Por Elaíze Farias*
O Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) manifestou-se favorável à condenação da União, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e do Estado do Amazonas ao pagamento de indenização por danos morais a uma menina indígena da etnia tukano, natural da região do Alto Rio Negro, no Amazonas. A informação sobre o parecer do MPF foi divulgada nesta quarta-feira (29).
Para o MPF, Estado do Amazonas e a União negaram o direito de associação do tratamento tradicional ao tratamento médico convencional (ocidental).
A menina tukano, que hoje tem 17 anos, teve o pé esquerdo picado por uma cobra jararaca em sua comunidade no início de 2009, no município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros de Manaus).
Antes de vir para Manaus, ela foi atendida em uma unidade de saúde de São Gabriel da Cachoeira. Na capital amazonense, foi enviada para o Hospital Infantil João Lúcio, o Joãozinho. Neste hospital, a equipe médica recomendou a amputação, diagnóstico que foi descartado pelos parentes da menina.
O pai, o avô e o tio acreditaram que não era preciso amputar e sim unir os dois tratamentos para a recuperação da menina. A família queria que, junto com a medicina ocidental, a menina também recebesse atendimento de práticas tradicionais dos indígenas.
O pedido dos pais, reforçado por uma recomendação do MPF, não foi atendido integralmente pela direção do Joãozinho. Diante da repercussão do caso, que se tornou público na imprensa local e nacional, o tratamento da menina foi transferido para o Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV).
Nesta outra unidade, foi possível a associação dos conhecimentos tradicionais ao tratamento médico. Benzimentos e demais tratamentos foram feitos por pajés vindos de São Gabriel da Cachoeira e por outros que moravam em Manaus.
A menina foi submetida a cirurgias reparadoras, sem necessidade de amputação da perna ou pé, e teve boa recuperação.
Reconhecimento
Ao receber a nota do MPF hoje, liguei para o João Paulo Lima Barreto, que é tio de a menina.
Informei-lhe sobre a decisão do MPF e ele mostrou-se surpreso feliz e me disse: “Era isso que estávamos querendo. Estamos nessa luta há muito tempo. Não queremos uma reparação pecuniária, mas um reconhecimento de que a medicina tradicional indígena pode estar associada ao tratamento ocidental e que a minha sobrinha não precisava passar por tudo isso para ter seu pé mantido”.
Barreto me contou que a sobrinha está bem e, felizmente, não precisou perder o pé, embora tenha dificuldades para andar normalmente.
A menina mora em Manaus, onde está cursando o ensino médio em uma escola pública. Segundo João Paulo Barreto, a família tentou fazer uma cirurgia no Hospital Adriano Jorge para que ela recuperasse completamente os movimentos, mas depois de dois anos aguardando desistiu do procedimento.
“Ela anda com dificuldade, mas é uma das melhores alunas da escola. Não tem como minha sobrinha voltar para a comunidade, pois teria dificuldade de trabalhar na roça, andar vários quilômetros, carregar água”, disse João Paulo.
Prática discriminatória
Para o MPF/AM, ao impedir a realização do tratamento tradicional tukano em conjunto com a medicina ocidental, optando pela medida de amputação da perna, os réus incidiram em prática discriminatória, atentando contra o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, e contra o princípio da isonomia que estabelece o dever de respeitar a cultura, os costumes e as peculiaridades dos povos indígenas, conforme disposto no artigo 231 da Constituição Federal.
O procurador da República Julio José Araujo Junior considerou, no parecer, que o dano moral está comprovado, especialmente diante das fotografias que mostram a evolução da enfermidade, onde ficam evidentes a dor e o sofrimento suportados pela menina.
Relatório de assistente social da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que na época respondia pela saúde indígena, demonstra que, ao invés de promover a articulação dos sistemas tradicional e ocidental de medicina, no tratamento da indígena, o órgão insistiu na drástica opção de amputação da perna, proposta pela equipe médica do Hospital Infantil João Lúcio, permanecendo inerte diante do desrespeito à cultura do povo Tukano na situação.
A União e a Funasa devem ser responsabilizadas também pela falha no serviço de saúde, pois, detendo competência para promover ações de assistência à saúde indígena, não houve articulação do SUS com o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena que garantisse o respeito aos costumes tradicionais do povo Tukano.
Tratamento
Eu também acompanhei a história e a polêmica envolvendo a menina desde sua chegada a Manaus, em janeiro de 2009. Fiquei impressionada com a resistência dela aos efeitos da picada da jararaca. Afinal, foram vários dias, entre a saída de sua comunidade até a sede de São Gabriel da Cachoeira, para então ela iniciar o tratamento.
Entrevistei a família e os pajés que ajudaram no tratamento. E também os diretores dos dois hospitais.
Quando ela já estava sendo atendida no HUGV, conversei com o então diretor, Raymisson Monteiro, que também fez parte da equipe que atendeu a menina.
Entre as várias perguntas que fiz, uma delas foi: “Quanto tempo vai durar o tratamento no hospital e quando ela poderá ter alta?”. Raymisson me respondeu: “Em aproximadamente seis meses ela sai do hospital, mas não precisará ter o pé amputado”.
Um mês depois, o João Paulo me liga, todo feliz: “Elaíze, a minha sobrinha já teve alta. Ela vai continuar o tratamento em casa”. Eu e um fotógrafo fomos ao hospital acompanhar a “saída” da garota e fizemos uma matéria sobre a rápida recuperação dela. Uma recuperação que surpreendeu até os médicos.
Liguei novamente para o diretor do HUGV e perguntei: “Doutor Raymisson, o senhor acha que os conhecimentos tradicionais dos índios ajudaram a agilizar a recuperação da menina?”. Bom, não lembro direito o que o doutor Raymisson respondeu textualmente, mas certamente ele não negou o papel do tratamento que os benzimentos e demais “curas misteriosas” (misteriosas porque eles nunca disseram o que fizeram exatamente) na recuperação da garota.
Especificidades
A Constituição Federal prevê, no artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e, no artigo 231, reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
A Lei nº 8.080/90 determina que o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena deve, obrigatoriamente, considerar, em suas ações, a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas, bem como deve o Sistema Único de Saúde (SUS), se necessário, sofrer adaptações em sua estrutura e organização, a fim de propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminação.
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* Texto baseado em informações do release enviado pela assessoria de imprensa do MPF, de conversa com o João Paulo Barreto e memória pessoal sobre o assunto.