Uma reflexão – Portaria do Ministério da Justiça para instrução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas

Pedro Pulzatto Peruzzo* – 

O Ministério da Justiça enviou no fim do mês de novembro (2013) para os membros da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) uma Minuta de Portaria que estabelece instruções para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.

Inicialmente temos que entender o estatuto jurídico de uma Portaria. O ordenamento jurídico é composto por várias classes de leis, umas de hierarquia superior às outras. A Constituição Federal é o documento legal e político mais importante do país, sendo que abaixo dela (com estatuto supralegal) estão os Tratados Internacionais que tratam de Direitos Humanos e, abaixo destes, as Leis Ordinárias (como o Código Civil, o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Índio etc).

Abaixo das Leis Ordinárias estão os Decretos que, nos termos do artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, têm a função de esclarecer, regulamentar as leis, para a sua fiel execução. A Portaria, por sua vez, é, resumidamente, um instrumento legal de regulamentação de Decretos. Nesse sentido, um Ministro pode baixar uma Portaria com base no artigo 87, inciso II, da Constituição, que diz que compete aos Ministros expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos.

Para que a Constituição seja alterada, é necessário que o Congresso Nacional vote a alteração em um regime diferenciado. Para mudar uma lei, o Congresso Nacional também precisa se manifestar, por maioria simples. Já para alterar uma Portaria, o Congresso Nacional não precisa se manifestar, pois nada novo estará sendo criado. Apesar do fato de nada novo ser criado, precisamos ficar atentos às modificações de Portarias, pois elas regulamentam Decretos e Leis.

Como fica claro, tanto os Decretos como as Portarias não podem criar direitos e deveres que não estejam previstos na Constituição, nos Tratados Internacionais e nas Leis Ordinárias, pois os Decretos e as Portarias têm uma finalidade regulamentadora, de instrução.

Exemplo de extrapolação do limite regulamentador de uma Portaria foi a Portaria 303 da Advocacia-Geral da União que, dentre outros absurdos, vedava a ampliação de terra indígena já demarcada. Se o “caput” do artigo 231 da Constituição Federal diz que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, qualquer limitação imposta à ampliação de terra já demarcada representaria uma violação ao direito à reprodução física. Se o direito à reprodução física está garantido na Constituição, então nenhuma Portaria pode restringir esse direito.

Essa Portaria 303 foi elaborada pelo Advogado-Geral da União, Luis Inácio Adams que, num surto de poder e após uma conversa a portas fechadas com representantes ruralistas, decidiu criar regras para a demarcação de terras indígenas no Brasil. Essa Portaria 303 permaneceu suspensa até o julgamento dos Embargos de Declaração de Raposa Serra do Sol e, segundo informações, a AGU está avaliando se ela será retomada.

Independentemente do absurdo jurídico que é a Portaria 303 da AGU, o fato é que a Minuta de Portaria submetida ao CNPI recentemente pelo Ministro da Justiça pode ser não apenas uma forma legal de instruir o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, mas também de se sobrepor à Portaria 303 da AGU. Na Minuta enviada pelo Ministro da Justiça ao CNPI consta expressamente que a Portaria “estabelece instruções”, ou seja, não cria nada novo.

O maior problema das Portarias é a facilidade de serem revogadas. Uma vez alterada a composição do Ministério da Justiça, o próximo Ministro da Justiça poderá revogá-la e definir novas regras. É importante anotar, contudo, que quando estão em questão direitos sociais vale o “princípio da vedação do retrocesso”. Esse princípio significa que uma vez que se avança num tema de direito social (como o direito à moradia, à alimentação, à saúde e, considerando a interdependência dos direitos fundamentais, também o direito dos povos indígenas a terem suas terras demarcadas mediante um processo seguro, justo e participativo), impossível seria o retrocesso posterior. O Supremo Tribunal Federal explicou esse princípio da seguinte maneira:

A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS “ASTREINTES”. (RE 639337 AgR / SP – SÃO PAULO)

Apesar de o STF ter reconhecido a aplicação desse princípio no Brasil, é fato que ele ainda não é aplicado e respeitado integralmente, especialmente nos casos em que estão em jogo interesses econômicos de grupos que têm poder de deliberação no Estado, como é o caso dos agroinvestidores. De todo modo, vale reforçar que uma vez conquistada uma situação jurídica relevante para a demarcação das terras indígenas, nenhum Ministro poderia, por exemplo, revogar a Portaria que avançou nesse sentido e retroceder fixando novas regras prejudiciais.

A Minuta da Portaria enviada ao CNPI surge num momento em que os conflitos entre indígenas e não indígenas envolvendo disputa de terras tradicionais foi responsável pelo aumento de 269% do número de assassinato de indígena nos últimos 12 anos. Essa situação política, estatística e temporal, juntamente com o esclarecimento do estatuto jurídico de uma Portaria, é importante, pois evita depositarmos grandes expectativas nessa Portaria. No entanto, apesar de essa Minuta não ser a solução para os problemas envolvendo terra indígena no Brasil, esse documento jurídico pode ser importante em dois aspectos:

1 – Tornar definitivamente sem efeito a Portaria 303 da AGU, como já comentamos acima;

2 – Avançar no tema da participação das comunidades indígenas afetadas no processo de demarcação.

