A realidade por trás do “conflito entre pequenos” na Terra Indígena Rio dos Índios

Rio dos indios_protestoCimi-Sul e Gapin

Em um Brasil de riquíssima diversidade cultural e de povos, uma das ações mais características dos setores dominantes historicamente privilegiados é a de oprimir quem resiste ao atual modelo hegemônico de desenvolvimento, extremamente excludente.

No Mato Grosso do Sul, estado mais violento em relação aos povos indígenas, por exemplo, ruralistas se juntam a políticos e demais setores anti indígenas de todo país e ameaçam, a partir do dia 30 de novembro, aumentar radicalmente a ofensiva contra os povos indígenas. Chegando a anunciar publicamente a realização de um leilão para arrecadar recursos financeiros com o objetivo de atingir este fim.

Enquanto os ruralistas e as elites locais praticam, sem restrições, em todo o país sua nefasta política anti indígena, a grande mídia, como já era de se esperar, exibe em horário nobre e sempre em tons de preocupação exatamente o oposto. Como em um filme de bang-bang, o que se vê são indígenas violentos, travando guerrilhas desleais, tomando propriedades, acabando com lavouras e as mais variadas produções, bloqueando rodovias e espalhando um clima de terror nas cidades e vilarejos rurais.

No Rio Grande do Sul, em especial, este malabarismo tático por parte da mídia é revestido com um trunfo capaz de gerar grande comoção na população acabando por mascarar da melhor forma os interesses das elites. Esse trunfo consiste no falso conflito anunciado entre indígenas e os pequenos agricultores, sempre pela ótica dos danos causados a este segundo grupo. No entanto, além de distorcer os fatos e não mostrar o “lado” dos indígenas, a mídia – intencionalmente – não contextualiza os acontecimentos, não possibilitando ao espectador/leitor/ouvinte compreender as reais causas dos conflitos.

Legislando em causa própria

No pequeno município de Vicente Dutra, no interior do Rio Grande do Sul, tem sido exatamente esta a postura da mídia desde o último dia 21 de novembro, quando, impulsionados por um conflito incitado pelo segurança de um empreendimento privado, os indígenas decidiram partir para a auto demarcação de seu território ancestral. Membros do povo Kaingang – que há mais de dez anos esperam pacificamente a finalização do processo de uma área já demarcada – foram publicizados como seres violentos que, cansados de esperar a demarcação de uma terra a qual proclamam e que desapropriará inúmeras famílias de pequenos agricultores, partiram para cima dos mesmos, ocasionando um conflito covarde e desleal.

O que a mídia mascara é que o conflito instaurado em Vicente Dutra, na verdade, passa muito longe de ser uma briga “entre pequenos”. Trata-se de uma luta dos Kaingang contra a expropriação indevida de parte de seu território feita pelo ex-prefeito da cidade, Osmar José da Silva, que conta com o apoio de parceiros políticos.

Para além dos relatórios produzidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) que decretaram a aldeia de Rio dos Índios como demarcada ao povo Kaingang ainda em 2002, indícios da ocupação deste povo pela região são evidentes e inegáveis. Em artigos e produções como os registrados pela antropóloga Lígia T.L. Simoniam fica claro, inclusive, uma efetiva e forte presença dos Kaingang nesta região até meados das décadas de 1950 e 1960.

No ano de 1981, o então prefeito Osmar José da Silva sancionou e promulgou através da Lei Municipal 284/81 a doação de uma área pública de 240.329 m², que é na verdade parte da área pertencente aos indígenas, para a instalação do empreendimento denominado “Águas do Prado”. Ainda no mesmo ano, o prefeito através de outra lei municipal (310/81), alegando falhas no levantamento anterior, ampliou a mesma área doada para 253.922 m². Esta terra corresponde a quase 200 hectares dos 715 hectares que foram demarcados aos indígenas pela Funai.

O detalhe é que este empreendimento turístico, que desde então explora de maneira privada as termas e águas minerais da cidade, pertencia naquele momento ao próprio prefeito. Desta forma, o ex-prefeito de Vicente Dutra, na época em pleno exercício, utilizou-se da máquina pública para benefício próprio, e até hoje ele e sua família colhem os frutos desta expropriação sofrida pelos indígenas Kaingang. Estes documentos foram registrados pelo então secretário administrativo Clemente Laber e se encontram nos arquivos do gabinete da prefeitura municipal, que misteriosamente pegou fogo duas vezes durante a gestão de Osmar José da Silva, quando muitos documentos desapareceram entre as chamas.

