“Fala anti-indígena de ministro é licença para matar”

Documentário "As Hiper Mulheres" estréia nesse sábado em São Paulo
Documentário “As Hiper Mulheres” estréia nesse sábado em São Paulo

É o que diz o antropólogo Carlos Fausto, diretor do filme As Hiper Mulheres, que estreia neste sábado, em São Paulo

Por Felipe Milanez, em Carta Capital

A política é feita de atos, gestos, retóricas, falas. Por isso que, na situação atual da crise indígena, a política anti-indígena não é feita apenas pela não demarcação das suas terras tradicionais, ou pela construção de grandes obras dentro de seus territórios sem que sejam, ao menos, consultados. Tem sido feita também de falas agressivas contra os índios até pelo primeiro escalão do governo. E palavras ganham dimensão no espaço. Como diz o antropólogo Carlos Fausto, na entrevista que segue: “Uma palavra anti-indígena de um ministro é entendida nos locais de conflito como uma licença para matar.”

Fausto dirigiu com Leonardo Sette e com Takumã Kuikuro o filme “As Hiper Mulheres”, um documentário extraordinário sobre um dos mais belos, e complexos, rituais dos povos indígenas do Xingu, o Jamurikumalu. Mas o filme é muito mais do que um documentário etnográfico. Trata-se de um musical, sensorial e envolvente. Ganhador de diversos prêmios nacionais e internacionais, entre eles o Prêmio Especial do Juri e Melhor Montagem no Festival de Cinema de Gramado, Melhor som no Festival de Brasília, Troféu Imprensa e Prêmio do Público no FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – e o Prêmio Al Jazeera para Documentário Vancouver Latin American Film Festival 2012, As Hiper Mulheres já está em cartaz no Rio e em Belo Horizonte.

O documentário estreia nesse sábado 15 de junho em São Paulo, e em breve vai estar em Recife, Porto Alegre e Brasília, nas próximas semanas. É um filme imperdível para ser visto – e ouvido, pois o som é extraordinário – no cinema, e em rara chance. Pela primeira vez, um filme dirigido por um indígena entra em cartaz. Takumã Kuikuro, 30 anos, é o filho mais velho de Samuagü Kuikuro e Tapualu Kalapalo. Jovem talentoso documentarista, ele foi treinado pelo projeto Vídeos nas Aldeias. É um obstinado e inspirado film maker que dirigiu outros três documentários. Talvez essa seja uma resposta digna e elegante por parte dos índios aos ataques racistas que estejam sofrendo nos últimos tempos: mostrar pela arte a beleza e a riqueza de sua cultura. Como cantou Gilberto Gil na música “Um sonho”: Viva o índio do Xingu!

Carlos Fausto é antropólogo, fotógrafo e documentarista. Professor do Museu Nacional, UFRJ. Publicou recentemente Warfare and Shamanism in Amazonia (Cambridge University Press, 2012) e é autor de diversos livros e artigos sobre os índios da Amazônia. Atualmente, trabalha entre os Kuikuro do Alto Xingu, onde desenvolve além de pesquisas acadêmicas, projetos de documentação e de produção cinematográfica em colaboração com os Kuikuro.

Na entrevista abaixo, o antropólogo comenta, além do documentário que dirigiu, sobre a crise atual da questão indígena no Brasil. Nada melhor do que, no dia seguinte ao protesto de ruralistas contra os direitos indígenas pelo Brasil afora, ir assistir As Hiper Mulheres. E inspirar-se pela luta das grandes guerreiras kuikuro.

Carta Capital – Qual a conexão entre os diversos conflitos indígenas pelo País?

Carlos Fausto – É um momento particular: hoje só os índios protestam nacionalmente. A sociedade civil organizada, que ajudou a levar o PT ao poder, parece calada, incomodada em quebrar um pacto de muitas décadas. É preciso entender que a função dessa sociedade civil é justamente protestar, limitar o poder e, quando possível, negociar acordos que façam avançar as causas sociais. Mas por que os índios protestam de Belo Monte ao Mato Grosso do Sul? Claro que são situações diferentes. Fora da Amazônia Legal, o problema indígena é de terra. Bastaria ver os dados dos censos para entender isso: quase metade da população indígena ocupa apenas 1,5% da área total das terras indígenas. Ou seja, é pouca terra para tanto índio. E para agravar a situação, esses índios vivem em áreas de terras férteis localizadas em áreas bem estruturadas. Com a valorização dos últimos anos, a terra nessas regiões alcançou um valor espantoso. Isso tudo acirra o conflito. Porém, isso nada tem a ver com Belo Monte, certo? Em alguma medida, tem sim a ver.

