Avisados que a polícia os procurava, e sabedores da violência do Capital, personificado em empresas e governos, fugiram para Anapu.

Passaram lá um ano, com Dorothy. Ficaram um pouco no São Rafael, depois no PDS Esperança, em meio à floresta. Plantam muito cacau nativo e ajudaram na campanha de um milhão de árvores nativas. Participaram da 8ª Romaria da Floresta, no mês de julho.

Animados naquele sangue novo de martírio, colocaram o pé na estrada, pois caminhar na esperança é o destino da liberdade.

Um sinal numa noite de lua cheia, sem nenhuma estrela, sem algazarra do tucanato, lhe indicava alguma novidade extraordinária pela frente.  Um tesouro escondido!

Passaram por Altamira e repararam o alagado, onde moraram por tanto tempo. Agora estava tudo diferente! Onde ficavam as palafitas, e a alegria da criançada, eram bosques, ciclovias e mansões. Os empobrecidos foram todos retirados e escondidos na periferia da cidade.

O que era a promessa da redenção do empobrecido serviu apenas para torná-lo invisível.

Seguindo pela Transamazônica, chegaram numa tarde a Brasil Novo, e o menino entrou na igreja, com sua mãe e José. Estava lotada. Era um casamento chique.

Naquela confusão, Maria perdeu o menino.

Quase ficou doida. Cutucou José, que se achava encostado à parede, e os dois saíram à procura dele, no templo e, depois, na rua.

Encontraram um velhinho. Uma de suas mãos segurava a bengala e a outra o bracinho do menino.

O velhinho, vendo-os aflitos, foi logo perguntando:

– Estão à procura dele? – E apontou para o menino.

– Sim! – Disse Maria, quase em desespero. – O senhor o encontrou onde? O que aconteceu?

E já foi se aproximando do menino, querendo levantá-lo e colocá-lo no aconchego do colo.

Colo é aconchego, mas também prisão. Não é fácil permitir-se a construção do próprio caminho. É mais simples passar a vida nas trilhas fundas de um sistema, ainda que falido, do que arriscar-se na rebeldia.

– Fique calma, esse menino é sinal de contradição. Vi-o ali, agorinha, na praça, em meio aos pés inchados.

– Na praça? Em meio aos pés inchados, enquanto a gente orava no templo?

– Na praça! Ele sentado, no meio fio, e os homens empobrecidos, alguns bêbados, em torno dele.

Ajeitando a sua calça comprida, num trejeito paraense, Maria abaixou-se até o chão, e perguntou ao menino:

– Por que fez isso conosco?

Via-se que ela estava contrariada, mas cheia de amor. José permanecia de pé, calado, com ar de discrição e um quê de advertência.

O menino olhou para o velhinho, depois para a mãe, e perguntou:

– O que fiz de mal?

Aquilo era uma graça! Um menino tão pequeno, com pouco mais de quatro anos, argumentando com gente grande!

Para o velhinho, num ar de riso aberto, não tinha coisa melhor.

– Você some de repente no templo! Ficamos preocupados!

A interrogação do menino se fez serenidade e ternura. Ele olhou para sua mãe, para José, para o velhinho (que lhe sorria). Lembrou-se dos pés inchados, cada qual mais sofrido do que o outro. O mau cheiro quase insuportável da pinga, do xixi, dos dias seguidos sem banho, da esperança frustrada do emprego em Belo Monte. Pensou na ferida enorme na cabeça de um deles por causa de uma paulada simplesmente por ser empobrecido.

Com os olhos brilhando (nunca Maria e José o tinham visto assim), disse:

– Não sabiam que gente é o maior tesouro da Amazônia? Os povos da Amazônia são um tesouro escondido!

Maria não entendeu nada. Nem José. Onde o pirralho tinha tirado aquilo. Apenas o velhinho sorria, muito feliz.

Sem perder a ternura, o menino fez um ar de sapeca, e confessou, quase choramingando:

– Eu tava com fome, mamãe! E a igueja (disse assim) estava muito chata!

– Muito chata! – repetiu Maria, para o menino continuar seu raciocínio.

– Cá fora tava um cheiro de carne! Então caminhei na direção.

Duas lágrimas rolaram no rosto do menino. Ele engoliu seco, depois continuou:

– Lá tinha um homem feio. Sabe o que ele falou, mamãe? Sabe? Que ali não era lugar para menino pé-rapado. Que minha família não era convidada!

Maria sentia aquilo tudo como parte do sinal visto na lua cheia, e olhou para José. Ele também estava atento.

O velhinho, com a mão trêmula na bengala, parecia querer saltar de alegria. É como se uma visão, que tivera antigamente, estivesse se cumprindo.

O velhinho sabia de tudo! O menino falava do churrasco, que estava sendo preparado para 400 famílias na quadra, do lado do templo. Só gente bacana!

O menino continuou a sua história:

– Então saí! Do lado de fora encontrei o Batista.

Virando-se para o velhinho, o menino exclamou:

– O senhor conhece o Batista!

– Ah se conheço! – disse o velhinho.

