A universidade muito aquém da universalidade e diversidade da vida!

João Elter Guarani-Kaiowá

Não seria necessária uma lupa para constatar a gravidade do processo de genocídio ao qual estão submetidos os povos indígenas. Subjugados ao quinhão mais cruel de um novo padrão de poder trazido pelas velhas madeiras das caravelas europeias, caíram aos milhares sob a progressão da hecatombe. Infelizmente, a Universidade Estadual de Ponta Grossa (Uepg), ao invés de apoiar a luta contra esse massacre que ainda persiste, faz exibição pública de desrespeito à cultura indígena e aos direitos históricos e arduamente conquistados por esses povos ao publicar, em seu Concurso Vestibular de Inverno 2013, o texto anti-indígena intitulado “O índio” (http://migre.me/ftIPH), racista e desvinculado da realidade.

O autor afirma que devido ao fato dos avanços dos meios de comunicações e transportes ter ultrapassado suposta barreira entre branco e índio, esse “não é mais o guardião do ecossistema, porque a sua situação sociocultural é frágil”. Ele discorre a velha construção mental preconceituosa – defendida pelos dominadores – de que os complexos dinamismos culturais dos povos indígenas, suas organizações sociais enraizadas na tradição e cosmologia, o seu incondicional amor à vida, à terra, à floresta, não são riquezas e possibilidades, mas inutilidades. Para essa concepção imbecil, os indígenas são seres inferiores, não produzem e mantêm hábitos primitivos e, apesar de viverem há milênios em simbiose com a natureza, não têm capacidade de defendê-la – e que o homem “moderno”, que emporcalha as cidades, ar, rios e mares; que criou formas de vida que beiram a inviabilidade é quem deve cuidar da natureza e fazer “melhor uso” dela.

E não bastasse tanta imbecilidade, o autor vai mais além ao defender o etnocídio, ao declarar que “o melhor caminho é uma integração assistida”. Acredito que isso é herança daquele avassalador projeto do Estado brasileiro de integração indígena em favor de uma identidade nacional unificada. Na época da ditadura, a força da violência imposta aos indígenas para isso era tamanha que muitos vislumbravam que chegaríamos ao século XXI com os sobreviventes do massacre quase que totalmente integrados à sociedade imposta a eles. Isso além de etnocídio é, evidentemente, inconstitucional, pois contraria o artigo 231 da Constituição de 1988 que defende que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Numa tentativa de superar a si mesmo, o autor ainda afirma que “a demarcação contínua de terras para os índios, a essa altura dos acontecimentos históricos, não é bom negócio para o País, principalmente, levando-se em conta a globalização dos interesses internacionais”. Ele está dizendo que as comunidades indígenas na gestão dos recursos naturais de seus territórios não “produzem de fato” – e que isso atrapalha o crescimento e a projeção do Brasil ao patamar de grande nação. Essas monstruosidades semânticas nos levam a crer que o escritor é um adepto da nova ordem de “desenvolvimento”, na qual todos os recursos ambientais, culturais e humanos devem ser incorporados a uma lógica mercantil e concorrencial, a partir da qual as coisas valem pelo retorno que podem gerar e pelo potencial de exploração. Nesse sentido, a demarcação das terras indígenas e a garantia de formas variadas de pensar e de produzir não teriam lugar, sequer a menor importância. Tem-se, assim, o massacre, a agressão, a discriminação e o racismo contra os povos indígenas que vivem em áreas visadas para a expansão desse modelo econômico imbecil.

O decreto de extermínio que propõe o autor por sua manifestação busca, portanto, sustentação em argumentos que só vislumbram o mundo a partir das lentes do desenvolvimento dominante e que desconsideram a importância da cultura indígena, ou seja, tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração em favor de suposto “desenvolvimento”, são obstáculos e devem ser removidos.

Enfim, é muito claro que o texto “O índio” é um atentado aos povos indígenas, e, por isso, jamais deveria ser objeto de análise – direcionada, evidentemente – em uma prova de vestibular e, assim, nunca a Universidade Estadual de Ponta Grossa (Uepg) deveria publicá-lo – a menos que fosse de forma crítica, o que não é o caso, pois, as questões apenas reforçam o seu conteúdo muito próximo do fascismo/nazismo.

Ao publicar sem o cuidado de apresentar uma visão nefasta sobre esses brasileiros primeiros desta Nação, a universidade se presta a reforçar esse conteúdo condenável sob todos os aspectos, especialmente porque essa publicação faz referência aos indígenas por uma ótica deprimente, além de ser – no mínimo – um desrespeito aos princípios constitucionais elementares e, portanto, à causa indígena.

Num País onde a mandatária-mor, a presidenta da República cede – cada vez mais – à pressão dos ruralistas, latifundiários e à produção de escala e rifa os direitos indígenas, aceitar que uma instituição pública, que se arvora como defensora e cultivadora do saber humano, aja dessa maneira é perder a esperança na garantia da vida não só aos povos tradicionais, mas, à de todo o mundo!

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