Histórias de Lampedusa: descoberta de bebê ainda conectado à mãe emociona equipe de resgate

Embarcação que naufragou no Mediterrâneo levava mais de 500 imigrantes africanos à Lampedusa. A maioria não sobreviveu
Embarcação que naufragou no Mediterrâneo levava mais de 500 imigrantes africanos à Lampedusa. A maioria não sobreviveu, Foto: Efe

“Não conseguia acreditar. Não pudemos deixar de chorar e de encher a máscara [de mergulho] de lágrimas”, disse subtenente italiano

Opera Mundi/Efe

Ele chegou ao mundo para morrer. A mãe, uma jovem africana de 19 anos, se afogou no Mar Mediterrâneo, perto da ilha italiana de Lampedusa, antes de chegar à terra firme. À Europa. À esperança de uma vida menos injusta. Mas não houve quem os salvasse. À deriva, em meio aos gritos de desespero e à força das ondas, ele nasceu na água salgada. E no fundo permaneceram os dois, juntos.

Quem os encontrou ainda conectados pelo cordão umbilical foi o subtenente  dos Carabineiros, uma das quatro forças armadas italianas, o mergulhador Renato Sollustri, na proa do barco afundado. No final de um dia de resgate daqueles que morreram no naufrágio em Lampedusa em 3 de outubro, o grupo de mergulhadores percebeu a jovem mulher, aparentemente grávida. “A tiramos do barco fazendo uma corrente humana com os braços”, conta o subtenente. “Depois a colocamos no fundo do mar. Com uma corda, a atamos a outros cadáveres e a tiramos de lá com os demais”.

Só depois perceberam o horror. “Quando passamos o cadáver da mulher aos colegas que estavam a bordo do nosso barco, vimos que dentro da roupa estava um bebê recém-nascido. Não conseguia acreditar. Não pudemos deixar de chorar e de encher a máscara [de mergulho] de lágrimas.”

O barco que afundou nas águas profundas perto da ilha siciliana de Lampedusa, ponto mais extremo do sul da Itália e principal porta de ingresso dos fluxos migratórios destinados ao país europeu, estava repleto de imigrantes . Naquela quinta-feira, aconteceu uma tragédia anunciada nas águas italianas. Até agora, foram encontrados 329 corpos dos imigrantes que viajavam nesse barco da morte, dentre os quais 89 mulheres e 8 crianças.

Uma mulher siciliana, que tentou ajudar a resgatar os que se afogavam, comentou à imprensa que “os homens gritavam e choravam para que salvássemos as crianças. Mas as crianças já estavam mortas.”

De acordo com a responsável pela comunicação do escritório da Agência da ONU para Refugiados, ACNUR, Barbara Molinario, que estava em Lampedusa, a situação é dramática, e, infelizmente, comum. “Essa tragédia é dolorosíssima, mas infelizmente, para nós que trabalhamos com esse tema, não é algo novo. O que vivem os imigrantes que cruzam o Mediterrâneo é impressionante, e eventos como esse acontecem com muita frequência. Dessa vez chamou a atenção porque o barco afundou perto da costa e ficou mais visível”, afirmou a Opera Mundi.

Sobrevivente é resgatado por membros das forças de segurança italianas próximo à ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo
Sobrevivente é resgatado por membros das forças de segurança italianas próximo à ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo

“Nós registramos, calculando por baixo, que somente este ano morreram mais de 1.500 migrantes no Mediterrâneo. Sem contar os números incalculáveis dos que morrem no trajeto para chegar”, disse. Segundo ela, muitos partem de países como Eritreia, Somália, Síria, Egito, e, ao chegar à Líbia, de onde saem muitos barcos, já cruzaram o deserto e enfrentaram uma série de perigos. “Muitos ficam lá e nunca chegam ao mar, que é a parte mais visível, mas que nem chega a ser a mais perigosa do caminho deles”, revelou.

