Proteção à testemunha do tráfico de pessoas vira caso de omissão

Aliciamento para o tráfico começa em boates e festas
Aliciamento para o tráfico começa em boates e festas

Por Kátia Brasil, em Amazônia Real

O tráfico de pessoas é uma das formas mais cruéis de violação dos direitos humanos na atualidade. É combatida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Igreja Católica brasileira, que dedicou o tema à Campanha da Fraternidade de 2014. Mas, o que o travesti amazonense B.A.C, 28, não imaginava que ficaria desassistido pelo poder público e sem segurança depois que denunciou uma quadrilha interestadual de traficantes de pessoas que age entre os Estados do Amazonas, Pará e São Paulo.

Em duas edições, o portal Amazônia Real relatou a situação de vulnerabilidade que se encontra o jovem B.A.C., mais conhecido como “Bruna Valadares”. Nas reportagens, a Associação de Gays, Lésbicas e Travestis de Parintins (AGLTPIN) denunciou a falta de segurança enfrentada pela testemunha do tráfico humano.

Até o momento, as coordenações do Programa de Proteção às Vitimas e Testemunhas Ameaçadas de São Paulo e do Amazonas não incluíram “Bruna Valadares” no processo de proteção nem informaram qual a assistência que a testemunha pode receber.

Para ingressar no Provita, conforme Lei Federal nº 9.807 de 1999, a pessoa tem que ser testemunha em inquérito policial e/ou processo criminal em tramitação. Tem que estar ameaçada por conta de sua potencial colaboração. A ameaça ou coação exercida sobre a testemunha seja grave e que a colaboração da testemunha seja vislumbrada como importante para as investigações, entre outros requisitos.

A reportagem procurou as autoridades responsáveis pelas investigações dos crimes para saber o que houve com o processo de inserção de “Bruna Valadares” no Provita, já que ela é vítima e testemunha e precisa de assistência como prevê o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas. Chamado de Protocolo de Palermo, a convenção garante a segurança física da vítima de tráfico de pessoas, assegura apoio jurídico e até pagamento de indenização pelos danos sofridos.

Aliciamento

O travesti “Bruna Valadares” foi aliciado no município deParintins, no Amazonas, com a promessa de que ganharia dinheiro fazendo shows, o suficiente para pagar um procedimento de injeção de silicone industrial nas nádegas, coxas e quadris. Em junho de 2012, viajou para São Paulo, mas a promessa nunca foi cumprida. O jovem acabou acumulando uma dívida em dinheiro com a cafetina.

Em 31 de outubro de 2012, “Bruna Valadares” conseguiu fugir do cativeiro e denunciou ao Ministério Público de São Paulo a quadrilha de tráfico de pessoas. Ninguém foi preso.

Às autoridades e à imprensa nacional, B.A.C. contou que por cinco meses foi obrigado a se prostituir nas ruas das cidades de Jundiaí e de São Paulo. Quando não trazia dinheiro para as cafetinas, apanhava com pedaços de pau.

No retorno ao Amazonas, com apoio de amigos e de autoridades do Ministério Público de São Paulo e das Secretarias de Justiça de SP, Pará e Amazonas, “Bruna Valadares” conseguiu retornar para sua família.

A Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo classificou a vítima como uma “testemunha sigilosa e protegida”. Mas “Bruna Valadares” não está protegida, apesar de relatar em Boletim de Ocorrência no Amazonas que foi ameaçada de morte no mês de junho de 2013. Desde então vive escondido por conta própria e com o apoio da AGLTPIN.

Muito medo

No último depoimento que prestou à AGLTPIN em 14 de novembro, “Bruna Valadares” afirmou que “até hoje sintom-me traumatizada e com muito medo de me matarem e peço da Secretaria de Justiça ajuda de proteção”.

A reportagem procurou a promotora de Justiça, Eliana Vendramini, que atuou na investigação pelo GAECO (Grupo de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público de São Paulo, da quadrilha de tráfico de pessoas que aliciou “Bruna Valadares”. Ela disse que pediu à Secretaria de Justiça de São Paulo a inclusão da vítima no Provita
(Programa Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas).

