MG – Confraria semanal é duplamente punida por ocupação de calçada no Santa Tereza

Lincoln Duarte Tertuliano, fundador da confraria, mostra as notificações
Lincoln Duarte Tertuliano, fundador da confraria, mostra as notificações

Arnaldo Viana – O Estado de Minas

A crônica de ontem do compositor e escritor Fernando Brant, contracapa do caderno EM Cultura deste jornal, reverencia os 25 anos da Constituição, resgate dos direitos civis usurpados pelo golpe militar de 1964. Na noite de segunda-feira, provavelmente no momento em que o artista e cronista tecia o elegante e oportuno texto, a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Administração Regional Leste, dava uma facada numa das mais louváveis intenções de liberdade, igualdade e fraternidade, exatamente no coração do Bairro Santa Tereza, reduto de Brant e de seus companheiros do Clube da Esquina.

A PBH, numa ação ríspida e inesperada de fiscais, multou a inocente Confraria São Gonçalo, a alegria da Rua Norita, formada por pessoas da chamada terceira idade, que se reúnem uma vez por semana em confraternização, para, ao som de flauta, violão e pandeiro, cantar velhas canções de seresta e, acima de tudo, conviver, investir na autoestima e espantar a solidão e os sintomas da depressão. Motivo da multa? Os confrades instalam cadeiras e pequenas mesas na lateral da calçada, sem atrapalhar a passagem de pedestres, mesmo porque a rua, de um só quarteirião não é movimentada. Duas multas aplicadas em um intervalo de apenas cinco minutos, por fiscais diferentes.

A canetada municipal cortou os corações de Lincoln, Déa, Arlene, Juca, Pedro, Nair, Luiz, José, Léo, Antônio, Eloísa, Milton, Gracinha, Elaine, Adonides, Lídia, Roberto e os demais assíduos frequentadores do encontro semanal diante da casa de número 9, a maioria moradora da própria Norita. “Só pode ser intriga, inveja, porque ninguém nunca reclamou das nossas reuniões. Pelo contrário, as pessoas participam”, diz Lincoln Tertuliano, dono do imóvel. Ele e a mulher, Déa, são a razão da existência da confraria, que recebeu o nome do santo padroeiro dos violeiros.

Quando se mudaram para o bairro, Lincoln e Déa, aposentados, montaram uma copiadora na garagem de casa. O contato com os clientes amenizava a solidão do casal. O negócio não foi adiante e logo depois ela sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Nos fins de tarde, eles se sentavam diante da casa, para, pelo menos, cumprimentar os passantes e ganhar um dedo de prosa de alguém menos apressado. Deu certo. Os vizinhos foram se aproximando, se conhecendo e um deles sugeriu uma reunião semanal, com canções românticas, violões, comida e bebidas leves para mudar a rotina da rua. E nasceu a confraria. A sede é a garagem de Lincoln.

NÃO É BAR

Cartaz afixado a lado da porta da garagem, avisa: “Aqui não é bar, é confraria”. Os confrades levam os tira-gostos, refrigerantes e cerveja. Em cada reunião, um convidado especial, geralmente ligado à música. Nas paredes, fotos dos ilustres visitantes em poses com os confrades. Isso não sensibilizou a PBH. Segunda-feira, fiscais ficaram de tocaia esperando a turma chegar. E às 19h30 um deles entregou a Lincoln a notificação e o auto de infração (R$ 596,23, mesas e cadeiras no passeio); às 19h35, o segundo agente passou ao dono da casa outros autos (R$ 834,32, mesas e cadeiras em via pública). A Associação dos Amigos do Bairro Santa Tereza informa que vai conversar com o secretário regional.

“Os fiscais pediram alvará. Como não se trata de festa nem de comércio, respondi que não. E entregaram as multas, que já vieram preenchidas. Não as assinei, recolhi as cadeiras e continuamos o encontro na garagem. Aí, o fiscal disse que até para reunião dentro de casa é preciso alvará”, afirma Lincoln, ao lado dos olhos tristes de Déa.

Para multar, a PBH se baseia no Código de Posturas. “Não entendi, pois o que importa aqui é a igualdade, o desejo de ser feliz, sem bebedeira, sem algazarra”, diz Arlene, lembrando que a confraria não usa aparelhos de som e as reuniões não passam das 22h. Mas a Regional Leste alega que houve reclamação de moradores. Que pena, Fernando Brant: abaixo da Constituição há as leis municipais e suas interpretações. E há também quem não goste de ver gente feliz.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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