SP – MPF determina inquérito inédito para apurar 581 mortes em 4,5 anos, à espera de vaga no Pronto Socorro de Baurú. Em 12 anos, quase 1/3 do tempo, houve 458 homicídios na cidade

saúde LOGO(80)De acordo com informação da Secretaria Municipal de Saúde, 581 pessoas morreram no Pronto-Socorro Central (PSC), entre janeiro de 2009 e junho de 2013, à espera de uma vaga de internação hospitalar. Só primeiro semestre de 2013, 83 mortes foram contabilizadas, gerando  uma média de 14 óbitos por mês

Por Nélson Gonçalves, no Jornal da Cidade

Apurar se há relação de causa e consequência por ausência de internação hospitalar e eventuais responsabilidades sobre o registro de 581 mortes registradas em Bauru relacionadas a falta de vaga, entre janeiro de 2009 e junho de 2013. Este é o conteúdo do inquérito sem precedentes instalado pela Polícia Civil de Bauru depois que o Ministério Público Federal (MPF) encaminhou procedimento em razão da proporção dos dados colhidos junto ao sistema público de saúde local.

No sistema de dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo está que, nos últimos 12 anos, Bauru teve 458 mortes por homicídio doloso registradas. Entre 2001 e 2012 se matou menos com arma de fogo do que pela deficiência no sistema público de saúde.

Sob a presidência do delegado Kléber Granja e já em andamento na Polícia Civil, o procedimento guarda em si todas as dúvidas e inquietudes de sua dimensão. A amplitude da investigação causou espanto e quebrou a rotina logo que a solicitação chegou ao Cartório Distribuidor do Fórum de Bauru.

Em razão da competência legal, o MPF encaminhou recomendação pela apuração ao Judiciário Estadual. No cartório distribuidor, o número de vítimas assustou. A primeira questão a ser discutida entre juízes criminais foi sobre que encaminhamento teria de ser dado. O juiz Ubirajara Maintinguer comenta, por exemplo, que somados todos os processos criminais em andamento no Fórum de Bauru não atingem a metade do número de mortes listadas para este inquérito.

A geração de um único inquérito pra 581 mortes tornaria a investigação quase infinita, no tempo, e, por isso mesmo, inócua em sua finalidade. A prescrição tornou-se um dos principais elementos técnico-jurídicos para decidir qual caminho adotar.

O promotor criminal aposentado e professor de Direito, vereador José Roberto Segalla enfatiza a abrangência sui generis do caso. “É praticamente impossível tecnicamente você imaginar que há condições de presidir e realizar com eficácia um inquérito com 581 vítimas. Se houver a individualização serão milhares de pessoas para serem localizadas e ouvidas. Isso torna o inquérito infinito. E você tem a corrida entre o imenso número de testemunhas a serem ouvidas e o tempo de prescrição”, aborda.

Se for considerado o homicídio culposo como ponto de partida, o inquérito tem como referência a data de cada fato (óbito) e a data da denúncia como referenciais jurídicos. “A data do fato e a data da denúncia cruzados com o tempo que se levaria para ouvir milhares de pessoas em uma apuração individualizada poderia consumir até mesmo os oito anos ao se pensar em uma prescrição objetiva, direta, sem detalhamento aqui para raciocínio lógico. Um inquérito sem precedentes, impossível de ser materializado, não obstante ser fato gravíssimo, que envolve a vida e que afetou centenas de famílias nos últimos anos”, acrescenta Segalla.

Em sua carreira, o então promotor conta que atuou em um caso, ligado a ato de improbidade administrativa, que resultou em 40 denunciados. “Veja e eram 40 envolvidos, direta ou indiretamente, e não 600 vítimas como agora. Mesmo sendo infinitamente menor o número de personagens o processo demorou para ser concluído dada sua dimensão. Imagine com 600 mortes?”, enfatiza.

No Fórum de Bauru, apurou o JC, juízes e promotores discutiram a impossibilidade da individualização. Mas e qual critério adotar por amostragem para a apuração? Aqui, as autoridades judiciais e os fiscais da lei discutiram a necessidade de um pente fino inicial para delimitar a relação entre causa e consequência para as mortes.

