Agricultura Familiar Camponesa nos Cerrados Piauienses: Desafios para a Sustentabilidade

Maria Dione Carvalho de Moraes* – Fundação Joaquim Nabuco

Introdução 
No Brasil, seguindo-se tendência mundial, ganha vigor o debate sobre agricultura familiar, como economia de diversificação, e seus papéis numa dinâmica de desenvolvimento territorial. A par disto, constroem-se novas institucionalidades, com presença de atores locais em instâncias de programação, execução, gestão financeira, etc, a exemplo dos conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável2, que visam trazer o local para o centro das atenções, associando-se a liberação de subsídios públicos à assinatura de contratos entre Estado, coletividades locais e atores sociais, com definição de regras e dispositivos de controle dos subsídios públicos destinados à agricultura, considerando-se a diversidade da realidade social, cultural e humana, e não somente a produção (MORAES, VILELA, 2003)3.

Nesse contexto, uma abordagem de populações camponesas que vivem entre o baixão e a chapada (MORAES, 2002), nos cerrados e, mais especificamente, no sudoeste piauiense, requer pensar um outro status para esta agricultura, que deve passar de segmento marginal, tido como avesso à modernização e ao desenvolvimento dos cerrados, para uma inserção no processo de desenvolvimento territorial. Certamente, no caso brasileiro, há o grande desafio de mudança do enfoque de desenvolvimento rural centrado em perspectivas setoriais e no agronegócio, para a de desenvolvimento territorial focado na agricultura familiar, como sugerem, por exemplo, ABRAMOVAY (1999) e VEIGA et allii (2001)4. 

2- Um modo de vida entre baixões e chapadas
A chamada região de cerrados do sudoeste piauiense localiza-se na Mesorregião do Sudoeste  do  Piauí, com mais de 20 municípios e 5 microrregiões (Fundação CEPRO, 1992) e cerca de 8,35 milhões de hectares. Com o oeste baiano e o sul maranhense, forma o chamado novo Nordeste dos cerrados (MORAES, 2000), uma das áreas dinâmicas (ARAÚJO, 1995) ou Pólos de Desenvolvimento Integrado (BNB, 1998) do Nordeste atual, numa verticalização territorial (MORAES, 2002) que institui, em 1999, o Pólo de Desenvolvimento Integrado Uruçuí/Gurguéia.

A incorporação produtiva dos cerrados piauienses pelo agronegócio do complexo carnes/grãos, iniciada na segunda metade dos anos 80, promove desde então, uma aceleração das transformações da base técnica da agricultura e importantes transformações econômicas, sociais e ambientais nessa região, trazendo à tona a questão da sustentabilidade do desenvolvimento e, nesse contexto, da sustentabilidade da agricultura camponesa local formada por famílias com história de ocupação antiga na região5 , uma população de pequenos proprietários ou posseiros, que dificilmente atingem o limite máximo dos quatro módulos fiscais, definidos como limite de área para a agricultura familiar, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Os dados abaixo contribuem para se ter uma idéia desse contingente, na região, a partir do número de estabelecimentos:

Tabela 1 – Estabelecimento por grupo de área Mesorregião

Mesorregião Menos de 10 a-
10ha
de100 a-
100ha
de total
200ha
Sudoeste
Piauiense
19.750 15.267 3.056 1.757 39.830

Fonte: IBGE, Censo Agropecuário 95/96, Piauí, Tabela 4- Estabelecimento por grupo de área total, segundo microrregiões, mesorregiões e municípios.

A análise da trajetória social dessas populações revela pessoas de origem rural/agrícola, que se identificam como agricultor(a)  ou lavrador(a), expressando, em sua maioria,  visão positiva da vida que levam, atualmente, se comparada à dos próprios pais, e expectativas também positivas em termos de possibilidade de melhorar a sua própria situação, na atividade agrícola, seja se especializando ou diversificando a produção. Para estas populações, as contribuições da agricultura para a família e a comunidade estão associadas à sobrevivência, manutenção da família, ser fonte de trabalho e garantia de emprego,  produção de alimentos para pessoas  e animais, ocupação dos mais jovens,  manutenção da vida.

