Maioria dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura se concentrou no período em que ele foi presidente
Por Aline Gatto Boueri para OperaMundi
Jorge Rafael Videla morreu neste 17 de maio gelado, de sol, em uma cela comum. Nas costas, pesavam duas condenações à prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante a última ditadura militar argentina, da qual esteve à frente entre 1976 e 1981. Morreu sozinho, aquele que era conhecido como “a pantera cor de rosa”, apelido dado pelo caminhar e a sorte para escapar incólume de atentados. Julgado e condenado em vida, Videla não conseguiu fugir do destino final.
Com sua morte, talvez também seja sepultado o destino dos mais de 30 mil que sumiram sob seu governo. “Sobre os desaparecidos (…) se aparecessem, teriam um tratamento X. E se a aparição se convertesse em certeza de falecimento, teriam um tratamento Z. Mas como desaparecido não pode ter nenhum tratamento especial (…) É uma incógnita, é um desaparecido. Não tem entidade, não está. Nem morto, nem vivo, está desaparecido.”
Era 1979 e Videla respondia, em entrevista coletiva, a pergunta do jornalista argentino José Ignacio López sobre o que o ex-tenente-general de Exército e presidente da Junta Militar que governava o país teria a dizer ao Papa João Paulo II, que na Praça São Pedro se referiu às violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar. Meses antes, em setembro, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) havia visitado o país para reunir-se com organizações de direitos humanos e recebera denúncias de desaparecimentos forçadas e prisões clandestinas.
Em 1977, durante uma visita de Estado a Caracas, Videla falou às câmeras: “em nosso país desapareceram pessoas. Essa é uma tristíssima realidade que devemos reconhecer. Talvez a parte difícil seja explicar o porquê e por culpa de quem essas pessoas tenham desaparecido.”
Videla fala sobre desaparecidos:
Não era uma resposta inocente. As Forças Armadas argentinas se inspiraram na Escola de Guerra Francesa para desenhar sua atuação na “guerra contra a subversão.” A partir das experiências na então Indochina e na Argélia durante a luta pela independência das antigas colônias francesas, estratégias de tortura e o método de desaparecimento forçado de civis foram incluídos no currículo de formação de oficiais latino-americanos e aplicados durante as ditaduras militares da América do Sul.
Confissão
O ditador liderou golpe militar que deu início a uma das etapas mais violentas da história argentina. Ainda que nunca tenha revelado o destino dos desaparecidos ou dos bebês nascidos em cativeiro e sequestrados – procurados sem descanso pelas Avós da Praça de Maio –, assumiu em entrevista ao jornalista argentino Ceferino Reato que sequestros, torturas e desaparecimento forçados de militantes políticos foram praticados de forma sistemática, apesar de ter revelado um número muito inferior ao contabilizado pelas organizações de direitos humanos.
Videla falou de sete ou oito mil que deveriam “ser assassinados para ganhar a guerra”, mas disse que seria impossível “fuzila-los” de forma pública devido ao custo político que isso teria. Sempre dentro da lógica de que os grupos armados organizados estavam em igualdade de condições que as Forças Armadas, o ex-tenente-general sustentou um discurso utilizado por quem defende a atuação militar durante a ditadura ou mesmo por quem a critica, mas a justifica com o argumento de que a guerrilha alimentava a violência.
No discurso de despedida da presidência da Junta Militar, em 1981, Videla deixou o governo com uma mensagem que poderia ter sido direcionada à Junta Militar que comandou por cinco anos. “A agressão subversiva desenvolvida em nível ideológico em todos os âmbitos e apoiada pela apelação permanente ao crime e ao terror tratou (…) de impor sua pretendida revolução, apresentando-a como única alternativa (…) Suas organizações, lançadas a destruir tudo aquilo que pudesse oferecer resistência, empreenderam seu letal intento sem oferecer jamais outra condição para cessar sua violência que a submissão de toda a nação a seu poder absoluto.”
Inspiração nazista
Das conversas de Reato com Videla surgiu grande parte do material para o livro Disposición Final (Disposição Final, em português), no qual o ex-tenente-general do Exército afirma, dentro da lógica de guerra contra a subversão, que não havia possibilidade de combater a guerrilha – que em 1975, ano anterior ao golpe, já estava desarticulada na Argentina – sem uma estratégia militar parecida à empregada pela França colonial durante a tentativa de manter sob seu jugo Indochina e Argélia.
Videla afirmou que nunca se falou em “solução final”, nome da estratégia do regime nazista da Alemanha, mas reconheceu que o termo guarda semelhanças, na linguagem militar, com “disposição final”, esse sim várias vezes utilizado. “São duas palavras muito militares e significam tirar de serviço algo que não serve mais. Quando, por exemplo, uma roupa já não se usa ou não serve porque está gasta, passa à Disposição Final”, declarou ao jornalista, em alusão à política de eliminação de civis que se opunham ao regime militar.
A maior parte dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura argentina se concentrou no período em que Videla foi presidente da Junta Militar. Sob seu comando, as Forças Armadas executaram estratégia idealizada pelo regime nazista em seu Decreto de Noite e Névoa, que sistematizava a detenção e desaparecimento forçado de judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. Os militares argentinos utilizaram uma estratégia parecida à nazista, prendendo, assassinando e ocultando os cadáveres sem dar qualquer tipo de explicação.
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Para muitos argentinos, Videla foi a encarnação do mal. Não governou sozinho, mas sua imagem, mais do que a de outros militares que participaram do golpe de Estado, esteve diretamente associada aos desaparecidos e aos bebês. Ao nome dele, se relacionam o sofrimento, o autoritarismo e a tristeza que imperaram naqueles anos de chumbo. “Nem esquecimento, nem perdão”, é o mantra das centenas de milhares que todo 24 de março se concentram para lembrar o Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça.
A data foi criada sob a administração de Néstor Kirchner, durante a qual foram derrubadas as leis de anistia, promulgadas durante o governo do presidente Raul Alfonsín (1983-1989). Em 2003, o Congresso aprovou um projeto de lei enviado pelo então presidente, que abriu caminho para o retorno dos julgamentos. Na mesma ocasião, a Justiça também declarou inconstitucionais os indultos dados pelo ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) beneficiando repressores.
Graças a essa mudança, impulsionada pela esposa de Kirchner e atual presidente da Argentina, Cristina, Videla sentou no banco dos réus e recebeu duas condenações à prisão perpétua. Em uma entrevista para a revista espanhola Cambio 16 no ano passado, ele confessou que “nosso pior momento chegou com os Kirchner”, ao quais chamou de “revanchistas”.
Videla viveu 30 anos de democracia, o que permitiu que fosse julgado e condenado pelos crimes que cometeu como líder de um exército que tinha licença para matar. Mas o acerto de contas da Argentina com seu passado não deve se encerrar com a partida física do ditador. Trinta mil pessoas seguem desaparecidas.