‘O conflito de hoje é resultado da violação de ontem’, diz coordenador do Cimi em MS

Foto - Valdenir Rezende (Correio do Estado)Flávio Vicente Machado explica como ocorre o processo de demarcação de terras indígenas

Por Cristina Medeiras, em Correio do Estado

Há cinco anos trabalhando como coordenador-conselheiro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Campo Grande, o filósofo e missionário Flávio Vicente Machado segue a cartilha do órgão, que está a serviço dos projetos de vida dos povos indígenas. “Apoiamos as alianças desses povos entre si e com os setores populares para a construção de um mundo para todos, igualitário, democrático, pluricultural e em harmonia com a natureza”. Nestes dias de conflitos entre indígenas, proprietários de terras e o poder constituído em Mato Grosso do Sul, ele faz uma radiografia histórica do que envolve o direito sobre a terra.

CORREIO PERGUNTA Diante dos recentes conflitos, muita gente se pergunta como são feitos os processos de demarcação de terras indígenas no Brasil. Ao longo dos anos, ele foi muito modificado?

Flávio V. Machado É importante ressaltar que o processo brasileiro de demarcação das terras indígenas é um dos mais completos e reconhecidos no mundo, isso porque parte do princípio e necessidade de comprovar o direito originário que estas comunidades têm sobre seus territórios tradicionais. E isso exige estudos multidisciplinares e abrangentes. O direito à terra dos povos indígenas está expresso na Constituição Federal, que também estabelece o dever da União em demarcá-las e fazer respeitar os seus bens. Portanto, a Constituição definiu que esta atribuição é do Poder Executivo. Para cumpri-la o Governo definiu que o órgão executor dessa ação é a Funai.

Existe, para regulamentar o procedimento demarcatório de uma terra indígena, uma norma administrativa expressa por meio do Decreto Presidencial 1775/96. Nesse decreto estão definidos os critérios, as competências, os prazos. Além de prever a participação de entes públicos – sejam autarquias federais ou unidades federativas – está garantido o direito ao contraditório, de modo que os afetados pelas demarcações possam se manifestar e questionar os estudos realizados. A Funai, que deve demarcar as terras, está submetida ao Ministério da Justiça, que participa da demarcação depois dos estudos feitos. O Ministro da Justiça tem a responsabilidade de avaliar esses estudos, podendo declarar ou não a terra como sendo de ocupação indígena. Somente depois disso a presidente da República vai se manifestar, homologando a posse da terra.

Em Mato Grosso do Sul existem quantos processos em andamento e quantos já foram solucionados?

Existem hoje em Mato Grosso do Sul pelo menos 40 processos administrativos de demarcação de terras indígenas em andamento, alguns com quase 20 anos de mora.Um mesmo processo pode englobar mais de uma terra indígena. As terras já identificadas e as ainda por serem identificadas devem somar pelo menos 90 áreas em todo o Estado – é difícil precisar uma vez que há áreas em estudo. Neste contexto, há cerca de 80 ações judiciais tentando paralisar todos estes procedimentos administrativos de demarcação. Já as terras com o processo administrativo de demarcação concluso e cuja terra está na posse efetiva da comunidade indígena, não chega a 12 em todo o Estado. Com isso, é possível ter uma noção da dívida histórica que os processos demarcatórios buscam reparar.

Qual a média de tempo num processo como esse? Por que são tão demorados?

O procedimento demarcatório de uma terra indígena tem seu tempo (período) definido pelo Decreto 1775/96. No entanto, ele não é respeitado pela Funai, pelo Ministério da Justiça e pela presidência da República. De acordo com os prazos estabelecidos pelo decreto, uma demarcação deveria durar no máximo um ano e meio. No entanto, na prática, os procedimentos são protelados durante uma década. Além da demora do Poder Executivo há também os tempos impostos por ações judiciais. No entanto, em Mato Grosso do Sul há pelo menos dez processos administrativos de demarcação que poderiam avançar, pois já não têm impedimentos judiciais.

Por que os Terena reivindicam esta área da Fazenda Buriti e do distrito de Taunay?