Isto de fato põe em relevo uma dimensão positiva da construção da identidade social desses(as) agricultores(as), embora se observe, também, certo abandono da atividade agrícola, para tentar outras atividades, e mais de 50%  temam que filhos  e  filhas venham a ser agricultores(as), a menos que as condições sejam melhores que as atuais, ou seja,  ao  lado da referida positividade, revela-se também uma visão realista da condição de precariedade social em que vivem e de liminaridade no processo de incorporação das  chapadas, na região.

Essas famílias camponesas assentam-se nas terras dos baixões, cuja maior utilização agrícola se dá nas áreas de vazante, numa agricultura de sequeiro bastante dependente das chuvas. A maioria possui menos de 1 módulo fiscal da região (que corresponde a 75 hectares), para a prática de agricultura de aprovisionamento (MORAES, 2000), associada ao extrativismo, cujas principais atividades produtivas são as culturas de milho, feijão e mandioca, com processamento regular da matéria-prima, cujos principais produtos são: farinha de mandioca, tapioca, azeite (de coco babaçu e de pequi), doces, raspas e doce de buriti e carvão, sem  que se verifique inspeção ou registro dos produtos comercializados nem adoção de alguma conduta técnica particular visando qualidade diferenciada. De fato, parte significativa da produção agrícola destina-se a um mercado informal no qual estrutura de armazenagem, certificação, registros e etc. inexistem.

O uso intensivo das terras é, em grande medida, determinado pela escassez, sem adoção sistemática de práticas tecnológicas visando à reposição dos nutrientes dos solos a cada plantio, o que leva ao progressivo esgotamento edáfico. Com seu modo de vida centrado no cultivo da terra esses(as) pequenos(as) proprietário(as) e posseiros(as) tomam decisões relativamente autônomas nesse processo tradicionalmente realizado pelo sistema de roça de toco (MORAES, 2000) ou swidden (WOLF, 1976), em um máximo de três hectares anuais. Esse ecótipo próximo de um tipo paleotécnico vem, nos últimos anos, sofrendo certas atualizações tecnológicas tais como uso do trator, no preparo do solo nos baixões, e retorno à chapada, na tentativa de inclusão no negócio do cerrado (MORAES, 2001).

O uso de tecnologias agropecuárias científicas é incipiente. As sementes, por exemplo, são próprias, sem qualquer tipo de melhoramento genético, e as práticas de rotação e consórcio de culturas buscam muito mais o aproveitamento das superfícies de área útil do que o incremento de produtividade. Cerca de 90% dessas famílias agricultoras não utilizam adubo verde, sementes certificadas e sequer, esterco. Na falta de orientação técnica oficial, da EMATER, essas populações seguem basicamente, a tradição familiar, amigos e vizinhos.

Esses povos dos cerrados inserem-se em um mercado de fatores e produtos restritos (Ellis, 1988) e se apegam a esquemas tradicionais de garantia de acesso à terra e ao trabalho de parentes e vizinhos, em geral, visando o objetivo máximo de aprovisionamento e posição social num círculo restrito de relações sociais, num modus vivendi cuja compreensão é irredutível à dimensão econômica. A indisponibilidade de capital financeiro dos estabelecimentos e a capacidade de investimentos é mínima, sendo bastante tímida a relação com o sistema oficial de crédito. Dentre as estratégias de sobrevivência, a produção para o auto-consumo apresenta, assim, significativa importância.

A maior parte das famílias sobrevive com um ganho mensal oriundo das atividades de produção, consumo e comercialização dos produtos vegetais, animais e extrativos e da combinação estratégica entre produção e comercialização dos produtos, prestação de serviços e transferências governamentais. Mas as principais fontes de receita monetária ainda se originam da atividade agropecuária que, apesar dos entraves característicos da condição social desse campesinato empobrecido, ainda tem importância na sua reprodução social. A composição dessa renda aponta para o ciclo biológico familiar, de modo a considerar a somatória dos esforços de membros idosos, que participam com as transferências governamentais, e dos mais jovens, com a força-de-trabalho. Entre estes últimos é significativo o índice de migração para grandes centros e para a sede do município, em busca de estudo e trabalho, em que pese, por parte da geração adulta, a defesa de sua permanência6.

