Mulheres em defesa da grande Mãe Natureza

Luana Kariri é líder natural na aldeia Tapuia-Kariri em momentos decisivos Foto: Alex Costa
Luana Kariri é líder natural na aldeia Tapuia-Kariri em momentos decisivos Foto: Alex Costa

Entre os povos indígenas do Estado do Ceará, destacam-se as muitas lideranças femininas

Por Melquíades Júnior, Diário do Nordeste

São Benedito/Aquiraz (CE) Quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência da República Federativa do Brasil, dona Francisca Alves, a primeira mulher cacique do Brasil, estava transferindo o cacicado para a sua filha, Juliana Alves. Uma é a cacique Pequena e a outra, a filha, é a cacique Irê, lideranças dos Jenipapo-Kanindé, de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

Mas foi uma soma, e não transferência, de poderes entre mulheres indígenas do Ceará, cujo protagonismo cresce mais rápido que na sociedade dita tradicional. Em 25 anos de processo de recolhimento étnico no Ceará, as mulheres indígenas têm sido, em muitas etnias, as principais lideranças dentro e fora dos povoados. Sem parecerem concorrentes de caciques e pajés.

Negociação

Foi necessária uma negociação e diálogo com os Tapuia-Kariri, no município de São Benedito, para concessão de entrevista à equipe do Diário do Nordeste. O questionamento com a procura da imprensa é comum, em vista do receio que os índios têm de serem tratados “lá fora”.

E depois de vencer um decreto oficial que afirmava não existirem índios no Ceará, três décadas é pouco tempo para se vencer muitas barreiras de estereótipos sobre eles. Ainda tem quem procure índios no Ceará achando que vai encontrar pessoas seminuas, usando um código de linguagem “esquisito”.

Cacique e pajé autorizaram a entrevista, com a condição de que esperássemos a chegada de Luana Kariri, ou Luana Gomes da Silva, 25. Ela e Andrea Kariri são líderes naturais da comunidade, respeitadas pelo cacique Cícero Cândido e pelo pajé Tissé (Sebastião Pedro).

Desde que foram para a Assembleia Estadual dos Povos Indígenas na Aldeia Cajueiro, em Poranga, as duas mulheres voltaram para a comunidade com sede de luta e de direitos. “A gente era considerada analfabeta, ignorante. Depois, com a experiência, o conhecimento, viram que podemos representar a comunidade, saber dialogar lá fora. Todo mundo queria me esperar para ver se dava certo ou não a entrevista, para você ver a confiança”, afirma Luana.

Organização

As mulheres estão organizadas na Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice), integrada à Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).

Para a índia Ceiça Pitaguary, do Departamento de Mulheres Indígenas da Apoinme, os direitos dos índios serão respeitados na medida em que eles forem absorvidos também nas outras esferas da sociedade. Ela defende, entre outras coisas, que a Coordenadoria de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial tenha um indígena em sua equipe.

As cartas abertas à presidente Dilma, elaboradas na terceira assembleia anual, em outubro de 2011, e na segunda Assembleia Nacional das Mulheres Guerreiras Indígenas, em março do mesmo ano, demonstram a sintonia do segmento: “Continuaremos defendendo o nosso direito de usufruto exclusivo de nossos territórios. Não aceitamos negociação nem venda. Nossas lideranças estão hoje sendo criminalizadas por defender a Mãe Terra, pois ela é a nossa vida. Dessa forma, continuaremos a fazer a retomada das nossas terras, pois entendemos que só dessa maneira teremos acesso a ela, para garantir moradia digna, cultivo e infraestrutura de serviços essenciais, como escola e postos de saúde”, destaca.

As mulheres indígenas repudiam, de forma veemente, o modelo de desenvolvimento empregado pelos governos: “por não respeitar os povos indígenas e por constante violação dos direitos das mulheres, homens e crianças. Não somos contra o progresso, mas não aceitamos esse progresso de qualquer forma”. A carta da assembleia nacional ainda esclarece que esse “desenvolvimento a qualquer custo coloca o lucro acima de tudo e de nossas próprias vidas e da vida de nossa Mãe Natureza”.

Respeito

A liderança feminina entre as comunidades indígenas do Ceará é reveladora do respeito à diversidade dentro e fora dos movimentos das comunidades tradicionais do Nordeste.

Na Lagoa Encantada (Aquiraz), cacique Irê veste o cocar, pinta o rosto e se levanta para a luta inspirada na mãe. Irê (fora dali mais conhecida por Juliana) comanda os principais rituais da etnia. O primeiro deles é o principal: a festa do Marco Vivo de Imburana.

A cacique leva a Imburana para o ponto mais alto do morro. Finca o tronco em terra. Pede silêncio e inicia as orações. Agradece que a presidente Dilma reconheceu o território. Pede ao pai Tupã e à Mãe Natureza saúde e coragem. E ganha, de todos os irmãos de luta, respeito.

Liderança feminina se destaca em Pernambuco

Uma respeitosa senhora de 73 anos, a cacique Hilda Bezerra Barros, da Aldeia Pankararu de Entre Serras, município de Tacaratu, localizado no médio São Francisco, sertão de Pernambuco, é admirada por outros povos indígenas por seu exemplo de perseverança na luta pela manutenção da cultura indígena na região Nordeste. Ela nos recebeu em sua casa de forma tranquila e acolhedora e nos contou que a terra já foi demarcada e homologada desde 1987, mas que ainda há muitos posseiros que não querem sair.

Nos mostrou, também, um vídeo que nos impressionou. Trata-se do grande evento religioso do povo Pankararu, realizado todo mês de fevereiro, a Corrida do Imbu, nas quatro noites de sábado e nos quatro domingos daquele mês, numa reverência à safra daquele fruto regional. O evento festeja a safra do umbu, mais conhecido na região como imbu, e também é um ritual de purificação dos índios Pankararu, onde dançam com o cansanção, designação comum no Nordeste para plantas urticantes, que eles passam nas próprias costas.

Segundo a cacique Hilda, lá ninguém entra à toa. Para participar, é necessário uma semana prévia de abstinência. Os não-índios podem assistir, desde que tenham permissão, mas não tudo. Assim como os Fulni-ô, os Pankararu também têm um segredo no seu retiro espiritual que não pode ser revelado a quem não faz parte da aldeia. As roupas – feitas de palha, têm cruzes nas costas, o que remete à fé católica, um traço da convivência com os europeus que trouxeram a sua religião para o Brasil há cinco séculos – foram confeccionadas graças a uma doação da Prefeitura, que tem sido parceira dos Pankararu.

Para os Pankararu é muito importante preservar esse ritual, visto que muito dos costumes já se perderam. Em Entre Serras, todas as escolas são indígenas, embora o povo não fale mais a língua dos antepassados, o Tupi. A comunidade depende da agricultura familiar, já que a caça e a pesca estão escassas. O artesanato indígena começa a despontar como uma possibilidade de complemento da renda, que, como em outras comunidades rurais do Nordeste, tem sido incrementada por aposentadorias rurais e incentivos do governo.

Compartilhada por Janete Melo

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