Ambos os casos refletem uma situação latente porque passam as comunidades indígenas em Mato Grosso do Sul. É o resultado do processo de confinamento das populações indígenas em pequenas reservas criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e cujo principal objetivo era o de integrar os indígenas à sociedade nacional. Para tanto, houve intenso e muitas vezes violento processo de espoliação territorial e suas terras foram sendo entregues aos colonos recém-chegados ou sobreviventes da guerra do Paraguai – o que já violava direitos territoriais indígenas daquela época, como os garantidos nas constituições de 1934, 1937 e 1946. Estas duas regiões incidem sobre terras que foram identificadas e declaradas pelo Governo brasileiro como de ocupação tradicional do povo Terena. E há uma vasta e contundente documentação que comprova esta tradicionalidade. O conflito hoje é resultado da violação de ontem.

Quantas etnias e quantos índios vivem aqui em MS? Dados do IBGE mostram que estão aumentando sem que aparentemente a qualidade de vida melhore.

São nove etnias: Guarani, Kaiowá, Terena, Kadiweu, Kinikinau, Ofaié, Atikum, Kamba e Guató. Em Mato Grosso do Sul, a qualidade de vida de boa parte da população indígena é prejudicada essencialmente pela falta de terras, para que estes possam restabelecer seus modos próprios de vida. Os indicadores utilizados pelo IBGE não se inserem dentro da interculturalidade de cada povo e baseiam-se em padrões generalizantes. Além disso, as políticas públicas atuais não são resultados de processo autônomos de cada povo e sim imposições da sociedade e governos envolventes.

Essas áreas demarcadas e ocupadas pelos índios tornam-se o que? São apenas habitadas ou há plantação de lavouras e preservação da linhagem e da cultura do povo em questão?

A Constituição Federal estabelece que a propriedade das terras indígenas é da União. Aos povos cabe o seu usufruto exclusivo e à União o dever de assegurar, proteger e fazer respeitar esse direito, tendo em vista o futuro destes povos. As terras não podem ser vendidas, arrendadas, transferidas porque são da União. As suas formas de uso ficam a critério de cada povo e ao modo de se relacionar e de lidar com a terra. A Constituição também estabelece que os povos indígenas têm o direito à diferença, ou seja, suas culturas, usos, costumes, tradições, língua e as formas de lidar com a terra. As formas de se relacionar com a terra são também específicas de cada povo: alguns têm características voltadas à agricultura, outros à coleta, pesca e caça. No caso dos Terena eles são exímios agricultores; já os Kaiowá e Guarani exímios coletores, apesar de quase já não haver mata nativa para esta atividade.

Como o senhor acredita que deva ser a indenização aos proprietários da terra?

A Constituição Federal é clara quando determina que todos os títulos que incidem sobre terras indígenas são nulos e sem efeito, cabendo à União indenizar as benfeitorias caracterizadas como sendo de boa fé. Em nosso entendimento, assim deve proceder o governo, ressalvando as exceções onde os Estados ou a União concederam títulos de terras indevidamente. Nesses casos compete a eles (União ou Estados) solucionar os problemas que causaram, podendo ser por meio da indenização ou mesmo de aquisição de outras terras (inclusive devolutas) para estes detentores de títulos de propriedade. Nesse sentido já há parecer da Advocacia Geral da União favorável, entendimento positivo também por parte do MPF, e ainda, já há um fundo criado no Estado para que este tanto deposite recursos quanto receba da União para fins de indenização de terras objeto de demarcação.

Entendo ainda que falta operacionalizar e regrar de forma transparente o fundo, coadunar com o processo administrativo de demarcação, definir etapas e procedimentos, de modo a não incorrermos em pagar por terras griladas. E isso é bem possível, uma vez que o MPF identificou que 49% dos municípios de Mato Grosso do Sul possuem terras irregulares ou fantasma. E ainda, é importante lembrar que há uma farta documentação histórica suficientemente capaz de comprovar a nulidade de títulos, independente de que estes sejam objeto de demarcação de terras indígenas. O título por si só, numa reparação histórica, é ilegal. É uma falácia afirmar que em Mato Grosso do Sul não há terras griladas.

O que é o Cimi e como ele atua? Há quantos anos está no Estado?

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi fundado em 1972 na cidade de Cuiabá, tem 11 regionais pelo Brasil e um secretariado nacional em Brasília. Articula cerca de 300 missionários distribuídos em 110 equipes com atuação junto a 180 povos indígenas no Brasil. Em Mato Grosso do Sul foi fundado por Antonio Brand (in memorian) em 1979, na Diocese de Dourados.

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