Câmara pode votar projeto que prevê investigação de mortes por policiais, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

A Câmara dos Deputados pode votar, nesta quarta (23), o projeto de lei 4471/2012, que estabelece procedimentos para a investigação das mortes e lesões cometidas por agentes do Estado, como policiais, durante o serviço. Hoje, muitas mortes são registradas como “autos de resistência” ou mesmo “resistência seguida de morte”, raramente investigados. Ou seja, execuções sumárias, de envolvidos em crimes e inocentes, têm passado à história dessa forma e permanecem impunes.

O PL, de autoria de Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PMDB-RS), Protógenes Queiroz (PC do B-SP) e Mito Teixeira (PDT-RJ), altera o Código de Processo Penal. A medida, hoje amparada em alguns dispositivos legais, foi criada na época da ditadura militar e segue sendo usada.

De acordo com resolução do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, os termos devem ser abolidos e, no seu lugar, deveriam ser usados “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”, evitando que violações aos direitos humanos por parte do Estado ou de ações de milícias que atuem como grupos de extermínio fiquem sem investigação.

Para tratar do tema, fiz uma curta entrevista com Severine Macedo, secretária nacional de Juventude, ligado à Secretaria-Geral da Presidência da República:

1) Acertar um tiro na nuca de um suspeito no meio de um confronto armado demanda muita precisão do policial. E depois registrar uma execução como auto de resistência demanda muita cara-de-pau. A quem interessa manter esse tipo de produção literária ficcional no Brasil?
Nesta terça, quem subiu à mesa da Câmara dos Deputados para rejeitar o PL 4471, enquanto diversos deputados levantavam seus cartazes pela aprovação do projeto, foi Jair Bolsonaro (PP-RJ). Os interessados em manter a figura dos autos de resistência, criada pelo regime militar, são aqueles apegados ao legado da ditadura. Interessa àqueles que não defendem os direitos humanos, àqueles que não reconhecem o racismo que expõe mais os jovens negros e pobres à violência, àqueles que identificam pobres e negros da periferia como bandidos em potencial e interessa também aos policiais em desvio de função. É importante deixar claro que, longe de ser uma iniciativa contra a polícia, o PL 4471 fortalece os princípios básicos da missão da instituição, que são os de garantir a segurança e a proteção da população em vez de eleger inimigos e exterminá-los a sangue frio.

2) Há uma estimativa do número de pessoas que foram executadas por forças policiais e registradas na forma de autos de resistência?
Poucos estados utilizam a categoria autos de resistência para registrar homicídios praticados por policiais. Então, não existe uma fonte ou forma única de coleta destes dados em pleno funcionamento ainda para o país. Os dados disponíveis não são suficientes para termos um diagnóstico mais realista sobre a relação entre homicídios e mortes decorrentes da atuação policial. O governo federal trabalha para superar essa deficiência estruturando o Sistema de Informação em Segurança Pública (Sinesp), que institui a padronização para coleta de dados que devem ser preenchidos para registro de ocorrências. Porém, a lei de criação do Sinesp é de agosto de 2012 e esta padronização só começou a ser obrigatória em 2013. Hoje, o mais comum é fazer esses registros como homicídio, pura e simplesmente, ou via mortes mal esclarecidas. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que nos seus anuários tenta reunir as informações da Secretaria de Segurança Pública (SSP) dos estados para chegar a uma estimativa da letalidade policial, aponta que os estados que informam sobre auto de resistência, mesmo que de forma incompleta ou ruim, são Alagoas, Bahia, Goiás, Pernambuco, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Quem não informa são Acre, Amazonas, Amapá, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima e Santa Catarina. A título de exemplo, em São Paulo, em 2011, os dados mais recentes disponíveis são:

Pessoas mortas em confronto com Polícia Civil em 2011: 23
Pessoas mortas por policiais civis em outras circunstancias em 2011: 20
Pessoas mortas em confronto com Polícia Militar em 2011: 437
Pessoas mortas por policiais militares em outras circunstancias em 2011: sem informação.

Ou seja, quase 500 pessoas mortas pelas policias em um ano no estado, sem contar as mortes em outras circunstancias pela polícia militar, cujo dado não está disponível.

3) Balas insistem em encontrar e derrubar jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades. Parte dessas mortes é registrada como auto de resistência. As balas no Brasil são racistas?

Temos registros de que em diversas corporações há orientações que levam os policiais a tratar de maneira diferenciada pessoas negras e as populações das periferias. Mas, o que agrava mais ainda este quadro é termos uma naturalização do racismo e uma banalização da violência em toda a sociedade. Dados do Mapa da Violência apontam que mais de 20 mil jovens são assassinados por ano no Brasil. Mais da metade dos homicídios de forma geral atingem jovens, dos quais mais de 70% negros e mais de 90% homens. Seria como se caíssem oito aviões todos os meses no país lotados de jovens, em sua maioria negros. Entretanto, esta tragédia não sensibiliza a sociedade como outras sensibilizam, não ganha a visibilidade que outras ganham, o que dificulta muito alterarmos de forma significativa esta cultura de violência. E precisamos disso, de mudança de valores e de práticas cotidianas, da superação do racismo que historicamente autoriza uma maior violência contra as pessoas negras em nossa sociedade.

Para mudarmos esse quadro é necessário ampliar o reconhecimento do problema por parte da sociedade, ampliar direitos e políticas públicas através de iniciativas de todas as esferas do Estado e não permitir que o mesmo Estado, por meio da polícia, continue a criminalizar, matar e usar a resistência como pretexto. Esse é o esforço que estamos fazendo ao construir o Plano Juventude Viva, no qual a aprovação do PL 4471 é uma ação importante e central de nossa estratégia, mas apenas uma, entre várias outras que estão sendo e precisam ser implementadas.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.