De acordo com os dados fornecidos por Barbara Molinario, a maioria dos imigrantes que chega à Lampedusa são pessoas que fogem da guerra, ou seja, que têm direito a asilo. “O que acontece com frequência é que os barcos que resgatam os imigrantes do mar ficam bloqueados por dias ou semanas pelas autoridades de diferentes países, como Malta e Itália, que atribuem a outros a responsabilidade de acolher os imigrantes em seu território”. E, enquanto isso, muitos imigrantes morrem no mar.

Segundo as autoridades policiais, o barco de 20 metros que chegava da Líbia transportava mais de 500 imigrantes, quando, de repente, alguns deles botaram fogo em um cobertor para serem vistos. Muitos se assustaram e o movimento dentro da embarcação fez com que ela se enchesse d água e afundasse.
Legislação

Na Itália, a tragédia provocou um debate entre os que, há dois anos, se opõem ao que se conhece como a lei “Bossi-Fini” – elaborada por Umberto Bossi, ex-líder do partido xenófobo Lega Nord e Gianfranco Fini, ex-líder do partido de direito Alleanza Nazionale.

O governo italiano se antecipou para tentar se preservar frente à tragédia. As autoridades declararam um dia de luto nacional pelos mortos no acidente, apesar de ainda não ter sido possível enterrar os mais de 300 corpos e decidiram conceder cidadanias póstumas.

No entanto, aqueles que se salvaram foram indiciados pelo crime de clandestinidade e estão presos preventivamente no centro de identificação e expulsão da ilha. Os únicos que se salvaram da prisão preventiva são os menores de idade. Cerca de 60 deles saíram nesta sexta-feira (11/10) do centro de identificação para serem trasladados à Sicília.

Mergulhadores italianos que participam da recuperação dos corpos de imigrantes trabalham sem parar desde a tragédia
Mergulhadores italianos que participam da recuperação dos corpos de imigrantes trabalham sem parar desde a tragédia

A tragédia de Lampedusa, a última de uma grande série, suscitou a polêmica sobre o tema da migração, que divide a opinião pública italiana, assim como a classe política nacional.

A proposta no parlamento de cancelar o delito de clandestinidade e a votação de uma emenda gerou resposta imediata de Beppe Grillo e Gianroberto Casaleggio, líderes do Movimento 5 Estrelas, nova força política  surgida nas última eleições parlamentarias e que posicionava como revolucionária. Porém, suas posições xenófobas ou claramente  racistas foram finalmente esclarecidas na mensagem dos líderes do movimento, que se declararam totalmente contrários ao cancelamento do delito de clandestinidade na Itália, evidenciando posturas próprias da extrema-direita, como os movimentos neofascistas italianos.

A lei n. 189, de 2002, mais conhecida como Bossi-Fini, prevê a expulsão dos estrangeiros clandestinos e, normalmente, é justificada pelas exigências impostas pelas União Europeia, indicada como responsável genérica pelas leis duras na administração dos fluxos migratórios. “Em vez de pedir ajuda à União Europeia e chorar lágrimas de crocodilo, o Estado italiano precisa se responsabilizar e modificar as leis. Destinar recursos para garantir as viagens dos que fogem das guerras”, disse Riccardo Noury, porta-voz da Anistia Internacional na Itália.

Para ele, nos últimos 10 anos, na Itália e na Europa, foram elaboradas políticas migratórias que privilegiam a construção de obstáculos, barreiras à chegada dos imigrantes, obrigando-os a fazer viagens cada vez mais perigosas, com resultados catastróficos. “O que pedimos às instituições italianas é que adotem outras políticas que não transformem a clandestinidade na única forma de se chegar à Itália. Pedimos a abolição do crime de clandestinidade, que não tem sentido”, defendeu.

Entre as costas da Sicília e de Lampedusa, chegaram mais de 30 mil imigrantes somente neste ano. E as instituições italianas seguem enfrentando o problema como uma emergência ordinária, que poderia ser administrada como estrutural, com um gasto menor e uma organização mais eficiente. De fato, ontem,  outro barco, com 250 imigrantes, virou no Canal da Sicília. Novamente se inicia a contagem dos mortos.

Assim como em 3 de outubro, uma grávida estava entre a multidão desesperada nesta sexta-feira. Com um destino diferente, ela conseguiu chegar a tempo a um hospital, onde dará à luz em segurança.

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