Uma guerra particular

A polícia segue a lógica da guerra e da ocupação de territórios inimigos, avalia especialista (Fabiano Rocha / Extra / Ag. O Globo)
A polícia segue a lógica da guerra e da ocupação de territórios inimigos, avalia especialista (Fabiano Rocha / Extra / Ag. O Globo)

A socióloga Vera Malaguti Batista alerta para o risco da expansão do “Estado policial” e da gestão militar da vida dos pobres

por Rodrigo Martins – Carta Capital

Os espetáculos de truculência e despreparo das polícias estaduais na repressão às manifestações, somados à barbárie cotidiana nas favelas e periferias das grandes cidades, fizeram ressurgir a bandeira da desmilitarização das polícias. Uma proposta muito distante da realidade, lamenta a socióloga Vera Malaguti Batista, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora da Universidade Cândido Mendes. Antes disso, sugere a especialista, é preciso interromper é a expansão do chama de “Estado de polícia”. “Precisamos parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão”, diz Batista, organizadora do livro Paz Armada, Criminologia de Cordel, lançado em 2012 pela Editora Revan. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: Como a senhora avalia o comportamento das polícias durante os protestos do último mês?
Vera Malaguti Batista: A polícia se comportou como costuma se comportar. Só que dessa vez o alvo da truculência era diferente, o público era outro. Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens de classe média e brancos. Cada vez que um ônibus é incendiado na favela, o episódio é tratado pela mídia como um ato de vandalismo ou terrorismo. Mas por trás daquele veículo em chamas, quase sempre há um episódio anterior de violência policial, um assassinato. Trata-se de uma forma de protesto desesperada. A classe média se deparou nas ruas com uma forma de atuação policial normalmente dirigida aos pobres, aos moradores de bairros periféricos. Não há nada de novo.

CC: O que explica essa cultura da truculência?
VMB: O coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante da PM do Rio de Janeiro nos dois governos de Leonel Brizola e assassinado em 1999, dizia que o trabalho policial no Brasil ficava entre o saber jurídico e o saber bélico. Este último está subordinado à lógica das Forças Armadas, na qual o objetivo de uma ação é sempre conter ou eliminar um inimigo. Mas as técnicas e os métodos de policiamento deveriam ter um corpo teórico à parte, o mais afastado possível do paradigma bélico. Não estamos em guerra tampouco enfrentando inimigos nas ruas. A questão central é: a quem a polícia deve servir? Nos Estados Unidos, Itália, França, Alemanha, Cuba, as técnicas e métodos da polícia compõem um corpo teórico bastante distinto da teoria bélica. Há manuais internacionais de controle de distúrbios, discussões sobre o uso legítimo e o uso excessivo da força, padrões de abordagem.

CC: E no Brasil?
VMB: Aqui, a lógica é outra: ocupação do território inimigo. Na medida em que a criminalidade foi caminhando para o centro da política e a mídia começou a criar certa histeria nacional, as pessoas passaram a aceitar como normais e depois a aplaudir ações de guerra. Os mesmos cidadãos que criticavam a violência da ditadura passaram a justificar certos abusos da polícia no regime democrático. A ordem é partir para cima de qualquer forma. Se o policial matar, não tem galho. Registra o homicídio como auto de resistência. Ao mesmo tempo, de forma maluca, há uma expansão do número de policiais. Outro dia vi o governador do Rio, Sergio Cabral, todo orgulhoso dizendo que ele colocou nas ruas 6 mil novos policiais por ano, enquanto no passado não passavam de 500 por ano. Eu considero isso uma notícia apavorante. É o que eu chamo, no meu livro, de Estado de polícia. Mas a classe média ainda não se deu conta disso.

CC: Em recentes protestos na periferia de São Paulo e no Complexo da Maré, no Rio, alguns cartazes alertavam: “A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”.
VMB: Tome o exemplo do massacre na Maré. A ação de meia dúzia de pequenos traficantes e a morte de um sargento do Bope, a tropa de elite da polícia fluminense, deu uma espécie de carta de carta branca para a polícia promover uma chacina na favela. Isto, sim, foi uma verdadeira ação terrorista. Revela um despreparo total, uma tropa enlouquecida, disposta a tudo. E a mídia incentiva este tipo de postura. Cria slogans como “combate ao crime”, “guerra às drogas”, “batalha contra o crack”. Hoje, São Paulo tem um efetivo de 100 mil policiais. O Rio tem mais de 60 mil. Todos os anos, os diferentes governos jogam nas ruas milhares de trabalhadores armados com pouca ou nenhuma formação. E há uma enorme plateia aplaudindo essa política, demandando mais truculência. Um dos grandes equívocos dos governos do PT foi ter permitido, e até incentivado, a expansão do Estado de polícia. Como diz o historiador Joel Rufino dos Santos, o que precisamos ser: guardiões da ordem ou dos direitos humanos?