No tema da segurança alimentar, o risco da falta de alimentos para o consumo da família circunscreve-se por intempéries (secas e enchentes) e as decorrentes situações de pouca produção, além da falta de outras atividades complementares. Quanto a hábitos alimentares, a dieta básica é farta em carboidratos (feijão, arroz, farinha de mandioca, macarrão, óleo) e pobre em vitaminas e proteínas. Em que pesem estes fatores, estas populações expressam consciência da função social da atividade que desempenham, em termos de produção de alimentos e da própria contribuição para que a sociedade não tenha falta de alimentos de boa qualidade e saudáveis.

No nível territorial mais amplo, as famílias, em sua participação na vida da comunidade e do município ligam-se, principalmente, a entidades nos campos da atividade produtiva e religiosa, como associação comunitária de produtores, sindicato dos trabalhadores rurais, associação de igrejas e cooperativas. No âmbito de participação mais geral, para questões mais ampliadas, têm representantes em conselhos municipais, partidos políticos, associações de pais e mestres e em associações de mulheres e jovens.

Na relação com novos agricultores, destacam-se os gaúchos que aportam na região como produtores de grãos (arroz/soja) nas chapadas, prestadores de serviços, comerciantes, etc., em vários pontos da cadeia produtiva do complexo carnes/grãos. Localmente, os gaúchos, são tidos, por um lado, como novos investidores que trazem dinamismo à região e, por outro, como pessoas que prejudicam as populações locais em sua relação com a terra e promovem danos ambientais, além de plantarem para vender pra fora.

No que tange à relação campo/cidade, há uma complementaridade de funções por ambos os espaços na vida das populações investigadas: o campo é relacionado à vida tranqüila, ao local de trabalho, à vida mais fácil, entre amigos e familiares e, a cidade é tida como espaço para resolver questões relativas aos serviços básicos (saúde, educação, compras, diversão, etc.). Mas, embora freqüentando-se regularmente a cidade mais próxima (sede do município), o ponto central de convivência é a comunidade, o que aponta para uma sociabilidade comunitária na base do tecido social  local.

2.1- Saberes e práticas agropecuárias/extrativistas camponesas nos cerrados  
Nos últimos 30 anos7, essas famílias camponesas vêm sofrendo, paulatinamente, grande restrição do uso do espaço, no qual tradicionalmente operavam, devido à expansão da agricultura intensiva nas chapadas, que implicou severa imposição de limites quanto ao acesso aos elementos materiais e relacionais necessários à sua reprodução social. Por outro lado, nos últimos sete anos, vêm lutando para se inserirem no negócio do cerrado (Moraes, 2001), através do cultivo de arroz de sequeiro, na chapada, atividade levada a cabo, em grupo, para atingir escala, em áreas arrendadas dos grandes proprietários, amansando a terra para o cultivo de soja. Trata-se de um profunda crise ecológica (Wolf, 1984) dessas populações, uma importante questão relativa à sustentabilidade dessa agricultura que se vincula, diretamente, à sua territorialidade e  possibilidades de reprodução social e  reconversões produtivas.

De fato, a apropriação da terra, o volume de capital, e o nível de inovação e de padronização tecnológica exigidos pelas novas formas de organização dos processos produtivos no âmbito do moderno agribusiness, estão além do poder desses sujeitos sociais que, no entanto, tentam furar o cerco da exclusão organizando-se em cooperativas e sindicatos, lutando por terra, direitos e pela inserção no negócio do cerrado, o que aponta para a necessidade de políticas e programas que tenham por base a própria experiência dessas famílias cultivadoras no ambiente dos cerrados, o seu saber ambiental (Moraes, 2000), produzindo sinergias capazes de promover dinâmicas territoriais de desenvolvimento que incorporem as diversas funções sociais dessa agricultura.