Amostragem

Uma saída seria se chegar a um tempo médio de espera do então paciente vitimado, no corredor do Pronto-Socorro Central (PSC), cruzando essa informação com a delimitação dos fatores incidentes sobre a causa mortis, como o histórico da saúde do paciente. O diretor do Departamento de Urgência e Emergência do Pronto-Socorro, o médico Luiz Antônio Sabbag, pontuou sua visão técnica-médica sobre o caso.

“Para um universo de 26.000 internações e 1 milhão de atendidos no Pronto-Socorro temos aqui uma apuração sobre três anos e meio e que engloba cerca de 600 mortes. É um caso totalmente atípico e sem precedentes. O que eu levantei é que será preciso pegar esses 600 prontuários do arquivo e fazer um relatório para um conjunto de situações que envolveram o atendimento desse paciente para se chegar a um número de possibilidades mais plausível para relacionar a apuração da morte em confronto com a demora ou a falta de leitos”, opina.

Sabbag conta que separou os 600 prontuários do arquivo da Secretaria Municipal de Saúde. A pilha de cópia abrange as mortes registradas por ausência de internação em unidade hospitalar a partir de atendimento no Pronto-Socorro entre janeiro de 2009 e junho de 2013.

“Tem de delimitar uma questão técnica, médica. Se você tem paciente que morreu esperando vagas por pelo menos três dias e ele era cardíaco, sofreu trauma de proporções ou um acidente vascular cerebral, por exemplo, você tem elementos onde a discussão sobre a falta ou não da internação faz sentido. Mas se você inclui o paciente já em estado avançado de doença, com um problema grave não tratado adequadamente ou quem entrou um dia, esperou e no outro já saiu, você tem outra situação”, comenta o médico.

Baseado em sua experiência no Pronto-Socorro, o médico Antonio Sabbag considera que o universo amostral para apuração detalhada fique em torno de 10% do total. “Acho que teríamos por esses critérios, se adotados, em torno de 50 ou 60 casos a serem detalhados na investigação. De qualquer forma é um inquérito cujo término continua de difícil equacionamento”, avalia.

A Secretaria Municipal de Saúde está fazendo a separação dos casos levando em conta os indicativos de saúde e as informações do prontuário para sugerir a delimitação. O secretário Municipal de Saúde e também médico, Fernando Monti, considera fora de parâmetro relacionar, para investigação, a maior parte das mortes registradas com a falta de vaga para internação. “E veja é preciso situar que estamos falando em um universo de 600 mortes para 26 mil internações e 1 milhão de atendidos no sistema público por ano. Para um universo de 3.000 atendimentos por mês, sendo 450/dia (em média) somente no Pronto-Socorro, o dado, diluído no total de mortes, fica bastante distante da dimensão dada no número isolado, geral”, advertiu o secretário em reunião pública no auditório da Câmara Municipal na última quarta-feira à noite.

Critério médico-jurídico

O JC apurou junto a integrante do sistema de vagas gerenciado pela Secretaria Estadual de Saúde a dificuldade na vinculação entre a morte e a ausência de vaga para internação.

Um dos ouvidos, sem identificação, argumentou sobre os fatos incidentes sobre o histórico de cada paciente que veio a óbito. “Esse dado geral é o número de óbitos, mas o caso concreto em si é muito diferente. A medicina classifica muitos atendimentos tecnicamente já como passíveis de óbito no início do atendimento, mas nem por isso o médico vai deixar de pedir a internação, até por ética profissional e cumprimento de seu dever. Muita gente, pela mesma razão, foi internado e morreu logo em seguida, mas não entra nessa estatística para apuração porque conseguiu a vaga”, argumentou um dos ouvidos pelo JC.

Outro servidor especializado em investigação forense indaga se o inquérito vai realizar exumação, se todas as testemunhas (como parentes que acompanharam a saga do paciente que esperava pela vaga) serão ouvidas, qual será o critério técnico-médico para avaliação dos casos, entre outros fatores que, em sua visão, tornam o objeto da apuração trabalhoso e inócuo a esta altura. “São pessoas simples, muitas das quais nem serão encontradas. Não se trata de não apurar, mas de levantar isso de forma tardia para um universo alarmante de mortes e cuja investigação é especializada e sucumbe com o tempo disponível ou necessário segundo a lei”, indicou.

