Conforme decisão, prefeitura de Petrópolis pode retomar obras de infraestrutura básica que beneficiarão famílias atingidas por deslizamentos em 2011

MPF – Desde janeiro 2011, quando enchentes e deslizamento de terras atingiram a cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, 13 famílias que formam a Comunidade Quilombola da Tapera foram obrigadas a deixar sua terra tradicional. Desde então, o governo municipal vem trabalhando na reconstrução das casas e na implantação de energia elétrica e condições básicas de saneamento (água encanada e tratamento de esgoto). O trabalho, porém, havia sido interrompido no último dia 6 de agosto, por decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). A pedido do Ministério Público Federal (MPF), uma nova decisão, desta vez do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, proferida dia 16, permitiu a retomada das obras.

Para que se entenda o caso, é necessária uma breve retrospectiva histórica sobre a área ocupada pela comunidade quilombola. Conhecida como localidade de Tapera (ou Sítio da Tapera) e situada no distrito de Itaipava, em Petrópolis, foi parte da Fazenda de Santo Antônio, cujo proprietário era Agostinho Côrrea da Silva Goulão, morto em 1847. Dois anos depois, em 1849, quando foram cumpridas suas disposições testamentárias, os até então escravos de Agostinho receberam alforria e uma parte da fazenda – justamente a área que ocuparam até o início de 2011.

O restante da fazenda, ao longo do anos, passou por vários donos, até chegar ao proprietário atual, a Jacarehi Empreendimentos Imobiliários e Agropecuários. Um dos problemas é que, em 1935, foi assinada escritura pública em que a Companhia Industrial, Agrícola e Pecuária Itaipava (antecessora da Jacarehi) concedeu usufruto da terra à Comunidade Quilombola da Tapera, ou seja, entendia a área como sua, mas cedia o direito de uso.

Com base nisso, a Jacarehi, alegando ser possuidora indireta do imóvel, ajuizou ação na Justiça Federal do Rio de Janeiro pedindo reintegração de posse e, liminarmente (antes mesmo de uma decisão final sobre o caso), que fossem interrompidas as obras que vinham sendo realizadas no local. O argumento principal era de que a conclusão da urbanização e a prorrogação da permanência da comunidade colocavam em risco o pedido de reintegração definitiva.

Para o procurador da República Charles Stevan Mota Pessoa, que está lotado em Petrópolis, atuou no caso em primeira instância e conhece de perto a realidade da comunidade (inclusive esteve presente durante o resgate das famílias após a tragédia de 2011), a empresa tentou aproveitar o fato de as famílias terem sido temporariamente forçadas a sair da área – atualmente, estão abrigados em um local próxima, amparados pelo programa Aluguel Social, do governo do Rio de Janeiro. “É uma ação desumana, cuja única explicação plausível é o interesse imobiliário no valor patrimonial das áreas do distrito de Itaipava, conhecido por seus condomínios de altíssimo poder aquisitivo e por suas casas de campo”, argumenta. Segundo o procurador, esta seria a primeira vez que a comunidade teria luz elétrica em suas casas: “é um verdadeiro bolsão de pobreza em meio a uma vizinhança com excelente infraestrutura”.

A Justiça Federal em Petrópolis, acatando os argumentos do Ministério Público Federal, negou o pedido liminar da Jacarehi. A empresa, no entanto, recorreu ao TRF2 e obteve decisão favorável do desembargador Raldênio Bonifácio Costa.

Inconformado, o MPF, por meio pela subprocuradora-geral da República Ana Borges Coelho Santos, requereu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a suspensão da decisão. Do ponto de vista técnico, alegou que não houve fundamentação nem atribuição de efeito suspensivo ativo e que foram extrapolados os limites do que a Jacarehi havia solicitado em seu recurso. Em relação aos direitos da comunidade quilombola, o MPF entende que o retorno ao território tradicional, “mais do que a garantia da sobrevivência física em condições minimamente dignas, significa a única possibilidade de se conferir àquelas pessoas o direito de serem reconhecidas como grupo étnico e culturalmente distinto do restante da sociedade envolvente”. A subprocuradora-geral destacou, inclusive, que já tramita no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária processo administrativo que visa à titulação da área para a comunidade da Tapera. Por fim, argumentou que a decisão do TRF2 geraria grave lesão à economia pública, tendo em vista que já haviam sido investidos R$ 1.204.559,66 nas obras conduzidas pela prefeitura.

Entendendo tratar-se de matéria constitucional, o presidente do STJ encaminhou o processo ao STF. Em sua decisão, suspendendo a liminar concedida pelo TRF2 e permitindo a retomada do trabalho, o ministro Joaquim Barbosa defendeu que os possíveis danos causados à empresa, “advindos da conduta do Estado”, podem vir a ser reparados financeiramente. O mesmo, no entanto, não ocorre em relação os danos causados à comunidade. Além disso, para Barbosa, negar ao Estado a permissão para restaurar as condições de vida digna da população é uma violação tripla à Constituição: “Nega acesso à vida digna, proporcionada pelo acesso aos serviços estatais básicos como saúde, educação, saneamento, eletrificação etc; nega acesso à identidade histórica, por estimular artificialmente a desocupação definitiva do local; e alcança pela via colateral do desastre natural a desconstituição de negócios jurídicos (usufruto) e de expectativas constitucionalmente protegidas (eventual reconhecimento da ancestralidade quilombola) que, em condições ordinárias, não seriam atacados”.

Para Mota Pessoa, o resultado demonstra atuação integrada do Ministério Público Federal. “É necessário destacar o imenso empenho do procurador regional da República Rogério Navarro junto ao TRF2, bem como a intensa participação da coordenadora da 6ª Câmara, a suprocuradora-geral da República Deborah Duprat, junto aos Tribunais Superiores”, diz.

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