Passo importante nessa tarefa é o conhecimento da lógica operacional dessas famílias, baseada na apropriação das diversas possibilidades naturais transformadas em recursos. A conjugação tradicional de sistemas de posse e propriedade familiar nos baixões com o uso comum das chapadas, tidas por essas famílias, até os anos 70, como terra voluntária (MORAES, 1999, 2000), funda-se numa economia moral (SCOTT, 1976, THOMPSON, 1984) que relaciona meios e fins num complexo sistema, numa racionalidade – divergente da dos grandes projetos de agricultura intensiva – em cujo âmbito, chapadas, buritizais e babaçuais são, tradicionalmente, áreas consideradas de usufruto comum, integrando o cálculo econômico camponês. Situação que vem sendo, gradativamente, subvertida pelos novos agentes sociais guiados por uma lógica econômica baseada na apropriação privada e no uso intensivo de grandes áreas contínuas para a monocultura, no âmbito da produção de commodities.

O baixão corresponde às terras baixas, com solos mais ricos e úmidos que os da chapada, devido à presença de rios, riachos, lagoas e brejos, sendo o local de assentamento, morada e cultivo dos legumes (arroz, feijão, fava, mandioca e milho, que atinge, anualmente, no máximo, dez tarefas), verduras e frutas e pastos. Ali, encontram-se, também, áreas de mata, com madeiras nobres, e dois tipos de terreno extremamente importantes para essa agricultura camponesa: vazantes e brejos. Nestes, florescem os buritizais e, nas imediações, os babaçuais, cujo extrativismo é fundamental nessa economia agrícola (MORAES, 2000).

O sistema de cultivo da roça de toco, no que concerne à dependência das condições meteorológicas, funciona, aí, semelhantemente ao das populações camponesas da Zona da Mata e do semi-árido nordestinos, sendo que a relação inverno/verão diferencia-se da Zona da Mata quanto às épocas do ano, e do Semi-Árido quanto ao volume e maior regularidade de chuvas anuais, embora os cerrados piauienses sejam sujeitos a veranicos, o que, volta  e meia, prejudica a safra dos legumes e a formação de pastos naturais e cultivados (MORAES, 2000).

A extensão das áreas cultivadas depende, a cada ano, da disponibilidade de braços  para o trabalho, em função da quantidade requerida da produção. A mão-de-obra é buscada, primeiro, na família – (a)responsável pelo estabelecimento, seu (sua) cônjuge e os filhos –  que  utiliza, ainda,  do sistema de troca de dias de serviço entre membros da família ampliada e vizinhos. O cultivo dos legumes associa-se, estreitamente, ao extrativismo vegetal de espécies como pequi, buriti, babaçu, piaçaba ou caroço só.  Do pequi e do babaçu,  além de seu consumo in natura, extrai-se o óleo ou azeite para alimentação humana, sendo esta, em regra, a fonte da gordura utilizada (principalmente a do babaçu) no preparo dos alimentos. Todas estas espécies são encontradas, em abundância, nos baixões e, no caso do pequi, também nas chapadas. Embora a maior parte dos esforços familiares concentre-se na produção do legume há, em menor escala e sem uma regularidade nos ciclos anuais sucessivos, outros produtos como algodão, frutas (laranja, limão, tangerina, banana, abacaxi, goiaba, abacate, caju), verduras (coentro, cebolinha, tomate, pimentão, cebola, alho), cultivados nos quintais, havendo alguns desses pomares visando ao comércio.

Esse é o sentido, também, da miúnça (suínos, ovinos e caprinos) e da criação (galinhas, galinhas d´angola ou cocá), sendo que nos últimos anos a miúnça diminuiu muito, devido à restrição ao uso das chapadas e à exigência de criar os animais presos, ao contrário de quando eram criados soltos entre o baixão e a chapada. É ainda no baixão que se realiza o trabalho de formação de pasto, com o cultivo de forrageiras, em áreas cercadas, em torno de um a dois hectares, no máximo. De fato, os rebanhos de gado vacum atingem poucas cabeças e envolvem vários proprietários da mesma família (Moraes, 2000). Além de abrigar as moradas dispersas, no baixão se encontram pequenos núcleos comunitários nos quais se localizam  a capela, o grupo escolar, posto de saúde (onde existe), algum estabelecimento comercial e poucas casas. São locais de reuniões para fins diversos, de celebração religiosa e festiva, como, por exemplo, as festas dos santos padroeiros, realizadas nos meses seguintes às colheitas, a maioria delas, entre junho e agosto. O baixão descortina-se, portanto, como um locus de sociabilidade das famílias camponesas (MORAES, 2000), calcada, sobretudo, em relações de parentesco biológico e ritual e vizinhança.

