Dois apontamentos para um país raro. Artigo de Eric Nepomuceno

No Rio de Janeiro e arredores, de uma população de cerca de sete milhões de habitantes, pouco mais de um milhão sofre de maneira direta, a cada minuto de cada hora do dia das suas vidas, a opressão de organizações criminosas. A reportagem é de Eric Nepomuceno e publicada no jornal argentino Página/12. A tradução é de André Langer

IHU On-Line – Primeiro. As estatísticas não são totalmente confiáveis. Mas, fazendo uma média das projeções pode-se dizer que no Rio de Janeiro, talvez a cidade mais emblemática do meu país, e nessa vasta região que chamam de Grande Rio, existem mais de mil favelas. Nelas vivem mais ou menos 1,3 milhão de pessoas, de uma população de sete milhões. Quase 20% do total.

Da população dessas favelas, uma parte considerável – cerca de 60% – vive sob o jugo do narcotráfico. Outra – cerca de 35% – vive sob as “milícias”, grupos integrados por policiais civis, ou seja, pela polícia judicial, polícia militar e bombeiros. A parte que resta, 5%, vive por conta própria, livre da pressão dos narcotraficantes ou dos milicianos.

Ou seja: no Rio de Janeiro e arredores, de uma população de cerca de sete milhões de habitantes, pouco mais de um milhão sofre de maneira direta, a cada minuto de cada hora do dia das suas vidas, a opressão de organizações criminosas, tanto narcotraficantes como paramilitares.

O Estado jamais soube encontrar uma solução para semelhante cenário. Durante décadas, governadores tentaram determinar regras de convivência entre o morro, ou seja, as favelas, e o asfalto, ou seja, a cidade. As tentativas do Estado de intervir nessas zonas não passaram de tentativas.

Há poucos anos, o atual governador do Rio, Sérgio Cabral, inventou a UPP – ou seja, a Unidade de Polícia Pacificadora – que consiste em tropas da polícia militarizada que, com aviso prévio, invade as favelas e permanece ali. Com isso desaparecem dos becos os tipos armados com metralhadoras e fuzis pesados, acaba o toque de recolher ditado pelos narcotraficantes e acaba o negócio paralelo da venda ilegal de TV a cabo e de conexões de luz. Pode-se circular pelos becos estreitos, e até há festas para as classes médias do asfalto, que sobem os morros para se divertir.

Ou seja, segue a mil o tráfico, mas sem a guarda de escoltas fortemente armadas. Já não há toque de recolher, mas os traficantes sabem os movimentos de cada morador.

Os chefes foram expulsos, assim como os substitutos. Ficaram os gerentes de segunda ou terceira linha, que informam, a quem corresponde, cada movimento nas favelas. Praticamente não há mais disputas pelos pontos de venda, que antes provocavam verdadeiras guerras. Mas enquanto o balofo e tagarela do governador – que, a propósito, tem os piores índices de aprovação popular entre os 27 governadores do país – segue alardeando maravilhas, os moradores das favelas dizem que, no fundo, tudo continua como antes: sem postos de saúde, sem escolas, sem cuidados médicos básicos. Sem cidadania.

Por esses dias, na Rocinha, a maior favela do Rio (os cálculos indicam entre 50.000 e 110.000 habitantes; digamos 80.000, um número razoável), a guerra entre traficantes, que disputam pontos de venda de drogas, voltou aos seus níveis de sempre.

O grosso do contingente dos policiais militares da UPP – vale repetir: Unidade de Polícia Pacificadora –, a começar pelo seu comandante, foi preso. A causa: sequestraram e assassinaram, em plena favela, na própria instalação da UPP, um ajudante de pedreiro chamado Amarildo. Acreditaram que fosse cúmplice dos traficantes. Não era. Foi asfixiado com um saco plástico, desses de supermercado, depois eletrocutado. E a vida segue, do mesmo jeito. Negros, pobres e favelados sempre foram suspeitos no meu país. Sempre foram os mais mortos entre os mortos.

No Rio, parte das quadrilhas dos traficantes foge tão logo se anuncia que determinada favela será “pacificada”. A polícia entra, com pompa, circunstância e fanfarrices, e não encontra resistência.

Ao mesmo tempo, nas cidades da Grande Rio, nos subúrbios, cresce a violência. Há uma lógica cruel em tudo isso: ao invadir e “pacificar” uma favela, as forças públicas de segurança deixam uma quantidade significativa de criminosos sem trabalho. Os que fogem de uma favela “pacificada” buscam outras paragens para exercer seu trabalho.

Nas cidades vizinhas, nos subúrbios, os índices de violência urbana cresceram, em média, 30%. Nas outras mais de mil favelas não “pacificadas”, acontece o mesmo.

Segundo. Na linguagem jurídica brasileira, há dois tipos de homicídio. Aqui, uma coisa é o homicídio culposo e outra o homicídio doloso. Por culposo entende-se que alguém matou outro sem intenção. Ao contrário, quando é doloso supõe-se que matou com plena intenção, sabendo muito bem o que estava fazendo. É um crime muito mais grave.

Bem: em 2012, houve 47.136 homicídios dolosos no Brasil. Uma média de 24,3 sobre cada cem mil habitantes. E houve 50.617 estupros de mulheres: uma média de 26,1 sobre cada cem mil habitantes.

Há algo raro em um país onde esses dados disputam o ranking do horror. No ano passado, foram violadas 139 mulheres no Brasil a cada dia. Ou seja, quase seis por hora.

Que país é este? Aonde chegaremos com essa conta macabra das misérias humanas? Algo raro acontece neste raro país. No meu país.

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