“Estão nascendo novos Marçals”, por Ruy Sposati

Marçal de Souza, líder indígena guarani
Marçal de Souza, líder indígena guarani

Ruy Sposati, de Antônio João (MS), no Cimi

Essa história aconteceu trinta anos atrás – mas poderia ter acontecido hoje.

Era uma emboscada na porta de sua casa, no dia 25 de novembro de 1983. Um índio foi assassinado por pistoleiros com cinco tiros, um na boca.

Seu nome de registro: Marçal de Souza. O nome Guarani Ñandeva: Tupã’i. Pequeno deus.

Você pode conhecer o rosto franzino e desdentado deste homem no youtube, em seu discurso ao Papa em 1980, ou no documentário Terra de Índios, de Zelito Viana, de 1977.

Marçal era um indígena do Mato Grosso do Sul. Nasceu em 1920 para ser expulso e confinado na reserva Te’ýikue, em Caarapó, em função dos trabalhos de colheita de erva-mate. As empresas de mate chamavam “reservas indígenas” de “acampamentos de trabalho”.

Mas o Pequeno deus, órfão, toma um rumo atípico. Ao 8 anos, vai parar em Dourados, num orfanato da Missão Caiuá. Aos 12, muda-se para Campo Grande com um casal de missionários evangélicos. Lá, conhece um oficial do Exército que o leva para Recife, onde trabalha em troca de comida, roupa e estudo. Volta a Dourados e dá aulas para crianças órfãs como ele. Também se torna intérprete de Guarani.

Em 1959, forma-se atendente de enfermagem, profissão que exerceria até a morte, através de curso na Organização Mundial de Saúde (OMS). A partir dos anos 70, com a ebulição do movimento político indígena nacional, passa a despontar como liderança dos povos Guarani, denunciando a expropriação das terras indígenas, a exploração ilegal de madeira, a escravização de índios e o tráfico de meninas indigenas.

Perseguido, é expulso de Dourados em 1978 pela Funai e volta a morar na reserva Te’ýikue, onde havia morado dos 3 aos 8 anos. Ainda em 78, Marçal é mais uma vez transferido pela Funai, e passa a viver na aldeia de Mbarakaju, em Antonio João, fronteira do estado com o Paraguai.

Em 1980, é escolhido representante dos povos indígenas do Brasil para discursar ao papa João Paulo II durante sua primeira visita ao Brasil, em Manaus. Marçal fez uma fala histórica, que repercurtiria em todo o mundo: “Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história”.

No mesmo ano, Marçal se engaja junto de 30 famílias na luta pela demarcação da terra indígena de Pirakuá, no município de Bela Vista, vizinho a Antônio João. Pirakuá é lembrada como a primeira de um sem-número de retomadas que os Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá realizariam a partir de então.

A demarcação da terra é contestada pelo fazendeiro Astúrio Monteiro de Lima e seu filho Líbero Monteiro. Naqueles dias, Marçal, com 63 anos, sabia que ia morrer. Teria dito, pouco antes de sua morte: “sou uma pessoa marcada para morrer, mas por uma causa justa a gente morre”.

Após diversas ameaças e agressões, em 1983, Tupã’i é assassinado a tiros no rancho de sua casa, na aldeia Campestre, em uma emboscada noturna.

O  fazendeiro Líbero Monteiro de Souza, apontado como mandante do crime, executado por Romulo Gamarra, foi inocentado no julgamento realizado dez anos depois pela Justiça Federal de Ponta Porã. Líbero faleceu no início dos anos 2000. No dia 2 de setembro de 2002, o Juiz Federal José Denílson Branco, da 2ª Subseção Judiciária da 1ª Vara Criminal de Dourados extinguiu o processo 2001.60.02.001890-6, o chamado Caso Marçal. Ninguém foi punido.

“Não queremos emancipação, nem integração. Queremos o nosso direito de viver. Jamais o branco compreenderá o Índio. Queremos ser um povo livre como antigamente. O índio está cercado, amordaçado por uma democracia que não funciona. Por isso nós vamos a campo”, disse Marçal certa vez.