Quanto às chapadas, ao contrário do que afirmam as falas-mestras de sua incorporação pelo agronegócio, elas sempre compuseram o cálculo econômico das famílias camponesas pelo extrativismo de madeira – para construções e fabrico de móveis – , de frutos e plantas – para alimentação humana e animal –, ou, ainda, de ervas terapêuticas, bem como pela caça, pela criação do gado e caprinos na solta e, até mesmo, por alguma agricultura de sequeiro – pequenas roças de mandioca e feijão – nos tabuleiros ou ourelos do baixão  (MORAES, 2000).

Embora, do ponto de vista agronômico, os solos da chapada só passassem a ser considerados propícios à  prática da agricultura com as tecnologias geradas pela Revolução Verde, nos anos 70, a reprodução camponesa nos cerrados passa, essencialmente, pela articulação entre baixões e chapadas: se o baixão é o lugar do assentamento, da posse, da propriedade, da morada, da sociabilidade entre parentes e vizinhos, das comunidades, a chapada é o mundo a perder de vista, terra de ninguém e, portanto, de todos. Era, no sistema antigo, o lugar do uso em comum da terra voluntária, sem cercamento (Moraes, 2000).

Essa chapada possui uma pastagem natural chamada, localmente, de capim agresto que alimenta o gado no inverno e em boa parte do verão, e que implica um manejo anual feito à base de queimadas. Oferece, ainda, como ração animal, a faveira, especificidade dos cerrados piauienses, não encontrada nos cerrados do Brasil Central, e enorme variedade de outras espécies vegetais alimentares, terapêuticas, fornecedoras de madeiras com outras utilidades como lenha, curtição de peles ou fabricação caseira de sabão. É também enorme a variedade de espécies animais, cuja carne é bastante apreciada para o consumo8. Esse não é, portanto, um vazio ou um espaço desvalorizado pelas famílias camponesas que, de fato, vivem entre o baixão e a chapada, num modo de vida que sofre, atualmente, severas limitações.

3- Conclusão: desafios para a sustentabilidade da agricultura camponesa nos cerrados
A relação entre agricultura familiar e sustentabilidade supõe um modelo de desenvolvimento que contemple a reordenação das formas de produção e de organização social, com vistas a aspectos relativos à fertilidade do solo (manutenção e aumento), à preservação de outros recursos naturais e ao respeito aos valores culturais, uso de sistemas não-convencionas de produção e  diversificação de atividades dessa agricultura. A objetivação desse modelo deve incorporar a consagração de espaços públicos, visando à elaboração de vida social, mais adequados à condição de existência e orientados não apenas pelo produtivismo ou por um tecnicismo hegemônico (NEVES, 2001). Nesse sentido, o savoir-faire das populações camponesas precisa, do ponto de vista externo (pesquisadores, governos, etc.) ascender, sem reificação, ao status de um saber integrado à sobrevivência humana naquele ambiente, em seus limites e possibilidades.

De fato, a sustentabilidade dessa agricultura corresponde à reprodução ampla das diversas unidades de produção (família, terras e patrimônio), garantindo a integração econômica, social e cultural das novas gerações e a manutenção dos agroecossistemas, contemplando quatro dimensões: viabilidade econômica, viabilidade social ou vivabilidade, transmissibilidade do patrimônio e reprodutibilidade ambiental ou agro-ecológica dos ecossistemas cultivados. Nessas dimensões, há uma interdependência de domínios (econômico, social, cultural, político) que, correntemente, são autonomizados de forma artificial quando, de fato, tratar da viabilidade da produção familiar requer compreensão tanto das instituições econômicas quanto das não-econômicas presentes na vida social de grupos que operam sob múltiplas referências (SABOURIN e DUQUE, [20–]).

