O ressentimento dos “donos” de trabalhadoras domésticas continua

Leonardo Sakamoto

Deve ser enchente. Ela, apesar de morar na favela, é mulher honesta, nunca falta.”

“É pobre, mas tem caráter. Nunca sumiu nada lá em casa.”

“É o quarto dia que aquele sujeito não vem. Sabe o que é isso? É o Bolsa Família! Torna as pessoas vagabundas.”

“Combinei uma coisa com ela e não veio. Esse povinho do Nordeste, viu?”

“Por isso que eu sempre digo: coloca mais duas horas no tíquete de show desse povo, viu amiga. É questão de cultura, sabe?”

“Não é que nem nós, que tivemos criação.”

Durante as discussões sobre a proposta de emenda constitucional que, aprovada e sancionada, elevou os direitos das trabalhadoras empregadas domésticas para um patamar mais próximo do restante da população, lemos e ouvimos um festival de preconceitos. O que foi ótimo para nos lembrarmos o que somos de verdade e o tanto que falta para que possamos nos olhar no espelho sem sentir vergonha.

Nos últimos dias, recebi por sugestão de leitores alguns repiques atuais daquele debate. Discussões de senhoras e senhores sobre o inferno no qual mergulharam suas vidas a partir do momento que “essa gente” passou a achar que era “igual a eles”.

“Pedi para a mocinha que trabalha lá em casa ficar mais duas horinhas porque o Arnaldo ia se atrasar do tênis e ela disse que não. Disse que tinha os filhos em casa. E os meus?”

“Ela não quis trocar a folga. Disse que tinha marcado uma viagem. Agora, esse povo viaja!”

“Pediu demissão e se foi. E tá me processando por direitos! Eu que a tratava como uma filha.”

“Ela disse que não quer mais dormir no quartinho dela porque é fechado e não tem janela. Na favela dela, também não deve ter…”

Até porque, como todos sabemos, não existe preconceito social no Brasil. Só amor. Um lugar em que pobres e ricos vivem em harmonia.

É incrível o ressentimento de alguns por terem sido obrigados a ceder um tiquinho à qualidade de vida dessa gente “que não sabe o seu lugar”, como é possível ver na timeline de muitos “homens e mulheres de bem”.

Seja na superfície, através de piadinhas, risinhos, ironias e preconceitos, seja estruturalmente, pela impossibilidade de ir a um hospital sem enormes filas, estudar em uma boa escola, voltar para casa com conforto, viver em um bairro com saneamento básico e ter a certeza de que os filhos chegarão à idade adulta, já passamos o recado de quem manda e quem obedece.

Mas este é um dos raros casos em que o lado vencedor está tendo que ceder.

Gente, reconheça. Neste caso, a dignidade ganhou. E vocês perderam.

Convivam com isso.

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