O governo federal impôs um monte de obras goela adentro da sociedade e, sobretudo, dos índios. Tudo com dinheiro do BNDES direcionado a consórcios empresariais que hoje dominam o Brasil. Eu me sinto de volta ao governo Geisel. Os índios estão sofrendo derrotas atrás de derrotas. Justamente eles que nos salvaram, no final dos anos 1980, do desastre – admitido até pelos técnicos da Eletronorte – que teria sido a construção da Usina de Belo Monte, nos moldes do projeto original. Quando o governo federal acirra as tensões, quando impõe derrotas seguidas aos índios, quando usa da truculência para resolver problemas sociais, o cenário para a revolta está armado. Quem acendeu o pavio foi o governo federal com a paralisação da demarcação de terras indígenas no Paraná, ordenada pela ministra da Casa Civil com o objetivo de satisfazer seus currais eleitorais, e com o projeto de mudar a mecânica do processo demarcatório. Junte-se a isso a incapacidade de mediar o conflito latente e permanente no Mato Grosso do Sul e temos o cenário perfeito para essa revolta.

CC – Por que é importante ver o filme, além de tudo, em meio a essa crise da questão indígena?

CF – Acho que ver o filme independe da crise. Ele vale, e esse sempre foi nosso intuito, como cinema e deveria atrair a todos que tem a sensibilidade para ver filmes menos lugar-comum. Agora, é óbvio que, neste contexto, ele ganha uma outra camada de significações. É, se não me engano, o primeiro filme de produção compartilhada com indígenas (um dos diretores é Takumã Kuikuro) que entra em cartaz. Isso não é pouco. Mostra como um trabalho sensível, cuidadoso, de longo diálogo e envolvimento com uma comunidade indígena conduz a uma sinergia positiva, uma troca em que ambas as partes têm a ganhar. Esse envolvimento requer a capacidade de escuta de parte a parte. E é justamente a capacidade para ouvir as reivindicações dos índios, o que falta neste momento. A crise até tardou a acontecer. Os índios chegaram a um limite de humilhação, humilhação hoje imposta também pelo governo federal, que sempre serviu como anteparo para minimizar os conflitos locais. Uma palavra anti-indígena de um ministro é entendida nos locais de conflito como uma licença para matar.

CC – O que pode esperar do filme o espectador que quer saber mais do universo indígena que esta sendo tão atacado?

CF – O filme não quer ensinar, nem explicar nada. É um musical, que fala da transmissão oral dos cantos, através de personagens e dramas humanos. Ele não pretende exotizar – o que se vê nas telas são pessoas com seus dramas e alegrias. Mas, é claro, pessoas não existem em um vácuo. Nossos dramas humanos também são culturais, eles têm uma forma própria: aqui no Rio, na aldeia kuikuro, em Oklahoma, em Pequim, no Irã ou em qualquer lugar. É apenas preciso abrir os olhos e escutar. O problema é que o Brasil vê essas formas culturais indígenas como atraso ou com um romantismo ingênuo. Em ambos os casos, exotiza, afasta, exclui. A fita requer uma educação do olhar e do ouvir. Ela quer envolver o espectador na vida kuikuro e fazê-lo compreender esse mundo desde uma perspectiva interna e íntima.

CC – Em meio a um ataque também sobre as mulheres no Brasil, como a “Lei do Nascituro”, qual a contribuição moral das revoltas das mulheres kuikuro para o Brasil hoje?

CF – Acho que o filme mostra formas alternativas para lidar com desafios ético-morais. O ritual das Hiper Mulheres permite criar um mundo subjuntivo, um “como se”, um frame temporário no qual se podem fazer coisas que seriam inadequadas em um tempo cotidiano. O rito e o mito falam de uma utopia feminina de um mundo sem homens, de mulheres com uma sexualidade agressiva, mas esse mundo não pode ser humano. Ao final, as mulheres se tornam espíritos, hiper-mulheres, congregando os dois gêneros em si mesmas e partem para longe. O mundo humano, ao contrário, é feito de complementariedades, de formas que permitem a relação entre homens e mulheres.

O filme narra assim uma explosão da sexualidade, da oposição contrastiva, da revolta, mas ao mesmo tempo institui os mecanismos para sua superação. Em nossa sociedade, os rituais não parecem mais conseguir dar voz a esses conflitos e os mecanismos da democracia representativa não estão funcionando, pois foram corroídos pela pragmática da política. Um exemplo disso é o PT ter permitido, por interesses eleitorais, que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmera fosse assumida por um pastor evangélico. Há limite para tudo. Como é possível discutir questões ético-morais neste contexto?

Informações:

www.ashipermulheres.org/

http://www.facebook.com/ashipermulheres?fref=ts

As Hiper Mulheres – Itão Kuêgü

Brasil, 2012. Direção: Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. 80 minutos

Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 4, 20h30 (projeção digital)

Sinopse

Temendo a morte da esposa idosa, o marido pede que seu sobrinho realize o Jamurikumalu, o maior ritual feminino do Alto Xingu (MT), para que ela possa cantar mais uma última vez. As mulheres do grupo começam os ensaios enquanto a única cantora que de fato sabe todas as músicas se encontra gravemente doente.

Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.

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