Carta da Hutukara Associação Yanomami entregue à presidente da República por Davi Kopenawa Yanomami

logo_hutukaraEXMA. PRESIDENTA DA REPÚBLICA SRA. DILMA ROUSSEF

A Hutukara Associação Yanomami (HAY), associação sem fins lucrativos, criada para defender os direitos e interesses dos Povos Yanomami e Ye´kuana, vem, por meio deste documento, manifestar preocupação com os retrocessos na política socioambiental do país e em particular na política indigenista, que se concretizam na expedição da Portaria 303 da AGU, no afrouxamento das regras de licenciamento ambiental, na paralisação de demarcação das terras indígenas e tentativas de expropriação do direito de uso exclusivo dos povos indígenas de seus recursos naturais, para atender a ala mais retrógrada do agronegócio brasileiro.

Foi necessário muito trabalho durante a elaboração da Constituição de 1988 para nela consagrar os direitos dos povos indígenas. Durante 20 anos houve um grande esforço de Estado para implementar os avanços obtidos. Hoje, depois de eleitos governos que acreditávamos democráticos e solidários, vemos direitos básicos, como a demarcação das terras indígenas, que já deveria ter sido concluída há muito tempo, ameaçados. O que dizer da situação dos Guarani Kaiowá?

Neste momento em que a senhora, motivada pelo movimento nas ruas, se dispõe a restabelecer diálogo direto com os povos indígenas, gostaríamos de lembrar que a política indigenista deve ser uma prioridade de Estado. Atravessamos 500 anos de colonização e queremos ser tratados com respeito e dignidade.

Nós Yanomami e Ye´kuana nos unimos aos demais povos indígenas no Brasil em reivindicações que serão expressas em um documento único que pedem a revogação da Portaria 303 da AGU, mais recursos humanos e financeiros para que a Funai conclua a demarcação das Terras Indígenas, compromisso da bancada do governo federal para manter os direitos indígenas conquistados na Constituição de 1988 e aprovação do Conselho de Política Indigenista, recursos para a fiscalização, monitoramento e gestão das terras indígenas por meio da implementação do Plano Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI). E viemos apresentar problemas específicos que requerem atenção.

A demarcação foi um passo fundamental para a sobrevivência dos povos Yanomami e Ye´kuana no Brasil. Recentemente foram localizados grupos isolados no estado de Roraima que sobreviveram devido à garantia do território. Apesar dos avanços alcançados nestes vinte anos,alguns problemas graves continuam e precisam ser solucionados, como o garimpo que está espalhado em diversos lugares dentro da Terra Indígena, inclusive a poucos km de distância do grupo isolado localizado.

Outro problema é que a área leste da Terra Indígena continua ocupada por fazendeiros que deveriam ter saído após a homologação, mas ainda não saíram. O entorno desta área está sendo rapidamente colonizado, requerendo um programa de fiscalização e controle permanente.

A Terra Indígena está localizada nos estados de Roraima e Amazonas e abrange 8 municípios, é fundamental um programa consistente que articule os diversos atores governamentais e não-governamentais para garantir a governança interna dos povos indígenas sobre o seu território, a adequação de políticas públicas às nossas realidades e o combate sistemático aos crimes contra nós praticados.

Pauta Específica:

1 – Efetiva autonomia dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas Yanomami e Leste, como unidades gestoras, contratação de pessoal e capacitação do controle social:

O DSEI Yanomami foi o primeiro a ser criado em 1992 e serviu de modelo a todo o país. A questão de saúde sempre foi um ponto essencial, assim como a terra, para os Yanomami. Nos últimos anos as experiências desastrosas de gestão da saúde indígena pela FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), com vários casos de corrupção e mal uso do dinheiro público, resultaram na piora da qualidade dos serviços de assistência à saúde prestada aos povos indígenas e, em especial, aos Yanomami.

A criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena, em outubro de 2010, foi um passo importante para alterar esta situação. No entanto, a SESAI precisa melhorar a sua atuação por meio da realização de concurso público diferenciado para atender as especificidades da prestação do serviço de saúde indígena, qualificação dos recursos humanos existentes, capacitação e reconhecimento dos agentes indígenas de saúde e fortalecimento do controle social por parte dos povos e organizações indígenas.

2 – Educação:

A principal reivindicação dos Yanomami quanto à Educação é a implantação do Território Etnoeducacional Yanomami e Ye’kuana, criado em agosto de 2010, como uma nova forma de gestão da educação escolar indígena que visa garantir o reconhecimento da diversidade sociocultural entre os Yanomami e Ye’kuana, respeitando seu direito à uma educação intercultural e bilíngue. Em função de suas especificidades, é necessário estruturar o Território Etnoeducacional Yanomami e Ye’kuana como território piloto, com autonomia da gestão financeira, administrativa epedagógica.

Os recursos destinados ao Território Etnoeducacional Yanomami e Ye’kuana devem ser repassados pelo FUNDEB e PNAE, que possui verbas referentes às escolas Yanomami e Yekuana.