Ocultar e manipular para manter renda e poder

O início dos conflitos, amplamente noticiados como o avanço dos indígenas sobre os agricultores, começou na verdade por conta de provocações do vigilante do empreendimento de Águas do Prado. Estas provocações de cunho racista e preconceituosas vêm ocorrendo há muitos anos e as investidas deste mesmo guarda sobre os indígenas já são há muito conhecidas, inclusive por moradores da cidade.

No dia posterior ao início dos conflitos uma multidão de cerca de 500 pessoas, dentre as quais uma pequena minoria composta por agricultores, dirigiu-se até a entrada da aldeia ameaçando atacar os Kaingang e expulsá-los do município. Nas fotografias registradas defensivamente pelos indígenas são facilmente reconhecidos como dirigentes do ato: o ex-prefeito e dono do empreendimento, Osmar José da Silva, seus filhos, e vereadores do campo político de Osmar que, juntamente com o atual prefeito, insuflaram contra os Kaingang uma pequena parcela de agricultores da região, comerciantes da cidade e região, parte da comunidade de Vicente Dutra e outras pessoas de municípios vizinhos.

É fato conhecido também que estes mesmos membros da política local, que têm no empreendimento Águas do Prado uma importante fonte de renda, têm levado informações distorcidas quanto à veracidade do processo demarcatório e das consequências da demarcação até os agricultores. Enquanto os indígenas defendem publicamente a demarcação da Terra Indígena Rio dos Índios mediante indenização plena (reassentamento e benfeitorias) dos agricultores, os políticos advertem os trabalhadores rurais de que estes sairão sem nenhum tipo de compensação. Outra ilusão vendida por estes mesmos sujeitos é a de que o processo demarcatório pode ser revertido com a pressão dos colonos, o que é impossível devido ao estágio avançado do processo demarcatório.

Falso conflito favorece o agronegócio

Os interesses políticos e econômicos das elites locais, com o apoio inescrupuloso da mídia hegemônica, acabam por criar o factóide de um “conflito entre pequenos”, que muito os interessa. Enquanto ganham tempo adiando a indenização dos colonos, suas ações de expropriação estão seguras e suas terras, garantidas indevidamente, intocadas. Enquanto isso, o governo federal covardemente e convenientemente acaba por aproveitar este falso conflito para justificar sua já bem conhecida política de congelamento inconstitucional de demarcações e, assim, garantir seus acordos com os setores dominantes da sociedade. Desta forma, as elites locais encontram coro nas práticas de um governo que decidiu abraçar-se ao agronegócio, passando por cima do direito constitucional dos povos e dos cidadãos.

As táticas para o não cumprimento de suas atribuições pelos órgãos federais são inúmeras. Por exemplo, em reunião realizada em Porto Alegre no dia 02 de outubro de 2013, o superintendente do Incra, Roberto Ramos, afirmou que os agricultores das áreas indígenas em processo de demarcação não foram reassentados em terras destinadas à reforma agrária por que não estavam cadastrados. No entanto, em áreas como a de Rio dos Índios o levantamento fundiário já foi realizado.

Ainda em 2009, o Ministério Público Federal de Passo Fundo, tratando de uma conversão do procedimento administrativo cível em inquérito civil (PRM/PF 2009), buscando fazer avançar o procedimento demarcatório da Terra Indígena Rio dos Índios, oficiou ao Incra que este prestasse “informações acerca do parecer da sua Procuradoria Federal quanto à possibilidade de indenização da terra aos agricultores ocupantes da Terra Indígena Rio dos Índios, no município de Vicente Dutra/RS”. No entanto, não foram tomadas as providências neste sentido. Ou por omissão do Incra ou por falta de vontade da Funai e das demais instâncias responsáveis.

Enquanto morrem indígenas em atentados em todo o país e muitos outros poderão ocorrer devido às ameaças anunciadas e às promessas de que os ruralistas irão “resolver” por eles mesmos a questão dos conflitos agrários no Mato Grosso do Sul, esta grande rede federal-local vai ganhando tempo, protegendo micro e macro interesses e renovando a esperança de conseguir finalmente alterar a Constituição Federal para poder, de uma vez por todas, retirar os indígenas do caminho do “progresso e do desenvolvimento”.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin) reiteram sua irrestrita e incondicional solidariedade e apoio ao povo Kaingang de Rio dos Índios e continuarão atentos para denunciar estas e outras práticas que as elites locais e o governo federal têm praticado contra o direito irrevogável e imemorial dos povos indígenas.

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