CC: Ter mais policiais nas ruas é um problema?
VMB: Sem preparo, sim. É preciso pagar melhores salários, melhorar a formação dos policiais. Aquele homem fardado, no meio de uma multidão enfurecida, adestrado para a guerra e sem saber como lidar com civis, também vive um grande dilema.

CC: É o caso de levantar a bandeira da desmilitarização da polícia, como alguns manifestantes têm sugerido?
VMB: Estamos tão distantes disso… A primeira coisa que precisamos interromper é a expansão do Estado de polícia. Parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão. Esse é o consenso da sociedade hoje. Precisamos de muitas prisões, penas mais duras para os criminosos. Em algum momento essa política de encarceramento em massa vai ruir, não tem como se sustentar. Antes de colocar mais policiais nas ruas, é preciso repensar o que queremos. Viver num Estado de polícia ou num Estado de direito? São coisas antagônicas. Como ressalta o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, ‘o estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos estão subordinados ao poder daqueles que mandam’. Hoje, não tenho dúvidas de que vivemos neste segundo cenário.

CC: A senhora é uma crítica ferrenha das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio, que contam com ampla aprovação da população, segundo pesquisas. O que há de errado no modelo?
VMB: É um projeto de alta concentração de forças militarizadas em áreas pobres. Se fosse um programa para a segurança pública do Rio de Janeiro, ele não poderia ser direcionado só para as favelas. A UPP é uma gestão policial da vida dos pobres. Transforma a polícia como principal política pública, acima de todas as outras. Não vejo dessa forma. As pessoas se sentem seguras quando têm transporte, alimentação, limpeza urbana. Além disso, esse modelo de controle territorial está inserido num paradigma bélico. Segurança pública não é guerra tampouco disputa territorial. A UPP parece uma invenção de Sergio Cabral ou do seu Secretário de Segurança Pública, mas o modelo foi testado em outros lugares do mundo e fracassou. O projeto foi vendido aqui como panaceia, uma espécie emplastro Brás Cubas, destinado a curar todos os males da humanidade, nos delírios do célebre personagem de Machado de Assis.

CC: Onde mais esse modelo foi adotado?
VMB: Em Medellín, os pesquisadores do Observatorio de Seguridad Humana têm uma série de estudos e estatísticas que revelam os equívocos desse modelo de ocupação militarizada em áreas pobres da Colômbia. O geógrafo Milton Santos ressalta que a aposta na “recuperação de territórios” remete ao conceito bélico norte-americano e israelense de ocupação de territórios estrangeiros. Sim, porque os governos dos Estados Unidos e de Israel não têm coragem de impor esse mesmo modelo dentro de casa, para a sua própria população.

CC: Vende-se a ideia de que a UPP é um modelo de policiamento comunitário.
VMB: UPP não é policiamento comunitário, é uma tomada de território por forças militarizadas. Algo muito semelhante ao que ocorre na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. O coronel Nazareth Cerqueira foi um dos primeiros a implantar o policiamento comunitário na América Latina nos anos 1980. O projeto tinha no horizonte a ideia de o policial estar próximo, mas não metendo o pé na porta. O oficial deveria ser acessível, próximo para atender às demandas da população. Mas nunca para impor sua disciplina, o protagonista era a população.

CC: O que é a vida em uma favela “pacificada”?
VMB: O tipo de atuação policial que se faz nas favelas ocupadas pela polícia no Rio só poderia ser feita na zona sul da cidade caso o governo decretasse “estado de sítio”. Há toques de recolher, abordagens ostensivas, invasão de domicílios sem mandado judicial, a proibição de tudo. Os moradores do morro do Cantagalo costumam reclamar que os bares de Ipanema ficam abertos a noite toda, mas as biroscas da favela têm horário para fechar. Para fazer uma festa em casa, o morador de lá tem de pedir autorização. Se fosse uma experiência de policiamento comunitário, como cinicamente costumam dizer, as intervenções deveriam ocorrer em todo o bairro de Copacabana, não apenas nas favelas dali.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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