“Eu pedi a inclusão da Bruna no Provita através da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo. A secretaria já tentou por várias vezes o contato com a Bruna pela Secretaria de Justiça do Amazonas, mas só teve negativas sobre a localização dela. Foi uma novela, ninguém sabia da Bruna. Quem iria ver a inclusão (da vítima) no Provita era São Paulo, o que já não é certo, por que é uma vítima daí? De qualquer forma nós estamos cuidando de gente, de pessoa humana. Não é o caso de ficar disputando pra ver quem não vai fazer (a inclusão). É o caso de disputar quem vai fazer”, afirmou Eliana Vendramini.

Segundo a promotora, pelas informações que obteve do processo de proteção, faltou a assistência à “Bruna Valadares” no Amazonas. “Como profissional eu só posso confiar com documentos. Não vi os documentos de que a Bruna recebeu assistência no Amazonas. Ninguém sabia da Bruna. Para onde ela foi encaminhada? O que ela recebeu de assistência? Qual o tratamento que está recebendo? Por que vítima de
tráfico não sara assim”, afirmou.

Risco de morte

Eliana Vendramini, que atualmente é Coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, disse que “Bruna Valadares” enfrenta risco de morte porque denunciou uma quadrilha de tráfico de pessoas que está ativa.

“Parte da organização criminosa está no Amazonas e a outra parte está em São Paulo. Daí eu digo também. Não é só São Paulo o responsável pela investigação. Bruna foi aliciada no Amazonas, tem que achar esse autor e inicia-lo. O caso é gravíssimo porque os autores são agressivos e violentos, isso demonstra risco de morte”, afirmou.

O portal Amazônia Real procurou o coordenador do Provida de São Paulo, Maximiliano Russo. Ele preferiu responder por meio de nota da Secretaria de Estado de Justiça. Na nota, o Provita afirma que há impossibilidade de fornecer informações específicas de cada interessado no ingresso ao programa, uma vez que a investigação está
sob segredo de justiça.

Provita x Provita

O Provita de São Paulo disse que houve dificuldade de localização da vítima “Bruna Valadares” no Amazonas. “Sendo que o Provita do Amazonas tentou este contato prestando grande ajuda no caso, mas diante de dificuldades técnicas isso não foi possível”, afirmou a nota do Provita enviada ao portal.

O presidente do Provita Amazonas, promotor de Justiça Fábio Monteiro, disse em entrevista à reportagem que a competência da segurança do travesti “Bruna Valadares” é o Provita de São Paulo. “O assunto é discutido no âmbito do programa desde de maio, mas o processo em São Paulo não foi concluído e não chegou para nós um pedido no sentido de proteger a vítima. A Bruna tinha que ser incluída no Provita de São Paulo e não do Amazonas por que o processo tramita lá e o juiz competente é o de lá”, afirmou.

O promotor Fábio Monteiro, que é também Coordenador da Promotoria de Combate ao Crime Organizado (CAO-CRIMO), negou que o Provita do Amazonas não tenha localizado “Bruna Valadares” em Parintins, como alegou o Provita de São Paulo. “Me estranha por que o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas sabe a localização da Bruna”, disse o promotor. Ele afirmou que acionaria a equipe técnica para levantar a situação atual da vítima, mas não deu mais resposta sobre a proteção de “Bruna Valadares” até o momento.

A Secretaria de Justiça do Amazonas informou que não encontrou indícios de ameaças de morte contra “Bruna Valadares” e não poderia fazer mais nada em relação a segurança da testemunha.

A reportagem procurou também o promotor de Justiça Luiz Fernando Rebellato, do GAECO/SP, que atua no processo de investigação do caso “Bruna Valadares”. Ele disse que como inquérito está sob sigilo não poderia dar maiores detalhes para proteger as pessoas ameaçadas.

Diante do impasse entre os Provitas, o presidente da AGLTPIN, Fernando de Souza Moraes decidiu denunciar a falta de assistência e proteção da testemunha “Bruna Valadares” ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

“O Protocolo de Palermo está sendo desrespeitado, infelizmente. O que está acontecendo com a Bruna é omissão e discriminação”, afirmou Fernando Moraes.

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