A viabilidade econômica refere à constituição da renda da família, formada pelo conjunto das atividades agrícolas e não-agrícolas, incluindo-se transferências, encargos públicos e produção para auto-consumo. Liga-se diretamente à estabilização dos sistemas de produção, que dependem tanto dos seus resultados técnico-econômicos como, também, da sua autonomia, da sua capacidade de resistência às variações do clima (resiliência) e, ainda, da natureza das relações contratuais com clientes e fornecedores.

Operacionalmente, têm a ver com essa dimensão aspectos como: acúmulo suficiente de recursos num ano bom, para as possíveis dificuldades num ano ruim; capacidade de manutenção do patrimônio (sem sofrer perdas irreparáveis); manutenção da capacidade produtiva; manutenção das condições de vida digna da família, com os resultados obtidos pela produção agropecuária e atividades complementares, afins, como extração vegetal, artesanato, indústria rural, etc. (sem excluir a pluriatividade), que, como se sabe, contribuem para a atividade agrícola. De fato, não podem ser consideradas viáveis aquelas unidades que, apesar de resistirem ao tempo, sobrevivam em condições de completa miserabilidade.

Por seu turno, a viabilidade social ou vivabilidade refere a integração das famílias agricultoras no tecido social agropecuário e rural, apontando para o tema da densidade desse ambiente, o que significa que a capacidade das famílias camponesas de dominarem o funcionamento do sistema e de assumirem riscos remete à capacidade de apoio da rede social, na qual estão integradas. Esta dimensão supõe considerar não apenas o aspecto restrito da reprodução do patrimônio e da força de trabalho mas, também, outras escalas além da unidade de produção, tanto a dimensão do espaço local quanto a do ambiente institucional externo, com os equipamentos sociais (escolas, clubes, igrejas, postos de saúde, energia, estradas, etc.) e os novos atores do desenvolvimento rural9, numa perspectiva ampliada do local que, assim, ganha  dimensão territorial. Há que se registrar, ainda, a capacidade de diminuição do aspecto exageradamente cansativo ou desgastante do trabalho, ponto extremamente importante, por exemplo, para gerações mais jovens.

Nesse âmbito, e diretamente ligada ao tema intergeracional, emerge ainda a questão da transmissibilidade como dimensão relativa aos ativos materiais (transmissão do patrimônio) e imateriais (cultura, tradições, saberes) e, ainda, com o status das atividades de agricultor na sociedade local, o que aponta para o tema das identidades sociais10.

Já a reprodutibilidade agro-ecológica reporta ao uso adequado dos recursos naturais (água em quantidade e qualidade, fertilidade dos solos, preservação das áreas de brejos, de chapadas, etc.), constituindo um critério de base no manejo dos sistemas de produção que passam, às vezes, por importantes problemas de degradação (erosão, secagem dos brejos, exaustão dos solos, queimadas, etc). De fato, se o tema da sustentabilidade implica duração no tempo, ele remete à própria relação dos grupos humanos com o ambiente natural.

Com base nessas dimensões, põe-se o desafio de se conhecer melhor o saber-fazer entre baixões e chapadas, definindo-se políticas voltadas para a integração das populações camponesas em redes de qualidade, nichos de mercado, atividades de agregação de valor (industrialização de produtos extrativos, criação de animais silvestres em cativeiro, etc.), agroturismo, manutenção ou a criação de empregos, controle da erosão, manutenção das áreas de brejos, tratamento das águas utilizadas nas unidades de produção e de transformação, valorização das áreas com pastagens, manutenção da biodiversidade, convivência com a seca, sistemas agroflorestais11, etc., de modo que as atividades estejam conciliadas com a manutenção dos agroecossistemas. À proteção aos baixões com seus brejos, vazantes, buritizais e babaçuais, deve-se associar a fiscalização ambiental rigorosa dos projetos agrícolas nas chapadas, através de mecanismos de ecocondicionalidade.