Para tanto, há que ser elaborado regulamento específico para a responsabilização dos gestores do Território Etnoeducacional Yanomami e Ye’kuana com vistas à adequada aplicação dos recursos e execução dos Planos de Trabalho com previsão de penalidades nos casos de não cumprimento dos Planos de Trabalho e devolução de recursos que deveriam beneficiar às comunidades indígenas.

Também é preciso acompanhamento sistemático, pelo Ministério Público Federal e MEC, da execução financeira e dos Planos de Trabalho elaborados no âmbito do Território Etnoeducacional Yanomami e Yekuana.

3 – Exploração ilegal de ouro:

Em 2012 a Polícia Federal finalmente mudou a sua forma de atuar contra a exploração ilegal de minério dentro da TI Yanomami, deixando de considerar apenas o garimpo, e passou a enfrentar a complexidade de ações criminosas em área de fronteira, que envolvem a subtração de bens da União, a evasão fiscal, lavagem de dinheiro, formação de quadrilhas. Os crimes ambientais e os cometidos contra a vida, a saúde e a cultura dos povos Yanomami e Ye´kuana ainda não tiveram a devida investigação e por tanto, continuam impunes. O aliciamento de índios para participar das atividades criminosas vem se expandindo e tem como estratégia criar aliados para permitir a continuação da exploração mineral, quando esta passar a ser regulamentada.

É necessário retirar todos os garimpeiros de dentro da TI Yanomami, responsabilizar todos os envolvidos na cadeia de produção ilegal de ouro, com os consequentes crimes contra à União, o meio ambiente e os povos Yanomami e Ye´kuana e apoiar um programa permanente de fiscalização e monitoramento da TI Yanomami.

4 – Retirada de ocupantes não-índios da região do Ajarani:

A T.I. Yanomami foi demarcada em 1991 e homologada em 1992. Na área leste do território indígena, na região do Ajarani, havia ocupantes não-índios a serem retirados da área declarada de ocupação tradicional indígena. A Funai fez o levantamento fundiário e indenizou a maior parte deles. Ocorre que um pequeno número tem resistido sair da terra indígena, mesmo depois de apelar ao sistema judiciário e ver frustradas as suas expectativas. Estes ocupantes não-índios vem ao longo dos anos causando enormes danos ambientais nas áreas que ocupam e impedido a Funai de atuar nesta região estratégica de acesso terrestre à TI Yanomami.

Os Yanomami tem planos de construir um centro de formação na área invadida e reclamam a desintrusão final dos ocupantes não-índios da região do Ajarani.

5 – Desmatamento e grilagem de terras na borda leste da TI Yanomami

A pressão do desmatamento é crescente e a frente de expansão agropecuária avança de modo descontrolado em direção à fronteira leste da TIY, o que aumenta o risco de novas invasões e desmatamento dentro de nossas terras. O problema é maior nos municípios de Iracema e Mucajaí (este último incluído na lista Ministério do Meio Ambiente/MMA que aponta os municípios que mais desmatam no país), mas também ocorre em Amajari e Alto Alegre. Os dados oficiais do INPE mostram o avanço do desmatamento não apenas dentro dos Projetos de Assentamento do INCRA, mas também em outras áreas, sempre em direção à TIY. O desmatamento ilegal continua assim como o avanço de grileiros sobre as terras públicas.

A falta de estrutura e de ação dos órgãos ambientais e fundiários do governo do estado (Femact e Iteraima) deve contribuir para que estes desmatamentos sejam usados para “esquentar” posses e obter a titulação destas áreas através do processo de transferência das terras da União para o estado de Roraima, legitimando e premiando estes crimes. Como falta transparência neste processo até agora não temos acesso aos mapas e coordenadas geográficas das propriedades, posses e lotes que já existem na fronteira da terra indígena, assim como das áreas que estão sendo repassadas e tituladas pelo governo do estado. A ausência do estado nestas áreas cria ainda um cenário de ‘terra sem lei’, que permite que garimpeiros usem a região como base para abastecimento dos garimpos através dos rios e de pistas clandestinas.

6 – Elaboração participativa de um Plano de Gestão para a Terra indígena Yanomami

É necessário apoiar os Yanomami e Ye´kuana por meio de nossas organizações a elaborar um plano de gestão, aberto para constantes atualizações, que aborde todos os problemas e desafios da terra indígena como um todo, articule todos os atores governamentais e não-governamentais, focado para garantir a nossa governança, a adequação das políticas públicas às nossas necessidades e aspirações e aponte maneiras efetivas de combater as ameaças e os crimes praticados contra a nossa terras e os nossos povos. É preciso ver e pensar a Terra Indígena de maneira integral, considerando a sua diversidade regional e cultural. Nós não somos pobres e não queremos ser tratados como pobres, também não queremos ficar empobrecidos se nos roubam o que temos. Em anexo um documento sobre o que é desenvolvimento sustentável para os Yanomami.

Boa Vista – Roraima, 9 de Julho de 2013.