Os dados

De acordo com informação da Secretaria Municipal de Saúde, 581 pessoas morreram no Pronto-Socorro Central (PSC), entre janeiro de 2009 e junho de 2013, à espera de uma vaga de internação hospitalar.

No primeiro semestre deste ano, 83 mortes foram contabilizadas, gerando  uma média de 14 óbitos por mês. O patamar  é superior ao de 2012, quando 119 pacientes morreram nas mesmas condições, numa média de 10 mortes por mês. Em 2011, foram contabilizados 135 óbitos; em 2010, 118 mortes e; em 2009, 126 registros.

Fila da morte

O jovem Thiago Pereira da Silva, 25 anos, morreu no Pronto-Socorro Central no último dia 12 de junho. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que Thiago recebeu atendimento da equipe médica do PSC. “Enquanto permaneceu na Unidade recebeu todo o atendimento necessário. Entretanto seu quadro evoluiu de forma inesperada, com gravidade progressiva, lamentavelmente, com óbito no dia 12/06, enquanto aguardava vaga para UTI. A Secretaria esclarece mais uma vez, que o serviço de disponibilização de vagas para internação em hospitais credenciados pelo SUS no município de Bauru é de responsabilidade da Secretaria de Saúde do Estado”, trouxe a nota da assessoria de imprensa da Prefeitura de Bauru.

A vaga na UTI foi solicitada no dia 8 de junho, data em que Thiago foi levado às pressas por sua esposa Rosangela Costa, de 38 anos, conforme relatou o repórter do JC Ricardo Santana na matéria. Rosangela descreve no registro que Thiago deu entrada no PSC com arritmia cardíaca e foi encaminhado à emergência. A esposa diz ter notado que não houve melhora. “Sendo que não conseguia contato com médico e com enfermeiros. Diz também que pedia os exames e a enfermeira dizia que não sabia onde estavam”, declarou Rosangela no registro policial. Ela também cita que tentou contato no PSC para a transferência do esposo para uma unidade hospitalar.

No dia seguinte, a agora viúva conseguiu falar à noite com um médico plantonista: “Que disse que seu marido estava sendo medicado, continuando no UPG e aguardando vaga para o hospital.” No dia 11, Thiago foi para a enfermaria, conforme relato de Rosangela. Ela ainda cita que não obteve informação sobre qual era o diagnóstico. “Não tendo informações corretas do marido e também ninguém do PSM dando informações para a família”, citou novamente a esposa.

No dia 12, data da morte de Thiago, Rosangela informou no BO que “ninguém tomava providências, quando uma médica avisou que o estado de saúde de seu marido era muito grave”, declarou Rosangela à Polícia Civil.

Inquérito sob sigilo

Benedito Antonio Valencise, delegado de polícia diretor do Deinter 4, Bauru, delimita que não há caso similar em termos da Polícia do Estado de São Paulo e sim do Departamento de Polícia de Bauru. Em se tratando de dimensão nacional na área de apuração criminal, nem mesmo o massacre do presídio do Carandiru, de 2 outubro de 1992, teve tantas vítimas envolvidas. Foram 111 presos mortos, cujo procedimento teve sentença definitiva apenas o final do primeiro semestre deste ano, com centenas de testemunhas ouvidas.

Do ponto de vista institucional, Valencise informa que “está sendo adotado o sigilo nas investigações policiais no inquérito policial para não prejudicar os trabalhos de Polícia Judiciária. Tudo está sendo feito com fiel observância das normas legais existentes em ferramentas de Inteligência. Somente haverá divulgação quando os fatos estiverem devidamente esclarecidos com as respectivas autorias”.

Assim, em razão da estratégia adotada, a Polícia Civil comenta que “a forma de investigar não poderão ser fornecidos, assim como detalhes sobre o trabalho. Entretanto posso antecipar que os trabalhos serão desenvolvidos com extremo rigor e no momento oportuno a sociedade terá conhecimento”, finaliza o diretor do Deinter 4.

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