Sua alegria aumentava sempre mais.

– Pois é! O Batista me levou para a praça. Lá, todo mundo que ganhou qualquer coisa partilhou. Eu aproveitei!

Riu e mostrou a barriguinha, até estufada.

Maria e José olharam-se um para o outro, e sorriram.

Segurando rapidamente o menino, cada um de um lado, Maria e José foram carregando-o. Ele dava gargalhadas de tudo aquilo, tentando colocar os pés do chão. Maria e José riam muito também, e, já no meio da praça, perto dos pés inchados, olhavam para o velho. Ele acenava com a mão, e ria.

Mais tarde Maria descobrira que o nome do velhinho era Simeão. Uma lembrança profunda tocou o coração dela.

Os pés inchados estavam lá, uns deitados, outros sentados sob a sombra das árvores, cochilando após o almoço. Maria e José se aproximaram e, abaixando-se perto de cada um, foram beijando aqueles farrapos de gente. O menino fez o mesmo.

Iam pensando: quanto mais se explora a Amazônia, mais empobrecido o povo fica.

No final, falaram juntos: ‘gente é o maior tesouro da Amazônica!’.

Ouviram-se vozes de crianças. Num átimo, o menino escapuliu da mão deles e saiu em disparada, misturando-se a elas. José quis ir ao seu encalço. Mas Maria disse: ‘deixe o menino!’.

José e Maria foram à primeira barraca da Praça e, com o trocadinho que tinham no bolso, compraram um Baião de dois. Procuraram um banco, sentaram-se, e comeram, guardando um pouquinho para o menino.

Ele se divertia, parecia estar no alagado, em meio à criançada.

Depois que as crianças correram, suaram, vieram juntar-se a Maria e José como se fossem antigos conhecidos. O menino pegou a marmita com o Baião de dois e todos comeram dele, enfiando a mão na vasilha, lambuzando o rosto.

– Iasmim e Ester querem que a gente fique na casa deles.

O menino falava, e seu sentimento se dividia entre pedido e imploração.

Maria disse:

– Seu pai é que sabe!

O menino virou para José, quase choramingando. José apenas disse:

– Sua mãe é que sabe!

Maria e José se olharam, riram, e foram-se levantando. Os meninos, aquela turma, saíram correndo na frente, pulando, gritando, ora chutando qualquer coisa que encontrassem pelo caminho ora correndo um atrás do outro.

Eles atravessaram a Transamazônica, pegaram a Avenida da Cidade Alta, passaram a igreja e, quase no final, onde havia muita gente amontoada, Iasmim disse:

– É aqui!

Maria e José se aproximaram, com o menino e aquela turma. Eram sete e meia da noite. Noite de natal!

Entraram. Davi e Elisângela, pais adotivos de Iasmim e Ester, filhas de Suelma e de Jamile (maranhenses), vieram recebê-los. Outro filho também adotivo, já um rapazola, os mirava sorrindo.

José, que tivera a coragem de acolher Maria e adotar o menino, sentiu um fogo de amor arder-lhe o peito, mas procurou manter-se discreto.

O menino foi correndo com as outras crianças para perto do bolo grande, sobre a mesa.

Findada a celebração, cantaram-se os parabéns para a imagem do menino Jesus, depositada no Presépio.

Para Maria, tudo era tão real! Era o natal acontecendo!

Então, quando viu as palmas, o canto, o bolo, a criançada feliz, lembrou-se do barco velho em Belém, e falou baixinho: hoje é aniversário do menino!

Ela cochichou no ouvido de José. Ele foi, e cochichou no ouvido de Davi e Elisângela. Os quatro se abraçaram, depois saíram abraçando as pessoas presentes e beijando cada criança.

Num dedo de prosa, Davi contou a José que era operário em Belo Monte, recebendo R$ 3.200,00 como caminhoneiro, e que sua consciência pesava numa obra daquela. José disse-lhe que não havia do que culpar-se: ‘o problema não são os trabalhadores, eles vão onde se abrem as frentes de trabalho; o problema são os capitalistas, no topo das empresas e dos governos, pois eles é que tomam as decisões (por enquanto) e precisam ser combatidos, com a força da organização e do poder popular’.

O menino não cabia em si de tanta alegria! Era a primeira vez que ele tinha bolo no dia do seu aniversário, com gente adotando gente, com gente acolhendo gente, com gente sendo o grande tesouro da Amazônia por ser gente.

José e Maria refletiam: nada, absolutamente nada, nem as águas nem o ouro nem a floresta nem as aves nem os animais nem os capitalistas poderão tornar invisíveis os diferentes povos da Amazônia. O bem natural, intacto ou não, deve ser em função desse tesouro maior, que constrói um país soberano. Essa é a exigência para ir-se do mito à realidade. O resto são bravatas neoliberais, independente da altura e da cor.

Enquanto isso, o menino se lambuzava todo com o doce.

***

*Claret Fernandes é padre missionário na Amazônia e Militante do MAB. Este é seu primeiro texto como colaborador assumido de Combate Racismo Ambiental.

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