Hutukara Associação Yanomami – HAY

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ANEXO

Opinião dos Yanomami sobre Desenvolvimento Sustentável:

Vocês, brancos, dizem que nós, Yanomami, não queremos o desenvolvimento. Falam isso porque não queremos a mineração em nossas terras, mas vocês não estão entendendo o que estamos dizendo. Nós não somos contra o desenvolvimento: nós somos contra apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem empurrar para cima de nós. O desenvolvimento que vocês falam em nos dar não é o mesmo que conhecemos: vocês falam em devastar a nossa terra-floresta para nos dar dinheiro, falam que somos carentes, mas esse não é o desenvolvimento que nós conhecemos. Para nós desenvolvimento é ter nossa terra com saúde, permitindo que nossos filhos vivam de forma saudável num lugar cheio de vida.

Nós Yanomami entendemos muito bem sobre esse assunto e ficamos apenas preocupados com aqueles que dizem representar todo nosso povo e pedem por mineração. São pessoas que ficam pensando como as mineradoras funcionam, pensam que elas não devastam a floresta, mas não entendem o que realmente vai ocorrer. A mineração não é como o garimpo, não são pessoas que entram na floresta e degradam apenas algumas regiões. A mineração precisa de estradas para transportar os minérios, precisa de grandes áreas para guardar a produção, precisa de locais para alojar os funcionários, fará grandes buracos na terra que não deixarão a nossa floresta voltar a se recuperar.

Entendemos como as mineradoras atuam, não pensem que confundimos seu trabalho com o dos garimpos. Conhecemos muito bem a diferença, morremos muito na época do garimpo ilegal em nossa terra, sabemos as diferenças. Sabemos que as mineradoras vão precisar de energia para funcionar. De onde virá essa energia para fazer as máquinas funcionarem? Como vocês transportarão os minérios? Quando os minérios mais valiosos terminarem e as mineradoras forem embora, o que acontecerá com os trabalhadores que foram até a terra indígena? Quando transformarem e produzirem minério, quais são os resíduos que podem contaminar nossa terra por muito tempo?

Vocês falam que somos pobres e que nossa vida vai melhorar. Mas o que vocês conhecem da nossa vida para falar o que vai melhorar? Só porque somos diferentes de vocês, que vivemos de forma diferente, que damos valor para coisas diferentes, isso não quer dizer que somos pobres. Nós Yanomami temos outras riquezas deixadas pelos nossos antigos que vocês, brancos, não conseguem enxergar: a terra que nos dá vida, a água limpa que tomamos, nossas crianças satisfeitas.

Vocês brancos pensam que nós somos pássaros, ou somos cotias, para nos darem apenas o direito a comer os frutos que nascem em nossas terras? Não pensamos as coisas de forma dividida, pensamos na nossa terra-floresta como um todo. Se vocês destruírem o que está abaixo do solo, tudo que está acima também sofrerá.

Não estamos preocupados apenas com o que vai acontecer com os povos indígenas. Vocês pensam que os brancos não serão afetados? Vocês não aprendem com o que está acontecendo no mundo? Está ficando mais quente, em outros lugares o clima está mudando, os grandes rios estão morrendo, os animais também estão morrendo e todos estão sofrendo. Vocês ainda não aprenderam que esse tipo de desenvolvimento pode matar todos nós?

Não somos apenas nós, povos indígenas, que vivemos na nossa terra. Vocês querem perguntar a todos os moradores da floresta o que eles acham sobre a mineração? Então perguntem aos animais, às plantas, ao trovão, ao vento, aos espíritos xapiri, pois todos eles vivem na floresta. A floresta também pode se vingar de nós, quando ela é ferida.

Sabemos que as leis do Brasil dizem que o subsolo da terra pode ser explorado. Mas queremos garantir nosso direito de escolher o que é melhor para nós, como as próprias leis brasileiras garantem. Não pensamos que todos os povos indígenas são contra a mineração: alguns não querem, outros querem. Mas queremos que seja discutido primeiro o Estatuto das Sociedades Indígenas, porque as palavras do nosso Estatuto já estão muito velhas. Queremos isso para garantir nosso direito de escolher.

Nós sabemos que existem muitos interesses, mais fortes do que políticos, para fazer a mineração em nossa terra. São interesses de quem tem muito dinheiro, de quem quer ganhar muito mais dinheiro. Nós sabemos que não querem nos ajudar, eles dizem apenas que querem nos ajudar, que farão escola, darão assistência à saúde, darão luz, mas sabemos que por trás dessas palavras falsas está o desejo de fazerem crescer seu dinheiro. Eles podem enganar outras pessoas, mas não nos enganam.

Nós Yanomami não queremos mineração, não queremos que ela seja feita em nossa terra. Nós já nos manifestamos contrários à Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), que o governo criou mas resolveu ignorar criando, depois, a Comissão Especial para discutir a lei de mineração em terras indígenas. Se vocês brancos mostrarem um lugar onde os povos indígenas vivem realmente bem com a mineração, um lugar onde vivem com saúde, respeitando suas culturas, onde os brancos os ajudem de forma correta e não os enganem ao darem dinheiro, onde não passem fome e onde não passem sede, se virmos esse lugar, do mesmo tamanho que nossa terra-floresta, podemos voltar a discutir esse assunto.

Vocês estão realmente escutando nossas palavras? Vocês, brancos, realmente escutaram nossas palavras, as palavras do povo da floresta?

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