A terra indígena Pirakuá foi homologada. O movimento indígena Guarani e Kaiowá se consolidou, surgindo o Aty Guasu, a grande assembleia Guarani e Kaiowá. Dezenas de retomadas de terras foram reailzadas. Depois de Marçal, mais de duas centenas de indígenas morreram na luta por terem de volta uma parte de seus territórios originários.

Homenagem

No último dia 25, os Guarani e Kaiowá realizaram uma caminhada da Aldeia Ñanderu Marangatu até a Aldeia Campestre, onde foi assassinado Tupã’i, e onde estão enterrados seus ossos.

O ato simbólico fez parte do encontro realizado entre os dias 22 e 25 de novembro, marcando os 30 anos da morte da liderança indígena. Com o tema “Sem Tekoha não há Teko. Sem Tekoha não há escola indígena”, o evento reuniu cerca de 300 indígenas, entre professores, educadores, rezadores e lideranças, na Aldeia Takuapery, no município de Coronel Sapucaia, também na fronteira com o Paraguai. Um manifesto foi redigido e entregue ao Ministério Público Federal, em Ponta Porã.

“Marçal era conhecido como o homem dos lábios de mel. Suas palavras eram sempre de sabedoria.  Elas buscavam a Justiça. E a resposta dos fazendeiros a isso foi dar um tiro na boca dele”, relembrou o missionário Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) durante a cerimônia.

“Nós vivemos em um país em que os poderes públicos tem laços não com a Justiça, com a dignidade nem com a cidadania. Eles tem laços com o dinheiro, com o lucro, com a propriedade privada”, afirmou Roberto. “A estrutura da nossa sociedade é perversa. E vocês são areia nessa engrenagem. Pouco a pouco, com a paciência, com a sabedoria, vocês compartilham novos ensinamentos para que tenhamos uma sociedade mais justa”.

E a batalha de Marçal, cravada na luta pela vida dos povos indígenas, ecoa até hoje entre os Guarani. Concluindo o encontro, o cacique Jorge, da aldeia Pirakuá – cuja homologação, em 1992, foi fruto da coragem do Pequeno deus -, emocionou a todos, falando em Guarani e depois em português:

“Deram um tiro na boca do Marçal pra calar… Mas felizmente o Marçal já vinha fazendo lavoura. Já vinha plantando semente. E a semente, [são] essas pessoas aqui, esses alunos, sábios, construindo novas lideranças. [Estão] nascendo novos Marçals. Os novos, ele já plantou. Fez uma lavoura e plantou semente e nasceu novas lideranças pra continuar lutando.

Os não-índio falaram: ‘mata o Marçal e nós vamo ter resultado, nós vamo ganhar’. Se matá resorvesse… Não adianta. Hoje, bala não adianta mais. Matando [lideranças indígenas] não vai resorvê. Não adianta retirá o índio das terras dele; vai voltar de novo. Não adianta: a polícia faz barreira la na estrada, mas o índio passa lá no mato. Vai rezando, vai quebrando.

Por que que hoje tá vindo vulcão?, tá vindo aquele terremoto, tá vindo água?, [por que] tá vindo aquelas pedras que tá acabando meio mundo pra lá? Quem tem poder? Quem que vai segurar isso aí? Eu tenho certeza que o juiz vai pegar a gravata dele, o terno dele, e não vai segurar, se não for o ñanderu [pajé Guarani e Kaiowá] pra segurar.

Os não-índio estão vivendo – pode ponhá na cabeça e gravar – porque existe o índio ainda.

[Alguém vai dizer assim]: ‘vamos matar tudo os índios’. Aí [nesse dia] não vai ser índio nem não-índio, não vai viver mais [ninguém] aqui na terra. Porque o índio ainda conversa com Ñanderu Asu lá em cima. Aí eu torno a dizer que matar não resolve”.

Veja as fotos da caminhada indígena em memória aos 30 anos da morte de Marçal

Ouça o discurso do cacique Jorge sobre Marçal

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