Turquia: ‘População não se sente representada por premier’, diz historiadora. Mas acha que Erdogan não vai ceder

No início da tarde a multidão era impressionante na Praça Taksim. Foto: YANNIS BEHRAKIS - REUTERS
No início da tarde a multidão era impressionante na Praça Taksim. Foto: YANNIS BEHRAKIS – REUTERS

Por Cláudia dos Santos, em O Globo

RIO — Ao ler “Istambul – memória e cidade”, de Orhan Pamuk, a historiadora brasileira Monique Sochaczewski Goldfeld viu paralelos entre a antiga capital do Império Otomano e o Rio de Janeiro, que também perdera seu status político. Escolheu o tema para sua tese de doutorado e passou um semestre na Universidade de Bilkent, em Ancara, em 2010, dando início a um relacionamento acadêmico direto que perdura até hoje. Em abril, pouco antes da eclosão dos protestos, Monique esteve em Istambul para participar de um simpósio e ampliar suas pesquisas sobre a Turquia. Na próxima quarta-feira, dia 12, às 20h, ela dará uma palestra sobre a situação turca na Casa do Saber O GLOBO. Monique ressalta que os protestos no Parque Gezi, junto à Praça Taksim, são o ápice de uma série de insatisfações da população turca que não se sente representada pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), do premier Recep Tayyip Erdogan, que defende valores islâmicos e mostra tendências autoritárias. Ela também ressalta o forte uso das redes sociais, nas quais os manifestantes transformam em humor as críticas do premier.

O GLOBO: O que está acontecendo na Turquia?

Monique Sochaczewski Goldfeld: Não é uma Primavera Turca, como tem sido afirmado por aí. O termo correto talvez seja uma explosão social turca. A violência da repressão policial aos protestos contra a reforma no Parque Gezi acabou reunindo ambientalistas, esquerdistas, kemalistas, grupos LGBT, curdos e anarquistas. E não eram grupos originalmente unidos; kemalistas e esquerdistas, historicamente, sempre se estranharam. A expressão Revolução das Árvores, usada por alguns jornais, é muito bonita, mas acho que o movimento é mais bem definido pelo termo explosão social.

O GLOBO: Na sexta-feira, o premier Recep Tayyip Erdogan afirmou que não haveria mais um shopping center em Gezi, mas que a construção do quartel estava mantida. Isso já seria uma concessão?

Monique Sochaczewski Goldfeld: É uma conciliação, mas Erdogan não cede. Ele afirmou que o quartel terá uma área verde, “ainda melhor que o Parque Gezi”. Os protestos, que se espalharam por toda a Turquia, foram um alerta para o premier. Mas, mesmo depois de ele pedir que as pessoas voltassem para casa, elas continuam no parque. As chamas ainda estão acesas. Outra coisa interessante é a diferença de postura entre Erdogan e o presidente, Abdullah Gül, o que deixa entrever uma divisão no AKP. Gül vem adotando um tom mais conciliador, já Erdogan é visto como autoritário.

O GLOBO: A reforma do Parque Gezi foi o estopim, mas o movimento não se resume a isso. O que há por trás de tanta revolta?

Monique Sochaczewski Goldfeld: Nos últimos meses, houve dois casos de truculência policial na Turquia: na Middle East Technical University, em Ancara, e no 10 de Maio. Além disso, a grande imprensa não vinha noticiando casos de corrupção, em um sinal de interferência do governo. A Turquia é o país com o maior número de jornalistas presos no mundo. Some-se a isso o que vem sendo visto como islamização: a declaração de Erdogan de que as mulheres deveriam ter três filhos; a restrição à venda de bebidas alcoólicas; o cerceamento do ato de beijar em público, o que levou a um beijaço em Ancara. Os seculares estão bastante incomodados com isso. Os esquerdistas, por sua vez, estão irritados com o que veem como um neoliberalismo do governo, com suas megaobras, como a terceira ponte sobre o Bósforo e até um novo canal em Istambul. Também houve reação à declaração de apoio aos rebeldes sírios, vista como interferência em assuntos que não dizem respeito ao país. A insatisfação já vinha num crescendo, ela apenas explodiu em meados de maio.

O GLOBO: Os protestos se espalharam por mais de 70 cidades. Parte é em apoio ao movimento, mas não teriam essas cidades suas próprias razões para protestar?

Monique Sochaczewski Goldfeld: Tenho mais informações sobre as três maiores cidades: Istambul, Izmir e Ancara. Em Ancara a situação é extrema; meus amigos não saem de casa com medo. Mas no Sudeste, uma região predominantemente curda, também tem havido protestos.

O GLOBO: A mídia foi severamente criticada. Em vez dos protestos, a CNNTürk exibiu um documentário sobre pinguins…

Monique Sochaczewski Goldfeld: Os turcos tiveram de ver os protestos por canais estrangeiros, como BBC e VGTV (da Noruega), ou o portal de notícias on-line OdaTV. A única estação local a transmitir algo foi a Halk TV. Há rumores de que Halk TV e OdaTV seriam retirados do ar. Os próprios turcos recomendam acompanhar as notícias pelas redes sociais. Também achei muito interessante o uso do crowdfunding: em nome do “povo turco”, um grupo fez uma campanha on-line para arrecadar mais de US$ 50 mil, a fim de publicar anúncios de página inteira no “New York Times”, explicando as razões dos protestos. Eles arrecadaram muito mais que a meta. Os turcos também têm usado muito o app de vídeos Vine. O uso dessas mídias lembra o que ocorreu na Primavera Árabe e na Onda Verde iraniana, mas os turcos têm mais traquejo no uso das redes sociais. No Egito, a maioria dos tuítes vinha de fora; na Turquia, 80% vêm de lá mesmo. Eles fazem muitas ironias com pinguins e com o termo çapulcu (saqueadores), como foram chamados por Erdogan.

O GLOBO: A oposição conseguirá se unir para fazer frente a Erdogan, que sempre ressalta o fato de ter sido eleito com quase 50% dos votos?

Monique Sochaczewski Goldfeld: Inicialmente, o AKP teve um grande apoio. Eles resolveram os problemas econômicos do país. Isso acabou contribuindo para a postura arrogante de Erdogan. Esquerdistas e kemalistas agora se uniram, mas, se conseguirão chegar a alguma coisa, essa é a pergunta de ouro.

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