Quando eu digo que essa Portaria “pode” ser um instrumento importante, quero deixar claro que o uso que se vai fazer dessa Portaria pode ser tanto no sentido de criar obstáculos ao processo de demarcação (como pontuou o Marcio Santilli em importante análise publicada aqui), como no sentido de ampliar a participação indígena nesse processo. Tudo dependerá do sentido político que será atribuído às regras contidas nessa Portaria.

A Portaria garante a participação das comunidades indígenas em algumas fases do processo de demarcação, o que pode ser considerado um marco para a aplicação do referido princípio da vedação do retrocesso. Em outros termos, uma vez garantida a participação das comunidades indígenas, nenhuma Portaria posterior poderia restringir essa participação. No entanto, apesar disso, precisamos refletir a respeito de como essa participação das comunidades será garantida, e é este o ponto principal da nossa análise.

Inicialmente vale uma crítica à limitação do artigo 9°, que não prevê a presença de indígenas no grupo técnico para a elaboração de estudos de identificação e delimitação da terra indígena. A presença de indígenas nesse grupo técnico é fundamental para que a própria metodologia dos estudos de identificação e delimitação seja negociada e não imposta.

O artigo 10, parágrafo 2°, garante que as comunidades indígenas envolvidas indicarão representantes para participarem do procedimento administrativo, segundo suas formas próprias de representação, respeitando o § 3o, do art. 2o, do Decreto no 1.775/96, e os artigos 6° e 7°[1] do Decreto no 5.051/04, que promulgou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Não obstante esse avanço, consideramos relevante a participação permanente de um indígena no grupo técnico, bem como a submissão da metodologia dos estudos à discussão com a comunidade indígena envolvida.

O artigo 15 diz que as regras de funcionamento do grupo técnico, com o cronograma das reuniões e atividades de campo, devem ser informadas previamente à comunidade indígena envolvida. Essa previsão também é muito importante, mas, do mesmo modo, não garante a participação da comunidade indígena na definição dessas regras, fato extremamente importante, pois todas as negociações posteriores serão determinadas e pautadas por essas regras. Em outros termos, se a proposta é garantir a aplicação dos artigos 6° e 7° da Convenção 169 da OIT, as próprias regras de funcionamento do grupo técnico e a metodologia dos estudos de delimitação e demarcação devem ser submetidas a uma consulta prévia, informada e dialógica com as comunidades indígenas.

Se o artigo 6° da Convenção 169 diz que a consulta prévia e informada com o objetivo de se alcançar o consenso deverá ocorrer cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente as comunidades envolvidas, então as regras e as metodologias devem ser submetidas a essa consulta.

Outro tópico interessante da Portaria é a previsão de mediação de conflitos. O artigo 17, parágrafo 3°, diz que constatados conflitos de interesses que possam prejudicar a regular tramitação do processo de demarcação ou a garantia dos direitos das comunidades indígenas envolvidas e dos demais interessados na área proposta para delimitação, a Presidência da Funai poderá encaminhar o processo administrativo ao Ministério da Justiça, solicitando a instauração de procedimento de mediação pela Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos, da Assessoria Especial para Questões Indígenas, do Gabinete do Ministro da Justiça.

Se essa mediação ocorrer respeitando os parâmetros ditados pelos artigos 6° e 7° da Convenção 169 da OIT, poderemos ter um instrumento relevante de solução de conflitos e de redução do índice de assassinato de indígenas no Brasil. No entanto, é importante frisar, a Convenção 169 da OIT propõe o diálogo e não a barganha mediada pela bala ou pelo poder econômico, como tem ocorrido nas consultas pelo Brasil afora.

Ainda vale citar o artigo 10, inciso III, “b”, da Portaria, que inclui a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República como órgão que necessariamente deverá acompanhar a demarcação. Reconhecer que a questão indígena no Brasil é um tema de direitos humanos e que não deve ficar restrito a políticas públicas raciais ou culturais, apenas, é um avanço que deve ser prestigiado. No entanto, apesar do avanço da proposta, certamente o movimento indígena deverá cobrar de maneira intransigente a atuação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República nos processos que envolvam terra indígena.

Por fim, sentimos falta de uma definição de um prazo máximo para a conclusão do processo de estudo e demarcação, pois o genocídio praticado contra os povos indígenas do Brasil tem como causa direta a ausência de demarcação de suas terras. E por falar em prazo, nunca é demais lembrar que o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias disse: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” Ou seja, as demarcações deveriam ter sido concluídas em 1993.  A fixação de um prazo claro de início e fim do processo de estudo e demarcação é fundamental para que essa Portaria não represente um retrocesso na luta indígena pela terra.

Nesse sentido, se essa Portaria for, de fato, publicada, pensamos que algumas pautas devem ser objeto de reflexão no processo de discussão desse documento legal:

1- Participação dos indígenas envolvidos no processo de demarcação i) na fixação das regras de funcionamento do grupo técnico e ii) na discussão acerca da metodologia de identificação e delimitação da terra indígena, nos termos dos artigos 6° e 7° da Convenção 169 da OIT.

2- Participação dos indígenas durante o processo de demarcação observando integralmente as regras dos artigos nos termos dos artigos 6° e 7° da Convenção 169 da OIT.

3- Regulamentação dos métodos de mediação de conflitos observando integralmente as regras dos artigos nos termos dos artigos 6° e 7° da Convenção 169 da OIT.

notas:

[1] Artigo 6o 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Artigo 7o 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. 2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria. 3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas. 4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.

*Advogado, Professor de Direito, Militante nos Direitos Humanos, Membro do GT Indígena do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus

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