A reprodução social das famílias camponesas nos cerrados, portanto, precisa ser compreendida em termos de sua reprodução em sentido amplo, inclusive de modo que fique evidenciado como se dá a relação estabelecida por elas entre território, família, terra, patrimônio e estratégias de sobrevivência, e até mesmo a instalação das novas gerações.
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[Notas]

[1]Socióloga, M Sc. em Sociologia pela UFPB, PhD em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP.

2 A Constituição Federal de 1988 demarcou novos espaços institucionais de participação da sociedade  civil, embora de fato, esta participação ativa  nos conselhos diversos  ainda deixe a desejar.

3 Podem ser pensadas por esta ótica: Plano Safra 2003-2004 – disponibiliza instrumentos diferenciados, por regiões; Lei 10.696, de junho de 2003 –  permite renegociação das dívidas dos agricultores familiares e inclui dispositivo de perdão de até 90% do saldo devedor dos assentados de reforma agrária, no semi-árido nordestino; o instrumento Garantia Safra – indeniza perdas da produção agrícola por intempéries climáticas;  Programa Conviver – define políticas específicas e diferenciadas para a agricultura familiar, ambos, no semi-árido  nordestino.

4 Que no Piauí, ganha fôlego, atualmente, como política de governo. Nos cerrados, 11 municípios constituem, a partir de outubro de 2003, um dos territórios visando, em princípio, aplicação dos recursos do Pronaf infraestrutura.

5 Uma tipologia atual da agricultura familiar nos cerrados piauienses contemplaria agricultores(as) com  história de ocupação antiga na região, nos baixões, e aqueles(as) recém-chegado(a)s, o(a)s chamado(a)s gaúcho(a)s, colono(as)s que se instalam nas chapadas, em geral através de projetos de colonização privada.

6 Diagnóstico da CPT, sobre trabalhadores migrantes no Piauí,  incluindo municípios dos cerrados, indica que 65,6% dos trabalhadores migrantes encontram-se na faixa dos 18 aos 35 anos, sendo 93%  homens (CPT, 2003).

7 Embora os gaúchos tenham começado a se estabelecer com monoculturas de soja e arroz a partir da segunda metade dos anos 80, a incorporação das chapadas, na região,  se inicia na segunda metade dos anos 70, pelos projeteiros,  com reflorestamentos de castanha de caju, manga e projetos de pecuária. Sobre gaúchos e projeteiros, e sobre a incorporação dos cerrados no Brasil, no Nordeste e no Piauí, ver MORAES (2000).

8 Para detalhes, inclusive quanto à denominação científica das diversas espécies animais e vegetais, ver Moraes, (2000), especialmente o capítulo V.

9 Compostos por órgãos administrativos públicos locais e microrregionais (prefeituras municipais e suas diversas secretarias, conselhos de desenvolvimento rural (CMDR), consórcios de municípios) e formados por entidades privadas de interesse coletivo ou comunitário (organizações de produtores (associações, sindicatos), entidades civis (ONG`s, fóruns de desenvolvimento, cooperativas de técnicos), assegurando funções antes assumidas por órgãos federais. As transformações da agricultura familiar ligam-se estreitamente às mudanças organizacionais, não apenas proporcionadas por agricultores, como também pelo ambiente institucional,  local ou regional (Sabourin, 2001).

10 A propósito do tema da problemática de transmissibilidade de saberes, vale a pena conferir Moura (2003).

11 A respeito de sistemas agroflorestais em regiões de cerrados, a Rede Cerrados de Ong´s vem  desenvolvendo  pesquisa  na qual, recentemente, foi incluído o Piauí.

[Bibliografia]

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*Professora do CCHL/DCS, do CCA/DPPA e dos Programas de Mestrado em Políticas Públicas/CCHL/UFPI e Desenvolvimento e Meio Ambiente – PRODEMA /TROPEN da Universidade Federal do Piauí – UFPI Membro do Conselho Editorial do OBSERVANORDESTE.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Mayron Borges.

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