“Massacre de indígenas é faroeste caboclo em MS”, por Samia Roges Jordy Barbieri*

Constituição 1988

Importante analisar a situação em que vivemos em Mato Grosso do Sul, nas questões relacionadas ao Direito indígena. Sou procuradora municipal concursada desde 1991. Após os meus estudos, tanto no mestrado como no doutorado, queria que meu trabalho acadêmico refletisse a realidade local e que esses mesmos trabalhos pudessem demonstrar a importância do Princípio da Dignidade Humana no Direito, em especial ao indígena.

Digo isso porque ninguém que more em Mato Grosso do Sul, lugar onde vivo com minha família, pode dar as costas para o que vivemos como a luta dos povos indígenas. Luta e resistência por suas terras, com tanto sangue derramado no conflito, com morte de várias lideranças, impunemente.

Vivemos um período de crises e de insegurança jurídica quando recebemos a notícia de mandados de reintegração de posse contra índios em Mato Grosso do Sul, porque assistimos ao acirramento do ódio étnico entre povos indígenas e ruralistas. Isso gera angústia para ambos os lados, e se iniciam os maiores conflitos de que se tem notícia.

Importante salientar que como operadora do Direito, presidente da Comissão Permanente de Assuntos Indígenas (Copai) da seccional de Mato Grosso do Sul da Ordem dos Advogados do Braisl, a única comissão permanente do país, não admitimos o descumprimento de qualquer ordem judicial. Digo isso porque isso foi dito pela Polícia Federal de MS, em nota pública.

Como observadores da causa indígena, a Copai jamais incitou qualquer população indígena. O protagonismo é dos povos indígenas e, assim, tratamos a questão indígena, respeitando a autodeterminação, a cultura e o direito à alteridade desses povos na sua luta infindável por sua tekoha.

O Judiciário como um dos pilares do Estado Democrático de Direito deve ser respeitado em suas decisões. E nessas decisões proferidas pelo Judiciário relacionadas ao Direito indígena devem ser observados, em primeiro lugar, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, as normas específicas como direito à alteridade e à diferença, autodeterminação, consulta livre, prévia e informada, repartição justa e eqüitativa dos benefícios, e ainda as ciências humanas como antropologia, sociologia e história, para entendermos a sistemática e a completude da situação e o porquê de tanto conflito.

Nunca havia assistido a tal situação em que estamos vivendo, assistindo à reintegração de posse sem a observância do princípio da dignidade da pessoa humana, com armamentos letais e sem o cuidado de manter a todo o momento o diálogo, para que se evite a morte de ambos os lados. O resultado foi a morte de Oziel Gabriel e a internação de Joziel Gabriel, que foi alvejado com um tiro na nuca, com risco de tetraplegia.

Cabe salientar, por oportuno, que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana significa a conquista da humanidade após a barbárie de duas guerras mundiais. A humanidade, através da Carta da Organização das Nações Unidas de 1945 e da Declaração Universal de Direitos do Homem, buscou resguardar como princípio universal e geral a proteção da humanidade aos horrores das guerras, como esperança última de guarida dos direitos humanos e das liberdades individuais.

A demarcação das terras indígenas faz parte do mandamento constitucional. Temos o direito indígena permeando todo o ordenamento constitucional não-somente os artigos 231 e 232, que são a base do direito indígena, como também: o artigo 1.º, inciso I, art 3°, inciso IV, artigo 4°, inciso III, § único, artigo 5°inciso LV, artigo 20, XI, § 2°, artigo 22 inciso XIV, artigo 49 inciso XVI, artigo 109 inciso XI, artigo 129 inciso V, artigo 174 § III e IV, artigo 176 § 1°, artigo 210 § 2°, artigo 215 § 1°, artigo 216 § 1° e 2°, além do artigo 225, que trata do meio ambiente, pois onde existem os povos indígenas há a preservação do ecossistema e da diversidade.

Contudo, o que mais importa neste momento, é o que determina o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, no ADCT, onde está disposto que em cinco anos da promulgação, as terras indígenas deveriam ser demarcadas.

Não podemos rasgar o texto da Constituição e assistirmos à dizimação e ao genocídio cultural dos habitantes originários. A luta e sua resistência dos povos indígenas são louváveis. Precisamos situar a questão indígena para nos posicionarmos. A população indígena constitui cerca de 0,3% da população nacional em aproximadamente 11% do território nacional.

Por que o Estado até agora não conseguiu resolver esta situação? Obviamente, por questões capitalistas ligadas ao poder econômico, à morosidade do processo de demarcação, e mais uma infinidade de recursos intermináveis por ambas as partes, que procuram resguardar os seus direitos, e a indefinição do julgamento pelo Judiciário.

Necessitamos, urgentemente, de uma cultura de paz para o Mato Grosso do Sul, e esta é a missão da Comissão Permanente de Assuntos Indígenas da OAB-MS e de todos nós, sociedade civil, que não aguentamos viver em uma terra de sangue derramado, um verdadeiro nazismo ou apartheid social das populações indígenas, donos de uma cultura vastíssima e de uma resistência infindável. Nós que vivemos em Mato Grosso do Sul bem sabemos.

Precisamos da definição de políticas públicas de governo para dirimir o conflito, porque a insegurança jurídica faz duas vítimas: os povos indígenas e fazendeiros que adquiriram suas terras de boa-fé, enquanto a União assiste ao verdadeiro massacre entre seres humanos, aparecendo na área de conflito apenas em caso de mortes, para voltar num próximo massacre.

Samia Roges Jordy Barbieri é advogada, procuradora municipal de Campo Grande (MS), presidente da Comissão Permanente de Assuntos Índigena da OAB-MS e professora de Direito Constitucional, Direito Indígena e Direito Administrativo. Publicada na Revista Consultor Jurídico, em 14 de junho de 2013.

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